O art. 7º, inc. IX, da Lei 8.137/90 pune, com detenção de dois a cinco anos, ou multa, as condutas de vender, ter em depósito para vender ou expor à venda ou, de qualquer forma, entregar matéria-prima ou mercadoria em condições impróprias ao consumo.
Trata-se de crime que visa a tutelar as relações de consumo ao punir práticas comerciais nocivas sobretudo à saúde dos consumidores. Embora não se trate de crime contra a saúde pública, não há dúvida de que o bem jurídico mais atingido por este tipo de conduta é o bem-estar dos consumidores. Não são tão raros os casos em que produtos comercializados em condições higiênicas inadequadas ou mesmo produzidos sem nenhum zelo para que cumpram corretamente a finalidade à qual se destinam acabem por causar sérios danos à saúde de quem os adquire.
O art. 18, § 6º, do Código de Defesa do Consumidor estabelece serem impróprios para o consumo:
I – os produtos cujos prazos de validade estejam vencidos;
II – os produtos deteriorados, alterados, adulterados, avariados, falsificados, corrompidos, fraudados, nocivos à vida ou à saúde, perigosos ou, ainda, aqueles em desacordo com as normas regulamentares de fabricação, distribuição ou apresentação;
III – os produtos que, por qualquer motivo, se revelem inadequados ao fim a que se destinam.
Mas seria a simples disposição da lei consumerista suficiente para nortear o aplicador da lei penal quanto à caracterização do crime? A resposta é negativa.
Isto porque, como dispõe o art. 158 do Código de Processo Penal, uma vez que a infração penal deixe vestígios é “indispensável o exame de corpo de delito, direto ou indireto, não podendo supri-lo a confissão do acusado”.
Ora, o delito do art. 7º, inciso IX, da Lei 8.137/90 é essencialmente não transeunte (ou de fato permanente), pois sua prática deixa vestígios materiais que devem ser constatados mediante perícia. Há quem critique a obrigatoriedade contida no art. 158 do CPP, que seria um resquício do sistema tarifado (ou legal) de prova, em contraste com o do livre convencimento. Mas, na verdade, pretendeu o legislador cercar-se de certas garantias contra acusações injustas e, em virtude disso, preferiu relacionar a prova do fato (e, em última análise, a condenação do réu), à existência do exame de corpo de delito, vinculando o juiz a tal prova.
O STJ tem se orientado francamente no sentido de que o crime pressupõe a realização de exame de corpo de delito, razão por que não basta a apreensão de produtos aparentemente impróprios para uso e consumo:
“Conquanto parte da doutrina e da jurisprudência entendam que o delito previsto no art. 7º, IX, da Lei n. 8.137/1990, crime formal, de perigo abstrato, seja norma penal em branco, cujo elemento normativo do tipo “impróprio para consumo” deve ser complementado pelo disposto no art. 18, § 6º, do Código de Defesa do Consumidor, a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça entende que há necessidade de realização de exame pericial nos produtos pretensamente impróprios, a fim de que seja comprovada a sua real nocividade para consumo humano, sob pena de inaceitável responsabilidade penal objetiva” (RHC 69.692/SC, DJe 13/6/2017).
Recentemente, o tribunal proferiu outra decisão reconhecendo a falta de justa de causa para a ação penal baseada apenas na apreensão de produtos com prazo de validade expirado.
No caso, os agentes tinham em depósito para venda aditivos e matérias-primas para fabricação de linguiças com prazo de validade vencido. Sem que houvesse sido realizada a perícia, foram denunciados pela prática do crime contra as relações de consumo.
O Tribunal de Justiça de Santa Catarina negou o trancamento da ação penal por considerar que o crime é formal e de perigo abstrato, o que dispensaria a feitura de exame que comprovasse a nocividade dos produtos apreendidos.
O STJ, contudo, concedeu a ordem de habeas corpus invocando seus precedentes no sentido de que as disposições do art. 158 do CPP são de observação obrigatória para crimes dessa natureza, sendo que o exame não se realizou porque, no mesmo dia em que apreendidos durante a inspeção sanitária, os produtos foram incinerados, fazendo com que fossem destruídos os vestígios que poderiam comprovar a infração penal.
Vê-se, desse modo, que para o STJ a disposição do art. 18, § 6º, inciso I, do CDC não tem nenhum efeito na esfera criminal. A presunção, pela lei consumerista, de que o prazo de validade vencido torna o produto impróprio para o consumo visa sobretudo a viabilizar a atuação preventiva dos órgãos de defesa do consumidor e de vigilância sanitária, que podem efetuar a apreensão e adotar as medidas cabíveis na esfera administrativa (multa, interdição, etc.). Mas, no âmbito criminal, a impropriedade do produto deve ser apurada concretamente.
HC 412.180/SC, DJe 19/12/2017.
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