O habeas corpus é o remédio jurídico destinado a tutelar a liberdade de locomoção do indivíduo. Protege, pois, o direito de ir, vir, ficar ou voltar, isto é, o direito de ir e vir para onde quer que se pretenda, mas diretamente relacionado ao indivíduo. Outros direitos líquidos e certos, mas que não se refiram à locomoção, podem ser amparados através de mandado de segurança, cuja aplicação é admitida no âmbito penal e que se presta, por exemplo, para liberação de bens sequestrados (STJ – RMS 56.799/MT, j. 12/06/2018). Afinal, conforme bem anotado pelo Ministro Celso de Mello, “a ação penal de habeas corpus, enquanto instrumento de ativação da jurisdição constitucional das liberdades, configura um poderoso meio de cessação do injusto constrangimento ao estado de liberdade de locomoção física das pessoas. Se essa liberdade não se expõe a qualquer tipo de cerceamento, e se o direito de ir, vir ou permanecer sequer se revela ameaçado, nada justifica – por não estar em causa a liberdade de locomoção física – o emprego do remédio heroico do habeas corpus” (HC nº 86878/SP, j. em 25/10/2005).
Para que seja viável a impetração, a petição inicial do habeas corpus deve conter, nos termos do art. 654, § 1º, a, do CPP, “o nome da pessoa que sofre ou está ameaçada de sofrer violência ou coação e o de quem exercer a violência, coação ou ameaça”.
A primeira parte do dispositivo diz respeito ao paciente, aquele em favor do qual é ajuizado o habeas corpus e que suporta uma restrição ao seu direito de locomoção ou, ao menos, uma ameaça de que tal constrangimento se verifique.
Por esta razão, já se negou o writ quando indeterminadas as pessoas em favor de quem foi ele impetrado. Assim ocorreu, por exemplo, quando se ingressou com habeas corpus, de forma genérica, em prol de professores da rede estadual impedidos de gozarem férias (RSTJ 45/83) ou de integrantes do Movimento dos Sem-Terra (RJTACRIM 30/390). Em 2017, o STF não conheceu de habeas corpus impetrado pela Defensoria Pública do Estado do Paraná contra decisão proferida pela 5ª Vara da Fazenda Pública de Curitiba, que vedou, a pedido da Procuradoria do Município, a permanência de pessoas em algumas áreas da cidade, especificamente nas cercanias das instalações da Justiça Federal, nas quais ocorreria o interrogatório do ex-presidente da Luiz Inácio Lula da Silva. A Defensoria havia impetrado o remédio heroico em favor da “coletividade formada por todas as pessoas” que desejassem “exercer seu direito de manifestação na cidade de Curitiba”. O min. Celso de Mello, a quem foi distribuída a ação, reconheceu a importância da liberdade de reunião e de manifestação do pensamento, mas considerou não ser o habeas corpus a medida correta para viabilizar essa garantia, justamente porque se tratava de uma coletividade anônima, não de indivíduos que tiveram sua liberdade cerceada. O ministro ressaltou a necessidade, por expressa disposição legal, de identificar o paciente e invocou a jurisprudência do próprio tribunal e do Superior Tribunal de Justiça (HC 143.704/PR, j. 10/05/2017).
Nesse sentido é a lição de Bento de Faria, que nega a possibilidade de ajuizamento do pedido “quando se tratar de pessoas indeterminadas, v.g., os sócios de certa agremiação, os empregados de determinado estabelecimento, os moradores de alguma casa, os membros de indicada corporação, os componentes de uma classe, etc., ainda quando referida uma das pessoas com o acréscimo de – e outros. Somente em relação a essa será conhecido o pedido” (Código de Processo Penal, Rio de Janeiro: Record, 1960, vol. 2, p. 381).
Parece merecer alguma ressalva esse posicionamento. Com efeito, é defensável que se negue a possibilidade de impetração coletiva absolutamente genérica, visando a beneficiar, por exemplo, todos aqueles que se encontrem cumprindo pena pela prática de determinado crime. Mas nada impede, segundo entendemos, que em situações excepcionais, embora sem identificar singularmente cada um dos pacientes, se possa manejar um writ mais amplo, capaz de tutelar, v.g., o direito de locomoção de todos os residentes em determinado bairro impedidos de deixar suas casas por força de ação policial. Suponha-se, ainda, que moradores em uma favela sejam alvo do chamado mandado de busca e apreensão genérico ou coletivo, que tem sido expedido a fim de autorizar o ingresso de policiais em toda e qualquer residência. Exigir-se, para eventual habeas corpus, a identificação precisa de cada uma das pessoas resultaria, na prática, na total ineficácia da medida, por tratar-se de tarefa impossível. Admitir-se, outrossim, nesses casos especiais, um habeas corpus coletivo renderia homenagem à tradição de nosso remédio heroico e mesmo à velha origem do instituto.
