7) O tipo penal do art. 1º da Lei n. 8.137/90 prescinde de dolo específico, sendo suficiente a presença do dolo genérico para sua caracterização.
No dolo genérico, o agente tem vontade de realizar a conduta descrita no tipo penal, sem um fim específico (ex.: “matar alguém”). Trata-se, na realidade, de denominação utilizada no âmbito da teoria causalista, dizendo-se genérico em virtude da inexistência de indicação de finalidade por parte do agente. Com a adoção da teoria finalista, passou-se a tratar o dolo genérico apenas como dolo. Já no dolo específico o agente tem vontade de realizar a conduta visando a um fim específico que é elementar do tipo penal (ex.: art. 159, CP, “Seqüestrar pessoa com o fim de obter, para si ou para outrem, qualquer vantagem, como condição ou preço do resgate”). Esta denominação também é relativa à teoria causalista e indicava que o tipo penal trazia destacado o especial fim de agir. Atualmente, sob a égide da teoria finalista, a expressão cede lugar a elemento subjetivo do tipo ou do injusto.
O art. 1º da Lei 8.137/90 tipifica as condutas de suprimir ou reduzir tributo ou contribuição social e qualquer acessório mediante cinco procedimentos:
I – omitir informação, ou prestar declaração falsa às autoridades fazendárias;
II – fraudar a fiscalização tributária, inserindo elementos inexatos, ou omitindo operação de qualquer natureza, em documento ou livro exigido pela lei fiscal;
III – falsificar ou alterar nota fiscal, fatura, duplicata, nota de venda, ou qualquer outro documento relativo à operação tributável;
IV – elaborar, distribuir, fornecer, emitir ou utilizar documento que saiba ou deva saber falso ou inexato;
V – negar ou deixar de fornecer, quando obrigatório, nota fiscal ou documento equivalente, relativa a venda de mercadoria ou prestação de serviço, efetivamente realizada, ou fornecê-la em desacordo com a legislação.
Há quem sustente que o crime somente se caracteriza se o agente atuar com a finalidade específica de fraudar a fazenda pública. É o caso de Guilherme de Souza Nucci, para quem “é fundamental verificar a existência do elemento subjetivo do tipo específico (dolo específico), consistente na efetiva vontade de fraudar o fisco, deixando permanentemente de recolher ou tributo ou manter a sua carga tributária aquém da legalmente exigida. Esta é a única forma, em nosso entendimento, de evitar que o Direito Penal seja transformado em apêndice inadequado do Direito Tributário comum, buscando servir de instrumento do Estado para a cobrança de tributos. Ameaça-se com penas os devedores de tributos em geral para que, evitando-se promover a desgastante ação de execução fiscal, consiga-se o recolhimento das quantias devidas.” (Leis Penais e Processuais Penais Comentadas, 10. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2017, p. 677).
O STJ, no entanto, firmou orientação diversa, segundo a qual não se exige a demonstração de nenhuma finalidade específica para a tipificação do crime do art. 1º da Lei 8.137/90:
“É assente na jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça que os crimes contra a ordem Tributária previstos no artigo 1º da Lei n. 8.137/90 prescinde de dolo específico, bastando para a subsunção à norma o não recolhimento do tributo.” (AgRg no AREsp 900.438/RS, j. 06/02/2018)
8) O prazo prescricional, para os crimes previstos no art. 1º, I a IV, da Lei n. 8.137/90, inicia-se com a constituição definitiva do crédito tributário.
Esta tese é resultado direto da súmula vinculante 24, segundo a qual “Não se tipifica crime material contra a ordem tributária, previsto no art. 1º, incisos I a IV, da Lei nº 8.137/90, antes do lançamento definitivo do tributo”.
A prescrição nada mais é do que a perda, em face do decurso do tempo, do direito de o Estado punir (prescrição da pretensão punitiva) ou executar uma punição já imposta (prescrição da pretensão executória).
Trata-se, portanto, de um limite temporal ao direito de punir, que nasce com o cometimento da infração penal. Ora, se, nos termos da súmula, as figuras dos incisos I a IV do art. 1º da Lei 8.137/90 só se tipificam com a constituição definitiva do crédito tributário, é evidente que a prescrição não pode correr antes disso, pois, para todos os efeitos, não há pretensão punitiva até o momento em que o órgão fazendário estabelece que o tributo é devido.
9) A constituição regular e definitiva do crédito tributário é suficiente à tipificação das condutas previstas no art. 1º, I a IV, da Lei n. 8.137/90, de forma que o eventual reconhecimento da prescrição tributária não afeta a persecução penal, diante da independência entre as esferas administrativo-tributária e penal.
