É sabido que deve haver perfeita relação entre o fato narrado na denúncia ou queixa e aquele pelo qual foi o réu condenado. Tal vínculo, fundamental e imprescindível, entre a imputação e a sentença, decorre do chamado princípio da correlação ou princípio da congruência da condenação com a imputação ou princípio da correspondência entre o objeto da ação e o objeto da sentença.
Por conta de tal princípio, portanto, não pode o juiz, de forma alguma, desvencilhar-se do fato trazido pelo autor na inicial, não devendo julgar, portanto, nem além, nem aquém e nem fora do que foi narrado pela acusação.
A doutrina sempre ensinou, porém, que a correspondência que se exige é aquela existente entre o fato e a sentença, não entre a capitulação dada pelo acusador e a decisão final do juiz. Em outras palavras: o julgador não está vinculado à classificação legal, sugerida pela denúncia ou queixa, podendo, em consequência, “atribuir-lhe [ao fato] definição jurídica diversa, ainda que, em consequência, tenha de aplicar pena mais grave”, conforme expressamente previsto no art. 383 do CPP.
Tal possibilidade decorre, basicamente, de dois fatores. O primeiro deles é que o juiz tem a livre dicção do direito, conhece o direito, de quem cabe cuidar, isto é, jura novit curia. E, em segundo lugar, que o réu se defende não do dispositivo penal apontado pelo acusador na inicial, mas sim dos fatos por ele narrados. Tal constatação vem consubstanciada no princípio narra mihi factum dabo tibi jus, ou seja, narra-me o fato (ao julgador) e te darei o direito. Nesta situação, em que o fato é perfeitamente narrado na denúncia ou queixa, pode o juiz corrigir o libelo, isto é, a acusação, no que se chama emendatio libelli, dando ao fato a capitulação legal que bem entender, sem que precise adotar nenhuma providência prévia, ainda que, em decorrência de tal alteração, tenha a pena que ser aumentada. Assim, tomemos como exemplo uma denúncia em que se narra a conduta do agente que, para alcançar o interior de um imóvel, escalou o muro e o telhado do vizinho, entrou na residência, praticou a subtração e se evadiu. Se este fato está perfeitamente narrado na denúncia, e isso proporcionou o amplo direito de defesa, o juiz pode condenar o réu por furto qualificado ainda que o promotor, por equívoco, tenha feito a imputação do art. 155, caput, que tipifica o furto simples. Para a corrente doutrinária tradicional, não se pode argumentar ter sido o réu tomado de surpresa, de forma a ver prejudicada sua defesa. Não, pois sua defesa – repita- se – refere-se ao fato narrado na inicial, não à classificação que lhe foi conferida pela denúncia.
A jurisprudência, no geral, sempre seguiu essa orientação:
“Não houve alteração do contexto fático relatado na denúncia, quando foi expressamente descrita a ocorrência do falecimento de duas das vítimas, configurado o concurso formal impróprio. Permanecendo a fidelidade aos fatos narrados, não há óbice ao julgador os adequar a nova tipificação, evidenciada a hipótese de emendatio libelli, perfeitamente admissível. 3. Agravo regimental improvido” (STJ: AgRg na RvCr 4.109/MT, DJe 27/02/2018).
“1. Fato descrito na denúncia em sintonia com o fato pelo qual o réu foi condenado. 2. A circunstância de não ter a denúncia mencionado o art. 13, §2°, a, do Código Penal é irrelevante, já que o acusado se defende dos fatos narrados e não da capitulação dada pelo Ministério Público. 3. O juiz pode dar aos eventos delituosos descritos na inicial acusatória a classificação legal que entender mais adequada, procedendo à emenda na acusação (emendatio libelli), sem que isso gere surpresa para a defesa. 4. A peça inicial acusatória, na forma redigida, possibilitou ao Paciente saber exatamente os fatos que lhe eram imputados, não havendo que se falar em acusação incerta, que tivesse dificultado ou inviabilizado o exercício da defesa. 5. Ordem denegada” (STF: HC 102.375/RJ, DJe 20/08/2010).
Há, no entanto, na doutrina contemporânea, quem defenda a necessidade de promover o contraditório – ainda que a denúncia tenha narrado adequadamente os fatos –, pois, a depender das circunstâncias, é possível que o acusado convença o juiz de que a capitulação jurídica deve permanecer exatamente como estabeleceu inicialmente o Ministério Público.
Aqueles que endossam essa tese o fazem sobretudo com fundamento nos artigos 9º e 10 do Código de Processo Civil, que dispõem:
“Art. 9o Não se proferirá decisão contra uma das partes sem que ela seja previamente ouvida.
Art. 10. O juiz não pode decidir, em grau algum de jurisdição, com base em fundamento a respeito do qual não se tenha dado às partes oportunidade de se manifestar, ainda que se trate de matéria sobre a qual deva decidir de ofício”.
Vê-se que a lei processual civil prestigia a garantia constitucional, assegurada aos litigantes e aos acusados em geral. Não obstante se trate de norma que disciplina o processo civil, argumenta-se que não há motivo para não aplicá-la também no âmbito penal, não somente porque se trata de um fundamento do processo – pouco importa sua natureza –, como também porque, no processo penal, é ainda mais importante que o acusado tenha voz, pois o resultado da ação penal atinge diretamente seu status libertatis.
A respeito, temos a lição de Gustavo Badaró Disponível em http://badaroadvogados.com.br/download.php?f=5d91bae3a0a7c6640f59c68982282c3, segundo quem “a garantia constitucional do contraditório é fator de legitimação da atividade jurisdicional, por permitir que os destinatários do ato final de poder, no caso, a sentença, participem de sua elaboração, argumentando, provando e influindo no convencimento judicial.
A garantia do contraditório não se aplica apenas na atividade probatória. Também as questões de direito devem ser debatidas em contraditório de partes, mesmo que se trate de matérias congnoscíveis de ofício pelo juiz.
O art. 383 do Código de Processo Penal apenas permite que o juiz possa dar ao fato uma definição jurídica diversa. Não determina, porém, que possa fazê-lo diretamente, surpreendendo as partes.
O art. 10 do Código de Processo Civil, por tratar do conteúdo da garantia do contraditório, é aplicável, por analogia, ao processo penal, como permite o art. 3º do Código de Processo Civil, vez que o contraditório neste não pode ser menos intenso que naquele”.
Seguida a tendência proposta pela doutrina moderna, o juiz poderá, como dispõe o art. 383 do CPP, dar ao fato devidamente descrito na inicial acusatória definição jurídica diversa, ainda que o Ministério Público não faça nenhum requerimento a esse respeito. Mas, aplicando-se por analogia as regras fundamentais do processo civil, deverá o juiz instar o acusado para que se manifeste a respeito da nova definição e apresente argumentos que lhe possam favorecer.
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