Promoção de migração ilegal
Art. 232-A. Promover, por qualquer meio, com o fim de obter vantagem econômica, a entrada ilegal de estrangeiro em território nacional ou de brasileiro em país estrangeiro: Pena – reclusão, de 2 (dois) a 5 (cinco) anos, e multa. § 1o Na mesma pena incorre quem promover, por qualquer meio, com o fim de obter vantagem econômica, a saída de estrangeiro do território nacional para ingressar ilegalmente em país estrangeiro. § 2o A pena é aumentada de 1/6 (um sexto) a 1/3 (um terço) se: I – o crime é cometido com violência; ou II – a vítima é submetida a condição desumana ou degradante. § 3o A pena prevista para o crime será aplicada sem prejuízo das correspondentes às infrações conexas. |
Considerações iniciais
A Lei nº 13.445/17, com vigência programada para o dia 20 de novembro de 2017, revoga o Estatuto do Estrangeiro para instituir a Lei de Migração. Dentre suas disposições, o art. 115 acrescenta ao Código Penal o art. 232-A, tipificando como crime a promoção de migração ilegal.
Destacamos, inicialmente, a impropriedade da inserção dessa figura criminosa no Título relativo aos crimes contra a dignidade sexual, especificamente no Capítulo V, que trata do lenocínio. Como veremos logo a seguir, o crime de promoção de migração ilegal não tem conotação sexual e não se confunde, de forma alguma, com o tráfico de pessoas para exploração sexual, que antes da Lei nº 13.344/16 fazia parte do mesmo Capítulo. Trata-se, simplesmente, de viabilizar a entrada no território brasileiro de estrangeiro que não cumpre os requisitos legais estabelecidos na própria Lei de Migração.
A flexibilização das leis migratórias tem sido uma tendência mundial para facilitar o trânsito de pessoas entre países. Flexibilizar, no entanto, não significa permitir a entrada e saída de pessoas sem o atendimento de pressupostos legais que visam a manter a ordem interna e a evitar o livre trânsito de indivíduos que podem trazer risco para a segurança dos cidadãos nacionais. Por isso, ainda que a migração possa, em alguns casos, ser incentivada, sua promoção ao arrepio da lei deve ser punida.
Tanto é assim que os mais diversos países punem criminalmente o ato de promover migração ilegal. A Lei de Estrangeiros de Portugal, por exemplo, pune “Quem favorecer ou facilitar, por qualquer forma, a entrada ou o trânsito ilegais de cidadão estrangeiro em território nacional” com prisão de até três anos (art. 183º). A lei italiana também contempla figura criminosa que pune com reclusão de um a cinco anos aquele que pratica conduta dirigida a promover a entrada de estrangeiro no território italiano violando as disposições do Texto Único sobre Imigração (art. 12).
Objetividade jurídica
A tutela penal recai, sobretudo, na manutenção da soberania nacional, da qual deriva toda a disciplina para entrada e saída de pessoas do território brasileiro. É com base no poder pleno de autodeterminação, ou seja, não condicionado a nenhum outro poder de origem externa ou interna, que o Estado estabelece as regras para o trânsito de pessoas no território nacional. Ignorar essas regras atenta, portanto, contra o poder de autodeterminação.
São também objetos jurídicos deste crime, ainda que mediatos, a segurança nacional e a manutenção da ordem interna, pois a entrada ilegal de estrangeiros em território brasileiro impede que os órgãos de imigração tomem conhecimento de quem está penetrando no país e a que título (o art. 12 da Lei nº 13.445/17Art. 12. Ao solicitante que pretenda ingressar ou permanecer em território nacional poderá ser concedido visto: I - de visita; II - temporário; III - diplomático; IV - oficial; V - de cortesia. estabelece cinco espécies de vistos, que por sua vez são divididos em subespécies, cada uma concedida de acordo com a finalidade para o ingresso e a permanência do estrangeiro no Brasil).
Por fim, como a figura criminosa pune também a promoção de entrada ilegal de brasileiro em território estrangeiro e a saída ilegal de estrangeiro para outro país, é possível dizer que se tutela a manutenção da regular relação entre o Brasil e outros países.
Sujeitos
O crime é comum, razão por que pode ser cometido por qualquer pessoa. Note-se, no entanto, que o migrante ilegal não comete o crime, pois o tipo pune promover a migração de terceiro, com intuito de obter vantagem econômica. Isso decorre dos princípios e diretrizes da política migratória brasileira, dentre os quais está a não criminalização da migração (art. 3º, inciso III, da Lei nº 13.445/17)Art. 3o A política migratória brasileira rege-se pelos seguintes princípios e diretrizes: (...) III - não criminalização da migração; .
