Conforme já anunciava na nova edição do nosso CURSO DE DIREITO CIVIL: Parte Geral – edição 2018, o STF acaba de autorizar, há pouco, POR UNANIMIDADE, a possibilidade das pessoas transgêneros alterarem o nome e o estado sexual, independentemente de cirurgia de transgenitalização (conhecida como mudança de sexo).
Ao julgar, hoje, a ADIn 4275 (rel. Min. Marco Aurélio), a Corte Suprema consagrou o aludido entendimento que terá, como lhe é corolário, efeitos vinculantes e erga omnes.
Mas, não foi só. Na decisão, foi determinado que se proceda interpretação conforme a Constituição ao art. 58Art. 58. O prenome será definitivo, admitindo-se, todavia, a sua substituição por apelidos públicos notórios. da Lei n.6.015/73 – Lei de Registros Públicos, compreendendo, doravante, que é direito potestativo de toda pessoa transgênero declarar diretamente no cartório do Registro Civil, onde estiver registrada, qual o estado sexual (gênero) em que se enquadra, mesmo que não tenha realizado a cirurgia de mudança de sexo.
Desatrelam-se os conceitos de gênero sexual e genitália – que, a toda evidência, não se confundem. Afinal de contas, o estado sexual de uma pessoa não se restringe ao seu órgão genital! Por isso, de fato, é possível a alteração sem cirurgia.
No ponto, a psicóloga brasileira REGINA NAVARRO LINS, em excelente obra recém lançada (Novas formas de amar, Ed. Planeta), explica, com didática e precisão científica, que esses conceitos são autônomos, não podendo serem confundidos com a própria orientação sexual. E bem por isso a ocorrência independe de uma idade mínima, por não se enquadrar no campo da orientação de cada um.
A orientação do STF harmoniza o sistema jurídico brasileiro com outros países que vinham conferindo tratamento mais contemporâneo ao tema, como a vizinha Argentina, ao autorizar a mudança de nome e de gênero sexual diretamente no cartório, independentemente de decisão judicial ou intervenção fiscalizatória do Ministério Público.
No ponto, em respeito à facilitação de acesso à Justiça, garantida constitucionalmente (CF, art. 5o, XXXVArt. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: (...) XXXV - a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito;), me parece que as ações de redesignação sexual em tramitação no Judiciário devem ser julgadas (lembrada a eficácia vinculante do entendimento hoje consagrado), não devendo serem extintas sem resolução de mérito – para evitar que o interessado sofra uma perda de tempo. Novos pedidos de mudança, no entanto, podem ser extintos sem resolução de mérito, por falta de interesse de agir, uma vez que é possível a alteração do nome e do estado sexual direto no cartório, sem perquirições e sem prova da cirurgia.
Entendo, porém, que, uma vez realizada a alteração do registro civil no cartório, se o titular pretender, posteriormente, realizar uma nova mudança, deve ser encaminhado ao Poder Judiciário, para que o Estado determine um acompanhamento psicológico e médico, antes de uma nova deliberação, obstando uma insegura jurídica.
Vale chamar a atenção, ainda, para o fato de que a decisão do STF, expressamente, assevera que o direito à mudança do nome e estado sexual em cartório não depende de uma idade mínima. Sob o prisma prático, porém, me parece que, em se tratando de interesse infanto-juvenil, há de se exigir a regular representação ou assistência no cartório, para acobertar o ato com o manto da validade. Havendo divergência entre o representante/assistente e o incapaz, aí sim, o juiz deliberará, ouvido o Promotor de Justiça como fiscal da ordem jurídica.
São inúmeros os casos de transgêneros infanto-juvenis que ganharam publicidade, explicitando o acerto da decisão do STF.
De todo modo, vamos a uma questão prática: e se um cartório se recusar a proceder à alteração, a pedido do interessado? Cabe um procedimento administrativo de duvida, para que o juiz de registros públicos esclareça o assunto, em decisão que comporta recurso, independentemente de sua responsabilização civil e administrativa, por desafiar uma decisão da Corte Suprema com efeitos vinculantes.
Sem duvida, é uma situação nova, descortinando um novo cenário e um novo sistema jurídico. Exige-se, assim, dos juristas uma nova postura, mais humana, menos preconceituosa, garantindo maior inclusão social.
Aprisionar uma pessoa em um enquadramento que não corresponde à sua personalidade seria violar, a mais não poder, a sua dignidade, ferindo a sua essência humana, o que ela é!!!
E não se objete que haveria interesse público em controlar essa alteração. Com a mudança, a pessoa passa a ser tratada pelo seu novo estado sexual para todos os fins, inclusive previdenciários. Até porque aquele sempre deveria ter sido o seu gênero sexual. Até o Comitê Olímpico Internacional – COI já vinha reconhecendo o direito de participar de competições esportivas.
A premissa desse admirável mundo novo talvez tenha sido muito bem formada pela genialidade de CAETANO VELOSO: cada sabe a dor e a delicia de ser o que é…. E bem captando essa ideia, ao proferir o seu voto hoje, nesse julgamento, a Min. CÁRMEN LÚCIA consignou que “só quem sofre preconceito é que pode falar”, conclamando todos a uma compreensão da matéria com respeito às diferenças.