Quando era criança, tinha a impressão de que as pessoas com 50 anos de idade já estavam na velhice. Os tempos eram outros e a qualidade de vida também não era a dos tempos atuais. Lembro que na comemoração dos 100 anos do meu bisavô materno, na década de 80 do século passado, teve, até, reportagem das emissoras de TV, noticiando quão inusitado era o acontecimento.
O inesquecível CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE, em texto datado de 1961, explicava que, devido à expectativa de vida, “não se faziam anos, completavam primaveras”(Caminhos de João Brandão, p. 86).
Pois bem, dúvida inexiste acerca da necessidade de proteção das pessoas idosas. Máxime em um país que vai alterando a curva demográfica e que, em breve tempo, terá uma população considerada idosa, conforme dados oficiais do IBGE.
Quando o Estatuto do Idoso foi editado, em 2003, levaram em conta o critério até então prevalecente para caracterizar o Idoso: pessoa com idade igual ou superior a 60 anos de idade (art. 1o). Era justificável naquele momento. A proteção integral e a prioridade absoluta deferidas aos idosos se mostravam compatíveis com o critério etário (objetivo) estabelecido.
Ao longo desses 14 anos, todavia, foram intensas as alterações na sociedade e na vida humana, em especial das pessoas acima dessa idade. A intensa medicalização da vida (com descobertas científicas importantes), os tratamentos estéticos e embelezadores (que transpassam a mera vaidade, contribuindo para uma melhor qualidade de vida), a longevidade das relações afetiva, sexual e emocional (fruto de tratamentos médicos e psíquicos), a descoberta da cura de doenças até então desconhecidas, as reformas na legislação (impondo um aumento na idade laborativa e produtiva), a expansão das atividades físicas são alguns dos fatores que, a toda evidência, modificaram o perfil da sociedade brasileira.
Como não lembrar de Oscar Niemayer e Dorival Caymmi, dentre outros, que atingiram idades centenárias produzindo – e com absoluta vitalidade e lucidez invulgar.
Quantas vezes não nos pegamos surpresos ao perceber que certas pessoas (artistas, por exemplo) estão chegando aos 60 anos de idade, com aparência muito mais jovem?
Talvez por isso, vem se tornando comum (e justíssimo!!!) dizer, em nossos dias, que uma pessoa com 50 anos de idade é jovem. Quando muito (para aquelas pessoas com um certo tom ácido nas palavras) o que se fala, atualmente, é que a pessoa nessa idade está “em sua melhor fase”.
A morte na fase dos 60 anos se tornou surpreendente, impiedosa, inoportuna! As pessoas vivem (e bem!) muito mais do que isso.
Pessoas na faixa dos 60 anos de idade estão na absoluta maturidade do seu pensamento, comportamento e atitude. São atletas, pensadores, profissionais, produtivíssimos, enfim, humanos na plenitude de suas vidas! Se o Estatuto do Idoso fosse elaborado hoje, talvez, tivesse outra parametrização etária.
A Lei n. 13.466/17 veio, nessa ambiência, a estabelecer uma prioridade (inclusive para atendimento no sistema de saúde – art. 15 do Estatuto do Idoso – e nos processos judiciais – art. 71 do Estatuto do Idoso) para as pessoas com mais de 80 anos de idade. Entendi que se trata de uma diferenciação entre aqueles que já merecem prioridade. Não se trata de ampliação de privilégio, mas de seletividade de proteção, levando em conta que o idoso com 60 anos de idade (não necessariamente) tem a condição de vida daqueloutro, com mais de 80 anos.
Não é a primeira vez que o legislador assim procedeu. Em 2016, foi editado o Estatuto da Primeira Infância, dedicando proteção diferenciada para crianças de até 6 anos de idade. A lógica foi a mesma!
Recorre ao meu pensamento a máxima da igualdade substancial de RUY BARBOSA (em sua Oração aos Moços – disponível aqui, uma imperdível leitura): aquinhoar desigualmente quem está em posição desigual.
De fato, em épocas tão complexas, com tamanhas desigualdades sociais e econômicas e com um evidente descrédito do poder público (merecidamente, é verdade), todo privilégio parece descabido. Adiro! Porém, a mim parece que essa tutela jurídica especial para os maiores de 80 anos de idade é mais um recálculo, uma readequação etária, do que uma nova preferência legal. Até porque essas pessoas já estavam protegidas.
Em suma, talvez, realmente, o momento não seja o mais apropriado para falar em privilégio, mas o próprio aumento da expectativa de vida dos brasileiros já estava a exigir um olhar diferenciado para quem tem mais de 80 anos de idade em relação aos “jovens” de 60 anos, no auge de sua vitalidade e produtividade. Isso tudo sem, por óbvio, retirar a proteção dedicada aos maiores de 60 anos de idade e já incorporada ao sistema – até mesmo em respeito ao princípio implícito na Constituição da República da proibição de retrocesso social.
E nada melhor do que a sensibilidade de RUBEM ALVES para colocar pá de cal em eventuais dúvidas: “os que estão partindo estão vivendo… Eles precisam de tantos cuidados quanto aqueles que estão nascendo…. A despedida pode ser vivida talvez como um retorno ao como materno” (Concerto para corpo e alma, p. 131).