O sujeito passivo é o Estado, que deixa de exercer o direito de controle sobre o trânsito de estrangeiros no país.
Conduta
Consiste a conduta típica em promover, por qualquer meio, com o fim de obter vantagem econômica, a entrada ilegal de estrangeiro em território nacional ou de brasileiro em país estrangeiro.
A ação nuclear de promover a entrada ilegal de estrangeiro deve ser interpretada de forma ampla, punindo-se quem agencia a vinda do estrangeiro, quem o transporta para o território nacional, quem o recebe no momento do ingresso ou quem de qualquer forma pratica algum ato com o propósito de tornar possível a entrada do estrangeiro sem a observância das disposições legais, sendo que a entrada ilegal pode ocorrer tanto por meio de desvio dos postos de imigração (ex.: o agente promove a entrada do estrangeiro por fronteira terrestre ou marítima onde não existe forma de controle) quanto mediante utilização de meios fraudulentos perante o controle de imigração (ex.: documentos falsos).
Para compreender o alcance do termo estrangeiro, devemos, antes, analisar o conceito de brasileiro. Extrai-se do art. 12 da CF/88 serem brasileiros natos:
1) os nascidos na República Federativa do Brasil, ainda que de pais estrangeiros, desde que estes não estejam a serviço de seu país;
2) os nascidos no estrangeiro, de pai brasileiro ou mãe brasileira, desde que qualquer deles esteja a serviço da República Federativa do Brasil;
3) os nascidos no estrangeiro de pai brasileiro ou de mãe brasileira, desde que sejam registrados em repartição brasileira competente ou venham a residir na República Federativa do Brasil e optem, em qualquer tempo, depois de atingida a maioridade, pela nacionalidade brasileira.
E são naturalizados:
1) os que, na forma da lei, adquiram a nacionalidade brasileira, exigidas aos originários de países de língua portuguesa apenas residência por um ano ininterrupto e idoneidade moral;
2) os estrangeiros de qualquer nacionalidade, residentes na República Federativa do Brasil há mais de quinze anos ininterruptos e sem condenação penal, desde que requeiram a nacionalidade brasileira.
É, portanto, estrangeiro qualquer pessoa que não se insira em nenhuma das qualificações de brasileiro nato ou naturalizado.
O tipo pune a entrada ilegal de estrangeiro em território nacional. O que se entende, no entanto, para os efeitos desta infração penal, como território nacional?
O conceito de território nacional para fins penais é extraído do art. 5º do Código Penal. Nessa esteira, entende-se como território nacional a soma do espaço físico (ou geográfico) com o espaço jurídico (espaço físico por ficção, por equiparação, por extensão ou território flutuante).
Território físico é o espaço terrestre, marítimo ou aéreo sujeito à soberania do Estado (solo, rios, lagos, mares interiores, baías, faixa do mar exterior ao longo da costa – 12 milhas marítimas de largura, medidas a partir da linha de baixa-mar do litoral continente e insular – e espaço aéreo correspondente). E, como extensão do território nacional, consideram-se as embarcações e aeronaves brasileiras, de natureza pública ou a serviço do governo brasileiro onde quer que se encontrem, bem como as embarcações e as aeronaves brasileiras (matriculadas no Brasil), mercantes ou de propriedade privada, que se achem, respectivamente, em alto-mar ou no espaço aéreo correspondente (art. 5°, § 1°, CP). É também aplicável a lei brasileira aos crimes cometidos a bordo de aeronaves ou embarcações estrangeiras de propriedade privada, achando-se aquelas em pouso no território nacional ou em voo no espaço aéreo correspondente, e estas em porto ou mar territorial do Brasil (art. 5º, § 2°, CP).
Para a caracterização do crime de promoção de migração ilegal, parece-nos mais adequada a limitação da entrada ao território físico. É somente nesse momento que os órgãos de fiscalização de fronteiras podem exercer o controle da entrada de pessoas no território brasileiro. Não faz sentido aplicar o conceito extenso de território neste caso porque em determinadas situações o crime se perfaria muito antes de ser possível qualquer tipo de controle. É o caso, por exemplo, do agente que, com intuito de promover a entrada de estrangeiro ilegal no Brasil, o introduzisse em uma embarcação pública brasileira atracada em outro país. O crime se consumaria imediatamente, com a mera entrada do estrangeiro na embarcação. Se, em outro exemplo, o estrangeiro estivesse em uma aeronave comercial brasileira, o crime se consumaria no momento em que o aparelho ingressasse no espaço aéreo internacional. Seria no mínimo inusitado admitir ofensa ao controle de imigração num momento em que sequer seria possível seu exercício.
