Segundo o art. 116, inciso I, do Código Penal, o prazo fatal não corre enquanto não resolvida, em outro processo, questão de que dependa o reconhecimento da existência do crime. Trata-se de causa suspensiva, que, uma vez resolvida, faz o prazo prescricional ser retomado de onde parou.
No geral, essa causa suspensiva decorre da resolução das questões prejudiciais de que tratam os artigos 92 a 94 do Código de Processo Penal. São aquelas que se vinculam a um elemento constitutivo do crime e, por isso, devem ser dirimidas antes da decisão principal, ou seja, do mérito da causa. A propósito, do latim são as expressões prae e judicare, ou seja, julgar antes. Daí se dizer que a decisão criminal depende da solução dada à controvérsia prejudicial. Oportuna, assim, a lição de Hélio TornaghiInstituições de processo penal, vol. 4, p. 327 para quem, “o juiz não pode concluir coisa alguma a respeito da questão principal sem uma solução da prejudicante. Em outras palavras: a questão prejudicial condiciona (primeira característica: superordinação), fatalmente, irrecusavelmente (segunda característica: necessidade) a questão prejudicada”. O exemplo clássico é o do réu que, processado por bigamia, questiona no juízo cível a validade do primeiro casamento.
Apesar de o inciso I do art. 116 referir-se apenas à questão prejudicial obrigatória, é entendimento prevalente na doutrina aplicar-se também para a hipótese de questão prejudicial facultativa, desde que o juiz decida acatá-la.
O STF julgou ontem (07/06/2017) questão de ordem no recurso extraordinário 966.177/RS para, conferindo interpretação conforme à mencionada causa suspensiva, determinar a suspensão do prazo prescricional também nos casos em que reconhecida a repercussão geral em matéria criminal.
O caso concreto versava sobre uma condenação por exploração de jogo de azar. O Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul havia reconhecido a atipicidade da conduta por considerar que se trata de algo inserido no âmbito das liberdades individuais. Punir essa conduta, de acordo com aquela decisão, contraria os princípios da proporcionalidade e da ofensividade.
O Ministério Público do Rio Grande do Sul recorreu extraordinariamente e o STF reconheceu a repercussão geral da matéria. E, no recurso, surgiu a questão de ordem a respeito da suspensão do prazo prescricional para todos os casos semelhantes e para outros que, na esfera penal, também tivessem a repercussão reconhecida.
Concluiu-se que o trâmite dos recursos com repercussão geral reconhecida muitas vezes inviabilizava o exercício da ação penal pelo Ministério Público, contrariando, portanto, o princípio de que o confronto processual deve se basear na paridade de medidas de que dispõe cada uma das partes. Permitir o pleno curso da prescrição enquanto não decidida a questão prejudicial da repercussão contraria, dessa forma, o princípio da proporcionalidade.
A suspensão, no entanto, se aplica somente nas ações penais em curso, não em inquéritos policiais nem em procedimentos investigatórios no âmbito do Ministério Público. E, mesmo nas ações penais, não há suspensão se o réu estiver preso, pois, nesta situação, tem maior relevância a razoável duração do processo, que não poderia ter sua marcha interrompida indefinidamente enquanto alguém sofre restrição de liberdade a título precário, sem a formação de culpa.
Na decisão, o STF estendeu ao processo penal as disposições do art. 1035, § 5º, do Código de Processo Civil§ 5o Reconhecida a repercussão geral, o relator no Supremo Tribunal Federal determinará a suspensão do processamento de todos os processos pendentes, individuais ou coletivos, que versem sobre a questão e tramitem no território nacional., segundo as quais o relator no STF pode determinar a suspensão de todos os processos que versem sobre a questão de repercussão geral reconhecida. Considerando, pois, que segundo a regra do Código de Processo Civil é o relator quem decide pela suspensão, conclui-se que não se trata de providência obrigatória e tampouco automática. O relator decide se impõe a suspensão de acordo com a relevância da matéria de que trata o recurso e tendo em vista a necessidade de que se aguarde o pronunciamento do STF.
