Na semana que passou, o Superior Tribunal de Justiça aprovou o Enunciado 594 da Súmula de sua jurisprudência, reconhecendo, definitivamente, a legitimidade do Ministério Público para promover ação de alimentos em favor de criança e adolescente.
Reza, in litteris, o texto sumulado pela 2ª Seção, que tem legitimidade para julgar questões sobre direitos privados: “O Ministério Público tem legitimidade ativa para ajuizar ação de alimentos em proveito de crianças e adolescentes independentemente do exercício do poder familiar dos pais ou do fato de o menor se encontrar nas situações de risco descritas no artigo 98 do ECA ou de quaisquer outros questionamentos acerca da existência ou eficiência da Defensoria Pública na comarca.”
Fiquei feliz (e, de certo modo, confesso, orgulhoso). É que já venho defendendo esse posicionamento de há muito, há cerca de 15 anos. Um dos precedentes que inspirou a edição da Súmula, inclusive, foi prolatado em recurso especial interposto contra um acórdão do TJBA em sede de apelação cível que interpus, no exercício das atividades na Promotoria de Justiça, para atacar uma decisão que havia indeferido uma petição inicial do MP, em ação de alimentos, na proteção de interesses infanto-juvenis, sob o argumento da ilegitimidade. Naquela oportunidade já vínhamos obtendo êxito, reconhecida a legitimidade ministerial.
Por igual, desde a primeira edição de nosso CURSO DE DIREITO CIVIL: Famílias já abraçando esse posicionamento.
Aliás, a questão parece não suscitar maiores dúvidas a partir da cuidadosa leitura do art. 201, III, do Estatuto da Criança e do Adolescente, cuja clareza solar fala por si, legitimando o Promotor de Justiça para a ação de alimentos em favor de criança e adolescente. A regra é clara, sem duvida!
Nunca entendi como se poderia interpretar uma norma com o propósito de limitar o exercício de direitos. Até mesmo porque em um país com tantas desigualdades sociais e econômicas, negar legitimidade ao MP importaria reduzir a proteção das crianças e adolescentes. E, invocando a conhecida frase do jurista francês Georges Ripert, quando o Direito ignora a realidade, ela se vinga, ignorando o Direito.
A Súmula, nesse contexto, tem o relevante papel de colocar pá de cal em uma duvida: a legitimidade do MP para a ação de alimentos não depende da inexistência, ou precariedade, da Defensoria Pública na comarca. Há absoluta lógica. Isso porque a atuação da Defensoria Pública está pautada por uma lógica bem distinta da atuação do Ministério Público. Enquanto a Defensoria atua (muitas vezes de forma heroica, reconheça-se, pela falta de estrutura, indevidamente negligenciada pelo Poder Público) na proteção dos interesses de pessoas hipossuficientes economicamente (CF 134), o MP, por seu turno, atua na defesa dos interesses sociais e individuais indisponíveis (CF 127).
São critérios distintos de atuação que, eventualmente, podem propiciar uma legitimidade concorrente entre o MP e a Defensoria. Basta imaginar uma criança ou adolescente carente economicamente que precisa reclamar alimentos de seus familiares. Tanto um quanto o outro estão legitimados para a demanda. Por isso, sobrevindo desistência da ação por um deles, o outro pode assumir a titularidade e prosseguir na demanda.
É certo – e isso não se põe em dúvidas – que os alimentos para a subsistência de criança e adolescente possuem natureza indisponível, dizendo respeito à sua integridade e dignidade. Bem por isso, inclusive, o seu inadimplemento constitui a única hipótese de prisão civil por dívida, em nosso sistema constitucional (CF 5º, LVXII). Por isso, não há como negar a legitimidade ministerial. A matéria versa sobre direito indisponível, disso defluindo a sua legitimidade, ainda que se tenha Defensoria atuando na comarca (na defesa das pessoas hipossuficientes economicamente).
E, por absoluta linha de coerência, essa legitimidade ministerial também independe da caracterização de situação de risco (ECA 98). Isso porque mesmo que a criança ou adolescente não esteja em situação de risco, o interesse jurídico permanece indisponível, não sofrendo mutação de sua natureza.
É curioso perceber que a competência para a ação de alimentos em favor de criança ou adolescente (dirigida contra seus pais, avós ou demais parentes) é da vara de família, e não da vara da infância e juventude, a partir da compreensão de que não há situação de risco (ECA 148 c/c 98). Mesmo que a ação seja ajuizada pela Promotoria de Justiça da Infância Juventude, na defesa infanto-juvenil, a competência será da vara de família.
Cimentar o entendimento jurisprudencial em um enunciado tem o grande mérito de pacificar eventuais dúvidas e conferir estabilidade/segurança jurídica. Não mais se colocará em xeque a legitimidade ministerial, maximizando a proteção de criança e adolescente.
Torço para que os pais tenham consciência da relevância da alimentação adequada de crianças e adolescentes como mecanismo de garantia de sua integridade e efetivação de uma vida digna. Se, por um lado, a Lei não é suficiente para colocar amor no coração dos pais, por outro turno, a clareza do texto legal ajuda a conferir mais efetividade ao Direito e, assim, fomentar um tempo de mais responsabilidade parental.
Até porque ter um filho é fácil, mas educá-lo e bem criá-lo se mostram tarefas bem mais difíceis – a exigir, nesse ponto, uma atuação sensata e consistente do Ministério Público brasileiro.
Para além do texto sumulado, exorto uma reflexão: ao genitor (nem sei se devo chamar de pai ou mãe) que se recusa a prestar alimentos ao filho, impondo uma atuação do MP, além de uma demanda judicial desgastante em que o filho se põe quase a implorar pela própria subsistência, não seria possível aplicar o conceito de indignidade (CC 1.708), para fins de se impedir que cobre alimentos desse filho (a quem nega pensão) no futuro, quando se enquadrar como idoso? Ou, pelo menos, impor uma prestação mínima?
Acho que vale a reflexão como estímulo à responsabilidade parental, para que não se incorra na lástima de Franz Kafka ao perceber que “os pais que esperam gratidão de seus filhos (inclusive há os que a exigem) são como agiotas; eles até gostam de arriscar seu capital, contanto que recebam juros por ele”.