O Superior Tribunal de Justiça editou, em data recente, a Súmula 606, cujo enunciado está vazado nos termos abaixo:
“Não se aplica o princípio da insignificância aos casos de transmissão clandestina de sinal de internet via radiofrequência que caracterizam o fato típico previsto no artigo 183 da lei 9.472/97.”
O enunciado em questão surgiu do entendimento consolidado na Corte Superior no sentido de ser inviável a aplicação do princípio da insignificância em caso do fornecimento de internet via rádio, ignorando-se a potência ou o número de acessos do provedor.
Duas são as questões que precisam ser enfrentadas na análise do entendimento esposado pelo STJ.
A primeira delas é a diferenciação necessária entre o serviço como provedor de internet e a atividade de telecomunicação.
A segunda é a possibilidade de aplicação do princípio da insignificância no fornecimento de internet.
Telecomunicação x valor adicionado
Quanto ao primeiro aspecto, há quem entenda ser o serviço como provedor de internet serviço de telecomunicação e quem entenda ser ele serviço de valor adicionado.
Calha transcrever os artigos da Lei 9472/97, que tratam do assunto em análise:
“Art. 60. Serviço de telecomunicações é o conjunto de atividades que possibilita a oferta de telecomunicação.
§ 1° Telecomunicação é a transmissão, emissão ou recepção, por fio, radioeletricidade, meios ópticos ou qualquer outro processo eletromagnético, de símbolos, caracteres, sinais, escritos, imagens, sons ou informações de qualquer natureza.
§ 2° Estação de telecomunicações é o conjunto de equipamentos ou aparelhos, dispositivos e demais meios necessários à realização de telecomunicação, seus acessórios e periféricos, e, quando for o caso, as instalações que os abrigam e complementam, inclusive terminais portáteis.
Art. 61. Serviço de valor adicionado é a atividade que acrescenta, a um serviço de telecomunicações que lhe dá suporte e com o qual não se confunde, novas utilidades relacionadas ao acesso, armazenamento, apresentação, movimentação ou recuperação de informações.
§ 1º Serviço de valor adicionado não constitui serviço de telecomunicações, classificando-se seu provedor como usuário do serviço de telecomunicações que lhe dá suporte, com os direitos e deveres inerentes a essa condição.
§ 2° É assegurado aos interessados o uso das redes de serviços de telecomunicações para prestação de serviços de valor adicionado, cabendo à Agência, para assegurar esse direito, regular os condicionamentos, assim como o relacionamento entre aqueles e as prestadoras de serviço de telecomunicações.”
Como se vê, o texto legal parece excluir de forma clara a prestação como provedor de internet de serviço de telecomunicação, caracterizando-o como serviço de valor adicionado.
Aliás, em matéria tributária, o STJ tem jurisprudência pacífica no sentido de que se trata de serviço de valor adicionado e não de telecomunicação, não fazendo qualquer distinção entre o tipo de acesso à internet fornecido pelo provedor:
“PROCESSUAL CIVIL E TRIBUTÁRIO. AGRAVO REGIMENTAL NO AGRAVO. RECURSO ESPECIAL. SUPOSTA OFENSA AO ART. 535 DO CPC. INEXISTÊNCIA DE VÍCIO NO ACÓRDÃO RECORRIDO. ICMS. PROVEDOR DE ACESSO À INTERNET.
NÃO-INCIDÊNCIA. SÚMULA 334/STJ.
1.Não havendo no acórdão recorrido omissão, obscuridade ou contradição, não fica caracterizada ofensa ao art. 535 do CPC.
2. Não incide o ICMS sobre o serviço prestado pelos provedores de acesso à internet, uma vez que a atividade desenvolvida por eles constitui mero serviço de valor adicionado, nos termos do art. 61 da Lei n. 9.472/97 e da Súmula 334/STJ.