De igual forma, pensamos que a promoção de entrada ilegal de brasileiro em país estrangeiro só ocorre se houver o ingresso do nacional no território físico de outro país. Trata-se, aqui, da situação em que criminosos agenciam a ida de nacionais sem vistos para residir em outros países. Talvez a situação mais comum seja a de brasileiros que emigram aos Estados Unidos passando pelo México, guiados pelos denominados “coiotes”.
Aqui ousamos uma crítica: a nosso ver, teria feito melhor o legislador se, no lugar de punir a promoção da entrada ilegal de brasileiro em país estrangeiro (caput), punisse a saída ilegal de brasileiro do território nacional para ingressar em país estrangeiro. Isso no mínimo tornaria a apuração mais simplificada, pois se o tipo condiciona a caracterização do crime à entrada em outro país, há de se demonstrar o efetivo ingresso, providência que pode depender da colaboração de autoridades internacionais. Uma vez que fosse punida a saída, isso seria dispensável.
O § 1º contém uma forma equiparada ao caput, consistente em promover, por qualquer meio, com o fim de obter vantagem econômica, a saída de estrangeiro do território nacional para ingressar ilegalmente em país estrangeiro.
A forma equiparada pune, corretamente, a saída – não a entrada – de estrangeiro do território brasileiro para ingressar ilegalmente em outro país. Aplicam-se aqui as mesmas considerações sobre o que se consideram território brasileiro.
Voluntariedade
É o dolo, consistente na vontade consciente de promover a entrada ilegal de estrangeiro em território nacional ou de brasileiro em país estrangeiro, bem como a saída de estrangeiro do território nacional para ingressar ilegalmente em país estrangeiro.
O tipo contém um elemento subjetivo: a finalidade especial de obter vantagem econômica. Com isso afasta-se a possibilidade de punição se alguém praticar uma das modalidades do crime com o intuito de simplesmente auxiliar a pessoa que pretende ingressar ilegalmente no território nacional ou em país estrangeiro.
Consumação e tentativa
Nas modalidades tipificadas no caput, consuma-se o crime com a entrada ilegal do estrangeiro no território nacional ou com a entrada ilegal do brasileiro em outro país.
Na forma equiparada, a consumação se dá com a saída do estrangeiro do território brasileiro.
O § 3º estabelece que a pena prevista para o crime será aplicada sem prejuízo das correspondentes às infrações conexas. Isso significa que eventuais infrações penais cometidas no mesmo contexto da promoção de migração ilegal serão punidas em concurso, sem que seja possível aplicar o princípio da consunção. Dessa forma, se, por exemplo, a entrada ilegal no território nacional – ou a saída dele – se der por meio da falsificação de documentos, o agente responde pelo art. 232-A em concurso material com o crime contra a fé pública.
O mesmo ocorre se a promoção da entrada ilegal de estrangeiro for praticada em conjunto com o tráfico de pessoasArt. 149-A. Agenciar, aliciar, recrutar, transportar, transferir, comprar, alojar ou acolher pessoa, mediante grave ameaça, violência, coação, fraude ou abuso, com a finalidade de: I - remover-lhe órgãos, tecidos ou partes do corpo; II - submetê-la a trabalho em condições análogas à de escravo; III - submetê-la a qualquer tipo de servidão; IV - adoção ilegal; ou V - exploração sexual. Pena - reclusão, de 4 (quatro) a 8 (oito) anos, e multa. . Os crimes têm objetividades jurídicas distintas; o tráfico de pessoas pode ser cometido por meio do trânsito legal de pessoas de um país para outro, ou seja, a entrada ou saída ilegal não integra o tipo do art. 149-A; os sujeitos passivos são diversos, pois enquanto o tráfico de pessoas atinge o indivíduo, a entrada ilegal de estrangeiro vitima o Estado. Além disso, o art. 232-A exige propósito de obter vantagem econômica, mas esta não é um pressuposto do art. 149-A. É perfeitamente possível, por exemplo, que alguém agencie a entrada ilegal de uma pessoa no Brasil, recebendo determinada quantia, em colaboração com uma organização criminosa que promova o tráfico de pessoas para exploração sexual. Há, no caso, concurso material.
A tentativa é possível nas situações em que o agente adota as medidas necessárias para o ingresso ou a saída ilegal do estrangeiro, mas não alcança seu propósito por circunstâncias alheias à sua vontade.
Ação penal
A ação penal é pública incondicionada.
Tendo em vista os bens jurídicos tutelados, a competência é da Justiça Federal.