É necessário ter em mente, no entanto, que mesmo diante de questão controversa a ser decidida pelo STF na repercussão geral, a ação penal já suspensa pode demandar medidas de urgência, como o sequestro de bens ou a realização de uma perícia, por exemplo. Nesses casos, o juiz de primeiro grau pode decidir pela adoção das medidas de urgência apesar da suspensão determinada.
Trata-se, evidentemente, de algo salutar, pois a decisão pendente sobre questão de repercussão geral não pode inviabilizar providências de caráter urgente que eventualmente devam ser adotadas. Seria absurdo que, uma vez suspensa a ação penal, o juiz nada pudesse fazer diante de provas de que o acusado, aproveitando-se justamente da suspensão, estivesse se desfazendo de bens cuja origem fosse duvidosa; também não seria nada razoável que se obstasse a determinação de exame pericial sobre um objeto encontrando com manchas de sangue num processo de homicídio, ou que o juiz não pudesse determinar a prisão preventiva do acusado surpreendido ameaçando testemunhas, possibilidade aliás destacada expressamente pelo relator. Mas, na hipótese em que a prisão seja decretada já durante a suspensão, a ação penal deve retomar imediatamente seu curso em virtude da determinação do próprio tribunal de que a medida não se aplica a réus presos.
A decisão não foi unânime, todavia, porque os ministros Edson Fachin e Marco Aurélio consideraram impossível a extensão da norma processual civil ao processo penal, especialmente com a suspensão da prescrição.
Não sem razão, o ministro Fachin afirmou que somente lei expressa poderia impor a suspensão do prazo prescricional.
De fato, a prescrição existe como limitação ao poder punitivo estatal em virtude do decurso do tempo marcado pela inércia na promoção das medidas para apurar o crime, condenar o acusado e compeli-lo a cumprir a pena. Qualquer limitação relativa ao tema da prescrição, seja pela modificação dos prazos ou pela imposição de causas suspensivas ou interruptivas, é contrária aos interesses do jurisdicionado e, portanto, in pejus, vinculada à edição de lei.
Há de se destacar, ademais, que o inciso I do art. 116 do Código Penal determina a suspensão do prazo prescricional enquanto não resolvida, em outro processo, questão de que dependa o reconhecimento da existência do crime.
No caso julgado no RE 966.177/RS, que trata da tipicidade da exploração do jogo de azar, de fato se trata de resolver questão a respeito da existência da infração penal. Mas nem todos os casos de repercussão geral em matéria criminal versarão necessariamente sobre a existência da infração. Ainda que sob o pretexto de interpretar conforme a Constituição o inciso I do art. 116, parece um tanto excessivo interpretá-lo para fundamentar a suspensão do prazo prescricional em qualquer caso de repercussão geral. Por isso, será importantíssimo, nos recursos em que doravante a repercussão geral seja reconhecida em matéria criminal, que o relator no STF avalie a efetiva relação da questão a ser julgada com as disposições do inciso I do art. 116. Dessa forma, ainda que se insista na necessidade de lei para a imposição de causa suspensiva da prescrição, ao menos se limita a extensão da medida determinada por decisão judicial.
Por fim, o ministro Marco Aurélio sustentou que o poder de que dispõe o relator no STF para obstar o andamento de todos os processos em curso contraria o inciso XXXV do art. 5º da Constituição FederalXXXV - a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito;, pois impede-se o regular pronunciamento do órgão judicial – o ministro, aliás, aproveitou para se pronunciar pela inconstitucionalidade do art. 1035, § 5º, do CPC. Destacou ainda o ministro que a natureza do processo penal impede a suspensão, pois na apuração de crimes há elementos que devem ser obtidos com a máxima imediatidade, sob pena de que se percam pelo decurso do tempo, normalmente longo quando se trata de julgar questões de repercussão geral reconhecida pelo STF.
Diante, no entanto, da possibilidade de que sejam adotadas medidas de urgência, parece-nos que este último argumento não se sustenta. O maior óbice, portanto, não é a suspensão do curso da ação penal, mas, como destacou o ministro Fachin, é a suspensão do prazo prescricional sem que haja lei expressa a admitindo.