3. Agravo regimental não provido.” (AgRg no AREsp 357.107/SC, Rel. Ministro MAURO CAMPBELL MARQUES, SEGUNDA TURMA, julgado em 17/09/2013, DJe 25/09/2013)
Da mesma forma, a Primeira Turma do STF, ao julgar o HC 127978, entendeu não ser a oferta de serviço de internet serviço de telecomunicação:
“DIREITO PENAL. Submete-se ao princípio da legalidade estrita. SERVIÇO DE INTERNET – ARTIGO 183 DA LEI Nº 9.472/1997. A oferta de serviço de internet não é passível de ser enquadrada como atividade clandestina de telecomunicações – inteligência do artigo 183 da Lei nº 9.472/1997.” (HC 127978, Relator(a): Min. MARCO AURÉLIO, Primeira Turma, julgado em 24/10/2017, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-276 DIVULG 30-11-2017 PUBLIC 01-12-2017)
Por sua vez, o STF, ao julgar o HC 142738, em decisão monocrática do Ministro Relator, Gilmar Mendes, denegou a ordem. Todavia pareceu tratar mais, em sua fundamentação, do crime ligado à rádio comunitária que ao fornecimento de internet. A Defensoria Pública da União manejou agravo interno, pedindo que ele fosse julgado de forma presencial, o que não ocorreu. Mesmo assim, embora desprovido o recurso, o Ministro Celso de Mello ficou vencido. Em seguida, foi apresentado pedido de anulação do julgamento para que ele seja feito de forma presencial, ainda não apreciado.
Insignificância
Contudo, caso se entenda ser o fornecimento de internet serviço de telecomunicação, ainda assim impende analisar a possibilidade de aplicação do princípio da insignificância, ou não, de acordo com o caso em concreto.
Não se desconhece que o crime em questão é de perigo abstrato. Todavia, tal circunstância, por si só, não impede a aplicação do princípio da insignificância, ao contrário do decidido pelo STJ, tanto que mesmo no caso específico das chamadas rádios comunitárias, o Supremo Tribunal Federal tem aplicado a bagatela quando verifica que os dados contidos no caso concreto assim o permitem, vide, à guisa de exemplificação, a ementa do HC 138134:
“Ementa: HABEAS CORPUS. PROCESSUAL PENAL E PENAL. WRIT SUBSTITUTO DE RECURSO EXTRAORDINÁRIO: ADMISSIBILIDADE. DESENVOLVIMENTO CLANDESTINO DE ATIVIDADE DE TELECOMUNICAÇÃO. CRITÉRIOS OBJETIVOS PARA A APLICAÇÃO DO PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA. REQUISITOS PRESENTES NA ESPÉCIE: IRRELEVÂNCIA DA CONDUTA PRATICADA PELO PACIENTE. MATÉRIA QUE DEVERÁ SER RESOLVIDA NAS INSTÂNCIAS ADMINISTRATIVAS. ORDEM CONCEDIDA. I – Embora o presente habeas corpus tenha sido impetrado em substituição a recurso extraordinário, esta Segunda Turma não opõe óbice ao seu conhecimento. II – A Suprema Corte passou a adotar critérios objetivos de análise para a aplicação do princípio da insignificância. Com efeito, devem estar presentes, concomitantemente, os seguintes vetores: (i) mínima ofensividade da conduta; (ii) nenhuma periculosidade social da ação; (iii) reduzido grau de reprovabilidade do comportamento; e (iv) inexpressividade da lesão jurídica provocada. III – Ante a irrelevância da conduta praticada pelo paciente e da ausência de resultado lesivo, a matéria não deve ser resolvida na esfera penal e sim nas instâncias administrativas. IV – Ordem concedida.”(HC 138134, Relator(a): Min. RICARDO LEWANDOWSKI, Segunda Turma, julgado em 07/02/2017, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-060 DIVULG 27-03-2017 PUBLIC 28-03-2017)
Toda conduta penalmente proibida tem que ofender ou, ao menos ameaçar, ofender um bem jurídico relevante, sob pena de se transformar em crime fatos totalmente anódinos. Nesse sentido, o Ministro Cezar Peluso, ao proferir voto no HC 95861HC 95861, Relator(a): Min. CEZAR PELUSO, Relator(a) p/ Acórdão: Min. DIAS TOFFOLI, Segunda Turma, julgado em 02/06/2015, ACÓRDÃO ELETRÔNICO DJe-128 DIVULG 30-06-2015 PUBLIC 01-07-2015, citando artigo de Marta Rodriguez de Assis MachadoMACHADO, Marta Rodriguez de Assis. Sociedade do risco e direito penal: uma avaliação das novas tendências político-criminais. São Paulo: IBCCRIM, 2005, p. 129, fala em “ênfase desmedida sobre a segurança antecipatória”, para concluir pela necessidade de um mínimo de ofensividade como fator de delimitação de condutas que mereçam reprovação penal.