Apesar das restrições apontadas, há alguns meses a Segunda Turma do STF concedeu um habeas corpus coletivo (HC 143.641) no qual figuravam como pacientes “todas as mulheres submetidas à prisão cautelar no sistema penitenciário nacional” que ostentassem “a condição de gestantes, de puérperas ou de mães com crianças com até 12 anos de idade sob sua responsabilidade”, além das próprias crianças que porventura estivessem na companhia de suas mães.
Preliminarmente, aquele órgão colegiado analisou a possibilidade da impetração do habeas corpus coletivo e a confirmou por unanimidade. Embora os ministros Dias Toffoli e Edson Facchin tenham votado pelo conhecimento parcial do habeas corpus, que deveria atingir apenas pleitos já analisados pelo STJ – excluindo-se as decisões de primeira e segunda instâncias –, concordaram com os demais ministros no que tange à possibilidade de impetração coletiva.
Em síntese, os ministros fundamentaram sua decisão no fato de que remédios processuais coletivos têm sido exigidos para solucionar problemas ligados a relações sociais massificadas e burocratizadas, prevenindo-se assim lesões a direitos de grupos vulneráveis, cujos componentes não são capazes de se impor individualmente. Mencionou-se o fato de que tramitam no Brasil mais de cem milhões de processos para pouco mais de dezesseis mil juízes, o que exige soluções de natureza coletiva para conferir a eficácia adequada ao postulado constitucional da razoável duração do processo e ao princípio da efetividade da prestação jurisdicional.
O habeas corpus coletivo, na visão do tribunal, homenageia a tradição brasileira de conferir a maior amplitude possível ao remédio constitucional e decorre mesmo do disposto no art. 654, § 2º, do CPP, que possibilita aos juízes e tribunais a concessão de ordem de ofício quando, no curso de processo, verificarem que alguém sofre ou está na iminência de sofrer coação ilegal. Além disso, não se pode ignorar que a impetração coletiva é harmoniosa com as disposições do art. 580 do CPP, que, ao tratar dos recursos, permite a extensão dos efeitos a todos os corréus, desde que os fundamentos da decisão não sejam de caráter exclusivamente pessoal.
Analisando o mérito do habeas corpus, os ministros invocaram tanto a legislação nacional quanto a internacional para justificar a concessão da ordem.
Como apontou a decisão, as Regras de Bangkok estabelecem prioridade para soluções judiciais que promovam alternativas ao encarceramento, especialmente nas situações prévias à formação definitiva da culpa. Além disso, temos no plano interno, inicialmente, o art. 227 da CF/88, que determina prioridade absoluta para a garantia dos interesses de crianças, e a manutenção de presas sem efetiva necessidade atinge o direito delas, que acabam sofrendo injustamente as consequências da prisão. E, ainda, o quadro revelado no processo demonstrava a necessidade de cumprir a lei sobre as políticas públicas para a primeira infância (Lei 13.257/16), que inclusive alterou o art. 318 do CPP nas disposições relativas à substituição da prisão preventiva pela domiciliar, permitindo-a para gestantes, mulheres com filho de até doze anos incompletos e homens que sejam os únicos responsáveis pelos cuidados do filho de até doze anos incompletos.
O suporte fático para a concessão da ordem consistiu na comprovação de que mulheres grávidas e mães de crianças (compreendidas no sentido legal conferido pelo art. 2º do ECA: até doze anos incompletos) estavam sendo submetidas a prisões preventivas em situação degradante, não dispunham de cuidados médicos pré-natais e pós-parto e não contavam com berçários e creches para seus filhos.
Em razão disso, determinou-se “a substituição da prisão preventiva pela domiciliar – sem prejuízo da aplicação concomitante das medidas alternativas previstas no art. 319 do CPP – de todas as mulheres presas, gestantes, puérperas ou mães de crianças e deficientes, nos termos do art. 2º do ECA e da Convenção sobre Direitos das Pessoas com Deficiências (Decreto Legislativo 186/2008 e Lei 13.146/2015), relacionadas neste processo pelo DEPEN e outras autoridades estaduais, enquanto perdurar tal condição, excetuados os casos de crimes praticados por elas mediante violência ou grave ameaça, contra seus descendentes ou, ainda, em situações excepcionalíssimas, as quais deverão ser devidamente fundamentadas pelo juízes que denegarem o benefício”. E estendeu-se a ordem de ofício a todas as demais presas gestantes, puérperas ou mães de crianças e de pessoas com deficiência, assim como às adolescentes sujeitas a medidas socioeducativas que estivessem na mesma situação daquelas beneficiadas diretamente pela impetração.
