6) É legítima a prova obtida por meio de interceptação telefônica para apuração de delito punido com detenção, se conexo com outro crime apenado com reclusão.
Como vimos nos comentários à tese anterior, um dos requisitos para a interceptação telefônica é o de que o crime seja punido com reclusão, restringindo-se assim a medida a fatos de maior gravidade como forma de garantir sua excepcionalidade.
Ocorre que, uma vez em andamento, a interceptação telefônica pode revelar fatos sequer cogitados quando a diligência foi autorizada. Não é incomum que a gravação de diálogos iniciada para apurar, por exemplo, crime de tráfico de drogas acabe revelando também a prática de roubos e homicídios. Da mesma forma, é plenamente possível que, durante a interceptação, a autoridade descubra uma infração penal à qual a lei atribui pena de detenção, o que, num primeiro momento, contrariaria o disposto no art. 2º, inc. III, da Lei 9.296/96. Com efeito, há quem argumente que os diálogos gravados que se refiram à infração apenada com detenção devem ser desconsiderados porque a lei pressupõe a reclusão. A orientação que se firmou, no entanto, é diversa, isto é, desde que a interceptação tenha sido autorizada de acordo com os requisitos legais, a descoberta fortuita de infração apenada com detenção é plenamente válida:
“Descabe falar-se em nulidade das provas, quando obtidas a partir interceptação telefônica, realizada em fase inquisitorial de investigação de crime punido com pena de reclusão, em que se obtém encontro fortuito de provas de outros delitos, punidos com pena de detenção.” (AgRg no REsp 1.717.551/PA, j. 24/05/2018)
7) A garantia do sigilo das comunicações entre advogado e cliente não confere imunidade para a prática de crimes no exercício da advocacia, sendo lícita a colheita de provas em interceptação telefônica devidamente autorizada e motivada pela autoridade judicial.
Já mencionamos o fato de que uma vez instaurado o procedimento de interceptação, não são raros os casos em que as autoridades são surpreendidas com diálogos inicialmente não previstos. Uma das situações é a captação da comunicação entre o investigado e seu defensor.
Em tais situações, discute-se a respeito da manutenção do diálogo nos autos da interceptação, tendo em vista que o art. 7º, inc. II, da Lei 8.906/94 garante ao advogado “a inviolabilidade de seu escritório ou local de trabalho, bem como de seus instrumentos de trabalho, de sua correspondência escrita, eletrônica, telefônica e telemática, desde que relativas ao exercício da advocacia”. Há situações em que o diálogo não diz respeito a atividades criminosas, mas envolve apenas a discussão de estratégias de defesa. Nestes casos, a inviolabilidade das comunicações telefônicas do advogado impede que as gravações sejam utilizadas como provas, embora não se macule a interceptação decretada licitamente:
“A interceptação telefônica, devidamente autorizada pelo juiz responsável, abrange a participação de quaisquer dos interlocutores do investigado e, em sendo a comunicação do advogado com seu cliente interceptada fortuitamente em decorrência desse provimento judicial, não há falar em violação do sigilo profissional.” (RMS 58.898/SE, j. 08/11/2018)
Mas se durante a interceptação se apura que a atividade de advocacia está sendo utilizada para a prática de crimes, desaparece a imunidade:
“(…) 10. Hipótese em que se verifica a existência de fundamentação idônea apta a justificar a necessidade da interceptação telefônica do advogado, cujo objeto de investigação é descrito claramente, com a indicação e qualificação dos investigados, demonstrando haver indícios razoáveis de autoria e materialidade da infração penal punida com reclusão, além de não ser possível elucidar os fatos por outro meio.
11. O entendimento desta Corte consolidou-se no sentido de que “não existem direitos absolutos no ordenamento jurídico pátrio, motivo pelo qual a suspeita de que crimes estariam sendo cometidos por profissional da advocacia permite que o sigilo de suas comunicações telefônicas seja afastado, notadamente quando ausente a demonstração de que as conversas gravadas se refeririam exclusivamente ao patrocínio de determinado cliente. Há que se considerar, ainda, que o exercício da advocacia não pode ser invocado com o objetivo de legitimar a prática delituosa, ou seja, caso os ilícitos sejam cometidos valendo-se da qualidade de advogado, nada impede que os diálogos sejam gravados mediante autorização judicial e, posteriormente, utilizados como prova em ação penal, tal como sucedeu no caso dos autos. Precedentes do STJ e do STF” (RHC 51.487⁄SP, Rel. Ministro LEOPOLDO DE ARRUDA RAPOSO (Desembargador convocado do TJPE), QUINTA TURMA, DJe 24/09/2015).” (RHC 92.891/RR, j. 25/09/2018)
8) É desnecessária a realização de perícia para a identificação de voz captada nas interceptações telefônicas, salvo quando houver dúvida plausível que justifique a medida.