Em reforço à possibilidade de aplicação do princípio da insignificância, cabe destacar que a própria ANATEL editou a Resolução 580, em 2017, alterando a Resolução 614, de 2013, para dispensar de autorização o fornecimento de serviço de comunicação multimídia para prestadoras com até 5000 acessos com a utilização de equipamentos de radiocomunicação restrita:
“Art. 10-A. Independe de autorização a prestação do SCM nos casos em que as redes de telecomunicações de suporte à exploração do serviço utilizarem exclusivamente meios confinados e/ou equipamentos de radiocomunicação de radiação restrita.
§ 1º A dispensa prevista no caputaplica-se somente às prestadoras com até 5.000 (cinco mil) acessos em serviço.
A leitura do julgado e da norma acima transcritos leva à conclusão de que se considere o fornecimento de internet um crime que tenha como objetivo a proteção dos serviços de telecomunicação, é preciso que se verifique, na prática, se o equipamento usado pelo acusado tem condição de prejudicar os demais serviços. Ou seja, mesmo que não tenha chegado a prejudicar, deve haver a constatação, via pericial, de que o equipamento utilizado ao menos poderia causar danos (ter capacidade para tanto), para se configurar o crime. Todavia, em não se chegando a esse entendimento, não há sentido em se impor condenação penal por conduta incapaz de causar qualquer prejuízo, ainda que o delito seja de perigo abstrato.
Conclusão:
De qualquer modo, duas observações parecem afastar o enunciado da Súmula 606 do STJ, em sua vedação apriorística do delito de bagatela:
1 – A compreensão de que a conduta de se fornecer internet via rádio não se amolda ao tipo penal do artigo 183 da Lei 9472/97, como aduzido pelo Ministro Alexandre de Morais ao proferir voto no HC 127978:
“Presidente, eu acompanho Vossa Excelência, porque, como bem dito, no caso penal, as elementares devem ser interpretadas de forma bem específica, tanto que a nova Lei de Telecomunicações – que acabou sendo impugnada e agora voltou ao Senado para ser votada – já vem regulamentando exatamente essa questão da internet e a questão do que será, ou não, crime em relação à utilização clandestina na internet pela ausência, hoje, de um tipo penal específico.”
2 – Ou, ainda, a possibilidade de aplicação do princípio da insignificância, quando não provado que o equipamento utilizado ao menos possui capacidade de causar prejuízo ao bem jurídico protegido, interferindo, de qualquer modo, em outros veículos de comunicação. O direito penal deve se ocupar de condutas realmente relevantes e que possam, ao menos potencialmente, causar dano a bem jurídico relevante.
Aliás, como observa sempre o Ministro Ricardo Lewandowski ao proferir votos tratando de rádios comunitárias, deve prevalecer a liberdade de expressão, valorizando-se aqueles que ajudam na divulgação de ideias, de informações e de conhecimento. A criminalização de condutas que não causam mal ainda serve para inibir a atuação de quem presta serviço relevante à população.
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