Críticas à parte – pois a lei processual penal já estabelece a possibilidade de impor prisão domiciliar em substituição à prisão preventiva para gestantes e mulheres com filho de até doze anos de idade incompletos (art. 318, IV e V), o que é muito mais criterioso do que uma ordem de habeas corpus coletivo –, devemos notar que o próprio STF estabeleceu limitações: que o crime em razão do qual a mulher se encontra presa cautelarmente não tenha sido cometido com violência ou ameaça contra seus próprios descendentes e que não se trate de situações excepcionais que exijam a prisão (ausentes os requisitos do art. 312 do CPP).
Bem, não faria mesmo sentido, tendo em vista que o fundamento do habeas corpus era a necessidade de que as presas dispensassem os cuidados necessários a seus filhos, permitir a substituição da preventiva se esses mesmos filhos fossem as vítimas. Soaria absurdo permitir que a mãe acusada de permitir que seu filho fosse abusado sexualmente pelo padrasto deixasse a prisão para retomar os cuidados sobre a criança.
Mas isso, certamente, não é o bastante.
É evidentemente irrazoável avaliar a substituição da prisão preventiva somente pela condição pessoal de quem está preso. O fato de uma mulher presa preventivamente ser gestante ou ter filhos é sem dúvida um fator que agrega alguns cuidados à análise de sua condição processual, mas isso não pode ser o bastante para determinar se ela deve ou não permanecer presa.
Com efeito, a prisão preventiva tem requisitos, pressupostos e fundamentos estritos, que, uma vez preenchidos, indicam que o agente deve ser levado ao cárcere porque, afinal, sua liberdade traz riscos concretos à sociedade. Se um agente reincidente está sendo acusado de uma série de latrocínios, é forçoso concluir que sua prisão é imprescindível para a manutenção da ordem pública; se o acusado de crime contra o sistema financeiro pode cometer ações atentatórias à livre concorrência e às relações de consumo, abusando de seu poder econômico, a preventiva se justifica para a manutenção da ordem econômica; se se comprova que, no decorrer do processo, o acusado comete coação contra testemunhas, a preventiva pode ser decretada para a conveniência da instrução criminal; se há alguma indicação concreta de que o agente planeja sua fuga, a preventiva tem lugar para garantir a aplicação da lei penal. E a jurisprudência é absolutamente pacífica no sentido de que o decreto de prisão deve se basear em elementos sólidos, não exclusivamente na opinião do juiz, na gravidade abstrata do crime ou em outras circunstâncias não comprovadas.
Como se nota, portanto, são situações concretas que justificam o encarceramento prévio à formação da culpa. Essas situações não podem ser simplesmente desconsideradas somente pela condição pessoal de quem deve ser preso. Uma vez constatada a necessidade da prisão imediata, as condições pessoais do sujeito devem ser cotejadas com o interesse geral na manutenção da paz social.
Esse cotejo deve incidir também nas situações em que a mulher presa é gestante ou tem filhos. Não são somente os casos de crimes cometidos contra os próprios filhos que impedem a substituição da prisão preventiva pela domiciliar, pois há diversas formas de condutas gravíssimas, cometidas com violência extrema e que revelam um traço de personalidade violenta que pode eventualmente vitimar inclusive esses mesmos filhos em nome dos quais a acusada foi liberada.
Neste passo, o STJ já negou provimento a recurso em habeas corpus considerando que o caso concreto se subsumia à situação excepcionalíssima a que se referiu o próprio STF no HC 143.641. No caso julgado, a recorrente estava sendo acusada de tomar parte em homicídios qualificados cometidos em circunstâncias de violência acima do comum, razão pela qual havia sido presa preventivamente. A primeira instância havia fundamentado a ordem de prisão nos seguintes termos:
“(…) Não há como ignorar a frieza com que teria sido perpetrado o delito, ou seja, mediante dissimulação, ao que tudo indica, vez que as vítimas teriam franqueado a entrada de Samara (companheira de Amauri), já que havia medida protetiva deferida em favor das vítimas, proibindo o representado Amauri de se aproximas delas, tendo este, na sequência, ingressado na casa e, de posse de uma arma de fogo, desferido os disparos de arma de fogo nas cabeças das ofendidas, ao que os autos indicam, em verdadeira execução.
Pelo apurado até o momento, o crime teria sido cometido contra a ex-companheira de Amauri (Fabiola) e ex-sogra (Geneci), em razão de não se conformar com o término do relacionamento, ciúmes e por temer voltar à prisão, haja vista a medida protetiva deferida. Ainda, o fato teria sido cometido na frente da filha de Fabiola e Amauri, que tudo presenciou, tendo ele e Samara, após o cometimento do delito, saído do local levando a menina de 06 anos, que posteriormente foi ouvida por uma psicóloga e uma assistente social, as quais afirmaram que ela foi testemunha ocular, e confirmou a participação de Amauri e Samara nos homicídios.
