Maria Vitoria Resedá (Vica), minha eficiente assistente, com razão, chama a atenção para o fato de que o legislador brasileiro parece manter a tradição do comportamento da maioria de nosso povo, deixando para fazer em dezembro aquilo que, durante 11 meses, não fez.
Desde sempre, o final do ano é repleto da edição de novas leis, muita vez, com inovações consideráveis. Procurando alguma razão técnica (se é que existe), talvez se possa debitar ao término da legislatura, evitando o arquivamento de projetos normativos. Talvez…. Ou talvez Vica tenha razão….
Mantendo essa perspectiva, o Diário Oficial de hoje dá à luz a Lei 13.532/17. Direta e objetiva, a norma legal legitima o Ministério Público para a propositura da ação de indignidade sucessória (aquela demanda tendente a excluir o herdeiro ou legatário da participação sucessória por ter praticado um ato ignóbil), quando se tratar de homicídio doloso, tentado ou consumado.
A posição adotada pelo legislador já contava com a simpatia doutrinária, tendo sido proclamada pelo Enunciado 116 das Jornadas de Direito Civil.
A legitimidade ministerial, todavia, é restritiva e limitada. Somente pode o Parquet promover a ação quando o ato de indignidade consistir em homicídio doloso, tentado ou consumado, contra o autor da herança, seu cônjuge ou companheiro, ascendente ou descendente. Seria o exemplo do herdeiro que mata, ou tenta matar, um dos pais, a madrasta/padrasto ou irmão. Como não lembrar o triste episódio de Suzane Von Richtofen, em São Paulo, que participou do homicídio dos pais? Nos demais casos de indignidade (incisos II e III do CC 1.814), não pode o MP ajuizar a demanda.
Tenho algumas ponderações, cuidadosamente dirigidas à citada legitimidade ministerial.
Uma: o objetivo da ação de indignidade é privar um herdeiro do recebimento da herança, transferindo o seu quinhão para os seus descendentes, como se morto fosse, ou, não tendo descendentes, redistribuindo entre os demais coerdeiros. Ora, trata-se de interesse claramente privado, particular. Não há qualquer interesse social na distribuição de uma herança (patrimônio) privada. Até porque, não esqueçamos, os interessados podem perdoar o indigno, não propondo a ação. Ilustrando, se o irmão de Suzane desejasse, ele poderia, no exercício de sua autonomia privada, não ajuizar a ação e manter a partilha entre ambos.
Duas: o art. 127 da CF estabelece que os contornos da atuação do MP gravitam ao derredor da existência de interesse social ou individual indisponível. Ora, na ação de indignidade decorrente de homicídio, não se detecta qualquer interesse social ou individual indisponível, o que torna o dispositivo de duvidosa compatibilidade constitucional.
Três: parece que a nova lei incorreu em uma certa confusão conceitual entre os efeitos penais e civis decorrentes do homicídio. A autonomia das instâncias, consagrada pelo CC art. 935, deixa clara que de um fato podem decorrer efeitos diversos, na área cível ou criminal. Homicídio gera um interesse social pelo ângulo da persecução penal, sem duvida. Porém, eventuais efeitos civis são autônomos e independentes.
O MP não poderia, sequer, ajuizar ação de reparação de danos sofridos pela vítima ou sua família, salvo se se tratar de pessoa hipossuficiente economicamente e sem defensoria pública na comarca (tese da inconstitucionalidade progressiva do CPP 68, abraçada pelo STF, RE 135.328/SP, rel. Min. Marco Aurélio). Sendo autônomas as instâncias, não parece ser justificável tratar a indignidade sucessória como matéria de ordem pública. Até mesmo porque é uma relação privada, consistente na transferência de patrimônio entre particulares.
Para além de tudo isso, os sombrios tempos contemporâneos, notabilizados pela insistente malversação dos cofres públicos e pela periclitação de valores transindividuais (com sérios danos ambientais, à saúde pública, às relações de consumo….), parecem apontar para uma maior necessidade de atuação efetiva do Ministério Público nesses setores. Enfim, acho que o MP tem um papel mais relevante a cumprir na sociedade brasileira atualmente.
A pretensão de um coerdeiro que pretende sancionar um outro, por ter cometido atos indignos, é particular, devendo ser levada adiante por advogado ou defensor público, e não pelo MP – que é o próprio Estado, em última análise.
Volvendo a visão para a estrutura interna do MP, a legitimidade para o ajuizamento da medida será do Promotor de Justiça com atuação na área sucessória, em razão da matéria. Não se exige prévia condenação pelo juiz criminal, podendo a prova ser produzida diretamente no juízo cível (CC 935). Nesse caso, o ônus de prova da existência do homicídio doloso, tentado ou consumado, será do Parquet.
Prospecto, de toda forma, uma situação: o MP precisaria de anuência dos demais coerdeiros para aforar a ação? Se os coerdeiros interessados quiserem perdoar, o MP pode promover a ação? E, podendo, os herdeiros beneficiários poderiam, então, doar para o indigno o patrimônio, pagando a tributação correspondente? São questões que realçam, ao meu sentir, o caráter privado da matéria sob exame.
Parece-me, em última análise, que a repugnância que o homicídio causa em todos nós terminou por induzir a uma confusão conceitual entre os efeitos penais e civis dele eventualmente decorrentes.