Vimos nos comentários à tese anterior que a prescrição relativa ao crime do art. 1º, incs. I a IV, da Lei 8.137/90 se inicia com a constituição definitiva do crédito tributário. Considerando que a pena máxima cominada é de cinco anos de reclusão, a prescrição em abstrato ocorre em doze anos (art. 109, inc. III, do CP).
Na esfera tributária também existe a prescrição da ação, que, nos termos do art. 174 do Código Tributário Nacional, ocorre em cinco anos contados da data da constituição definitiva. Há ainda a prescrição intercorrente estabelecida no art. 40, § 4º, da Lei 6.830/80.
Como se trata de procedimentos absolutamente distintos, com finalidades que não se confundem e trâmites específicos, é plenamente possível que a ação tributária prescreva quando ainda em trâmite a ação penal ou até mesmo, em não raros casos, o inquérito policial. Diante disso, há quem argumente que a extinção do crédito tributário deve refletir na esfera da tipicidade penal, pois, afastada a pretensão de cobrança tributária, mais razão existiria para cessar a pretensão de punir na esfera criminal.
O STJ, no entanto, não admite a interferência da prescrição tributária na punibilidade sob o argumento de que, uma vez constituído o crédito tributário, o fato está criminalmente tipificado, e isso independe de quaisquer outras circunstâncias posteriores que envolvam o tributo na esfera própria:
“É verdade que a prescrição é uma causa de extinção do crédito tributário (CTN, art. 156, V). Uma vez caracterizada a prescrição, portanto, o crédito desaparece do mundo jurídico. Mas isso não significa que a obrigação tributária não tenha nascido regularmente, gerando, a seu tempo, o dever de pagamento do tributo; este, apenas, deixou de ser devido, a posteriori , por razões pertinentes apenas ao processo de cobrança. Por consequência, o delito tributário já consumado não será afetado.” (RHC 81.446/RJ, j. 13/06/2017)
10) O delito do art. 1º, inciso V, da Lei n. 8.137/90 é formal e prescinde do processo administrativo-fiscal para o desencadeamento da persecução penal, não se sujeitando aos termos da súmula vinculante n. 24 do STF.
A súmula vinculante 24, como já estudamos nos comentários a teses anteriores, faz menção expressa aos incisos I a IV do art. 1º da Lei 8.137/90. Mas há ainda um quinto inciso que trata da supressão e da redução de tributo por meio das ações de “negar ou deixar de fornecer, quando obrigatório, nota fiscal ou documento equivalente, relativa a venda de mercadoria ou prestação de serviço, efetivamente realizada, ou fornecê-la em desacordo com a legislação.”
Neste caso, o agente efetua vendas ou presta serviços e não emite as notas fiscais correspondentes, ou as emite em desacordo com a lei (inserindo um valor menor do que o real, por exemplo), a fim de que a receita dessas transações comerciais não seja escriturada e, em decorrência, gere um valor menor de tributos a pagar.
O fato de as condutas típicas consistirem em reduzir e suprimir tributo (e não em simplesmente deixar de emitir ou emitir irregularmente nota fiscal) nos indica que o delito se caracteriza pela ocorrência de resultado naturalístico – prejuízo ao fisco –, o que nos levaria à conclusão de que se trata de crime material. E, com efeito, é difícil imaginar como se daria a supressão ou a redução de tributo sem a ocorrência de dano.
Convencionou-se, todavia, que, ao contrário das demais figuras do mesmo artigo, esta tem natureza formal, ou seja, caracteriza-se pelo simples ato de não emitir a nota fiscal ou de emiti-la em desacordo com a lei. Aqui não importa a apuração administrativa sobre se o tributo é devido, razão pela qual não há espaço para se exigir a constituição definitiva. Desta forma, uma vez constatada a irregularidade fiscal (o que normalmente se dá por meio de fiscalização fazendária), é possível a imediata deflagração da ação penal. Além disso, o prazo prescricional começa a correr no momento da conduta, ao contrário das demais figuras do art. 1º, cuja tipicidade é diferida, por assim dizer.
Esta orientação já vinha sendo adotada pelo STF antes mesmo da edição da súmula vinculante 24, que, como adiantamos, não contemplou o inciso V. Ao firmar a presente tese, o STJ reitera o entendimento externado pela Suprema Corte e consolida sua própria orientação a respeito da matéria.
11) A competência para processar e para julgar os crimes materiais contra a ordem tributária é do local onde ocorrer a consumação do delito por meio da constituição definitiva do crédito tributário.