(…)
Quanto à representada Samara, embora seja primária, verifica-se que responde a processo por posse de arma de fogo, e teria se aliado ao representado Amauri para prática dos gravíssimos fatos, evidenciando-se a imperatividade de aplicação de medida mais severa para fazer cessar seu agir ilícito (…)”.
O STJ encampou o decreto de prisão, inicialmente sob o argumento de que a substituição da prisão preventiva pela domiciliar não é uma medida inafastável, cabendo ao juiz analisar as circunstâncias e aquilatar a suficiência e a adequação da medida, com o que se resguarda a efetividade da prestação jurisdicional.
Além disso, ponderou-se que o caso concreto era muito grave:
“In casu, tem-se “situação excepcionalíssima” que justifica a mitigação da referida decisão do Supremo Tribunal Federal, na medida em que o crime foi praticado com extrema violência, tendo as vítimas sido executadas com tiros na cabeça, em verdadeiro ato de execução, na frente de uma criança de apenas 6 anos de idade (filha que o companheiro da acusada tem com uma das vítimas fatais do homicídio). Vale ressaltar que, segundo o juízo de primeiro grau, os filhos da recorrente estão morando na casa dos avós maternos, onde também reside uma tia” (RHC 92.760/RS, j. 15/03/2018).
Embora tenhamos nos referido a crimes cometidos com violência como fator impeditivo da substituição da custódia cautelar, há outros, sem violência, mas que podem obstar a medida alternativa à prisão. Imaginemos um crime de tráfico de drogas cometido por uma mulher em sua própria residência e na presença dos filhos. Substituir a prisão, neste caso, consistiria em proporcionar todas as condições para que o crime se perpetuasse e – mais grave – que as crianças continuassem sob péssima influência, em um ambiente que não lhes traria coisa alguma além de sofrimento e de indução a conduta semelhante no futuro. Neste sentido:
“O fato de a acusada comercializar entorpecentes em sua própria residência, local onde foi apreendida quantidade relevante de cocaína, já embalada em porções individuais, além de outros petrechos comumente utilizados para o tráfico de drogas, evidencia o prognóstico de que a prisão domiciliar não cessaria a possibilidade de novas condutas delitivas no interior de sua casa, na presença dos filhos menores de 12 anos, circunstância que inviabiliza o acolhimento do pleito” (STJ – RHC 96.737/RJ, j. 19/06/2018).
Outra situação na qual se negou a prisão domiciliar se referia a uma mulher responsável pela contabilidade e pela transmissão de ordens em um grupo criminoso dedicado a crimes de furto, roubo e receptação de veículos automotores. Considerou-se que a medida mais branda facilitaria a prática criminosa à qual a acusada se dedicava:
“O fato de a acusada realizar a contabilidade do grupo criminoso e transmitir as ordens de seu companheiro – líder da associação, atualmente privado de sua liberdade – evidencia o prognóstico de que a prisão domiciliar não seria suficiente para evitar a prática delitiva no interior de sua residência, na presença dos filhos menores de 12 anos, circunstância que inviabiliza o acolhimento do pleito” (RHC 96.157/RS, j. 05/06/2018).
Destacamos, por fim, que a decisão do STF não abrange a prisão domiciliar disciplinada no art. 117 da Lei de Execução Penal, que se aplica, evidentemente, durante a execução da pena. Esta modalidade de prisão domiciliar não tem natureza cautelar, mas incidental ao processo de execução, e é cabível – segundo a letra expressa da lei – para beneficiar, dentre outros, as condenadas gestantes ou com filho menor ou deficiente físico ou mental que cumpram pena em regime aberto. Ainda que se admita, conforme tem decidido o STJ, a concessão do benefício também aos presos em regime fechado e semiaberto, seus requisitos são específicos e não se confundem com a situação das mulheres presas preventivamente. No caso do art. 117 da LEP há condenação, formação de culpa legitimadora da imposição da pena, que deve ser devidamente executada para que suas finalidades sejam atingidas, ao menos na medida do que permitem as circunstâncias. Se nas situações envolvendo a prisão cautelar a restrição da liberdade é excepcional, aqui ocorre o exato oposto.
Como podemos notar, a decisão tomada pelo STF deve ser aplicada sob critérios rígidos que tenham em consideração a eficácia das medidas cautelares no processo penal. Não é possível, a pretexto de conferir ao processo um caráter pretensamente humanitário, considerar apenas um fator dentre os inúmeros que normalmente envolvem os acusados de crimes, sob pena de tornar-se ainda mais ineficaz nosso já combalido sistema penal.
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