Não há, no regulamento da interceptação telefônica, nenhuma referência à realização de perícia nas vozes captadas. Embora haja quem sustente a necessidade de perícia para impor maior segurança à identificação dos indivíduos interceptados, a tese não encontra respaldo na jurisprudência, a não ser que se comprove a efetiva necessidade:
“2. Compete ao juiz, destinatário da prova, aferir a pertinência e a necessidade de realização das diligências para a formação de seu convencimento. Não constitui constrangimento ilegal o indeferimento daquelas que, ao exame do conjunto probatório que se lhe apresenta, forem entendidas como indevidas, em decisão fundamentada, quando as julgar protelatórias ou desnecessárias à instrução criminal.
[…] A jurisprudência desta Corte Superior é firme no sentido de ser prescindível a realização de perícia para a identificação das vozes captadas nas interceptações telefônicas, especialmente quando pode ser aferida por outros meios de provas e diante da ausência de previsão na Lei n. 9.296/1996 (HC 274.969/SP, Rel. Ministro MARCO AURÉLIO BELLIZZE, QUINTA TURMA, julgado em 08/04/2014, DJe 23/04/2014)
3. No caso, o Magistrado indeferiu o pedido de perícia fonográfica de interceptação telefônica, justificando que a identificação do paciente já estava provada por outros meios, além de que sua voz estava sendo monitorada e foi reconhecida pelos policiais, fatores que tornam, realmente, desnecessária a prova pericial para identificação da voz. Ficou claro também que o conteúdo da conversa da interceptação telefônica referia-se ao tráfico de drogas, já que não só os policiais ouviram que o paciente determinara a um dos comparsas que retirasse a droga de sua chácara para não ser vista pela polícia, como também o próprio comparsa confirmou o que ocorrera.” (HC 453.357/SP, j. 16/08/2018)
9) Não há necessidade de degravação dos diálogos objeto de interceptação telefônica, em sua integralidade, visto que a Lei n. 9.296/1996 não faz qualquer exigência nesse sentido.
Outra controvérsia se levanta sobre a necessidade de degravação integral dos diálogos interceptados. Os que advogam a tese da degravação completa o fazem sob o argumento de que a seleção dos trechos que interessam à prova, e portanto serão degravados, não pode ficar ao alvedrio da autoridade incumbida da interceptação. As partes e o juiz devem ter acesso à integralidade dos diálogos travados pelo investigado e, a partir deles, analisar o que interessa ou não para a prova. Para Guilherme de Souza Nucci, não é razoável exigir a transcrição integral:
“Como providenciar a transcrição de horas e horas de conversação? Torna-se um trabalho hercúleo e, por vezes, inútil, até pelo fato de ser mais interessante às partes e ao julgador ouvir efetivamente o diálogo travado pelo interlocutores interceptados. Façamos uma ressalva. Se a defesa impugnar algum trecho, alegando falsidade ou emenda indevida, deve-se submeter o material à perícia, logo, haverá transcrição.” (Leis Penais e Processuais Penais Comentadas – 10 ed. – vol. 1. Rio de Janeiro: Forense, 2017, p. 580).
É no mesmo sentido a orientação adotada pelo STJ, que considera suficiente que se disponibilizem os diálogos gravados:
“É assente no Superior Tribunal de Justiça, bem como no Supremo Tribunal Federal, o entendimento no sentido da desnecessidade de transcrição integral do conteúdo das interceptações telefônicas, uma vez que a Lei n. 9.296/1996 não faz qualquer exigência nesse sentido, bastando que se confira às partes acesso aos diálogos interceptados. Dessarte, suficiente a entrega da totalidade dos áudios captados à defesa, portanto não há se falar em nulidade no caso dos autos.” (HC 422.642/SP, j. 25/09/2018)
10) Em razão da ausência de previsão na Lei n. 9.296/1996, é desnecessário que as degravações das escutas sejam feitas por peritos oficiais.
Segundo o art. 6º, § 1º, da Lei 9.296/96, caso a interceptação telefônica possibilite a gravação, será determinada a sua transcrição, que, como vimos nos comentários à tese anterior, não precisa ser integral.
Note-se, inicialmente, que embora a lei se refira à possibilidade de gravação, entende-se que se trata de algo obrigatório, pois somente assim o resultado da diligência pode ser considerado apto a servir como prova. Caso os diálogos interceptados tenham sido apenas acompanhados pela autoridade, sem registro em áudio, perde-se a garantia de fidedignidade, algo imprescindível em meios de prova desta natureza.
Uma vez efetuada a gravação, a transcrição pode ser feita pela própria autoridade incumbida da interceptação, dispensando-se que o procedimento seja atribuído a peritos oficiais, pois a exigência contida no art. 159 do CPP diz respeito ao exame de corpo de delito e a perícias em geral:
“É certo que, nos termos do art. 159 do Código de Processo Penal, “O exame de corpo de delito e outras perícias serão realizados por perito oficial, portador de diploma de curso superior”. No entanto, tal exigência diz respeito somente a exame de corpo de delito e a perícias em geral, não se aplicando, portanto, aos casos de simples degravação de conversas telefônicas interceptadas, até porque a transcrição de áudio não exige nenhum conhecimento ou nenhuma habilidade especial que justifique a obrigatoriedade de que seja realizada por perito oficial, de maneira que não há como concluir pela nulidade das provas obtidas por meio das interceptações telefônicas.” (AgRg no AREsp 583.598/MG, j. 12/06/2018)
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