Segundo o disposto no art. 70 do CPP, em regra a competência é determinada pelo lugar em que se consuma a infração, ou, no caso de tentativa, pelo lugar em que é praticado o último ato de execução.
Na esfera dos crimes materiais contra a ordem tributária há a particularidade de que a tipificação só ocorre com a constituição definitiva do tributo, procedimento atribuído ao órgão fazendário. Assim, antes disso não se pode considerar consumado o delito.
Por essa razão, a competência para julgar o crime tributário decorrente da constituição definitiva do crédito é do local do domicílio fiscal, onde tramita o procedimento administrativo-tributário, ainda que os atos materiais que proporcionaram a supressão ou a redução do tributo tenham sido cometidos em outro local. Neste sentido:
“1. Em atenção ao disposto no verbete 24 da Súmula Vinculante, pacificou-se neste Superior Tribunal de Justiça o entendimento segundo o qual a competência para processar os delitos materiais contra a ordem tributária é estabelecida no domicílio fiscal em que houve a consumação da infração penal, ou seja, aquele em que ocorreu a constituição definitiva do crédito tributário, sendo irrelevante que a fraude tenha sido perpetrada em local diverso. 2. No caso dos autos, ainda que as condutas assestadas aos recorrentes tenham sido praticadas em Londrina/PR, a competência para processá-los e julgá-los é da Justiça Federal de Marília/SP, local em que a pessoa jurídica por eles administrada possuía domicílio fiscal ao tempo em que esgotada a via administrativa e consumado o delito contra a ordem tributária.” (RHC 53.434/SP, j. 07/03/2017)
12) O parcelamento integral dos débitos tributários decorrentes dos crimes previstos na Lei n. 8.137/90, em data posterior à sentença condenatória, mas antes do seu trânsito em julgado, suspende a pretensão punitiva estatal até o integral pagamento da dívida (art. 9º da Lei n. 10.684/03 e art. 68 da Lei n. 11.941/09).
O art. 68 da Lei 11.941/09 estabelece a suspensão da pretensão punitiva – e do prazo prescricional – relativa ao crime do art. 1º da Lei 8.137/90 no caso de débitos que tiverem sido objeto de concessão de parcelamento.
O dispositivo não se refere expressamente ao momento em que deve ocorrer o parcelamento para que dele decorra a suspensão da pretensão punitiva. Diante disso, o STJ tem se orientado no sentido de que o parcelamento efetuado antes do trânsito em julgado da sentença condenatória é suficiente para justificar a suspensão:
“1. Se o débito tributário foi parcelado em data posterior à sentença condenatória, mas antes de seu trânsito em julgado, é de rigor a suspensão do feito até o pagamento integral do debito. Deve ser desconstituído o trânsito em julgado e anulado o acórdão dos embargos de declaração. Precedentes. 2. Ordem concedida para desconstituir o trânsito em julgado e anular a ação penal desde o julgamento dos embargos de declaração, inclusive, devendo a ação penal ficar suspensa até o resultado definitivo do parcelamento do débito administrativamente concedido pela Receita Federal.” (HC 370.612/SP, j. 07/03/2017).
“2. O parcelamento do débito tributário, por meio da adesão ao Refis, quando efetivado na vigência da Lei n. 9.964/2000, apenas suspende a fluência da prescrição, não extinguindo a punibilidade, mesmo que os débitos tributários sejam anteriores ao referido diploma legal (AgRg nos EDcl no REsp 1228549/PR, Rel. Ministro SEBASTIÃO REIS JÚNIOR, Sexta Turma, julgado em 23/09/2014, DJe 10/10/2014). 3. A suspensão da pretensão punitiva estatal fundada no art. 68 da Lei n. 11.941/2009 somente é cabível se a inclusão do débito tributário em programa de parcelamento ocorrer em momento anterior ao trânsito em julgado da sentença penal condenatória. 4. Ocorrendo o parcelamento do débito tributário antes do trânsito em julgado da condenação, como no caso dos autos, ficará suspensa a pretensão punitiva do Estado até ulterior revogação do benefício ou extinção da punibilidade dos agentes pelo integral pagamento, sendo inviável a prolação de acórdão confirmatório da condenação e trânsito em julgado da condenação em sua vigência.” (HC 353.827/PI, j. 16/08/2016)
Note-se apenas que as decisões acima transcritas foram proferidas sobre fatos ocorridos antes da entrada em vigor da Lei 12.382/11, que modificou os parágrafos do art. 83 da Lei 9.430/96. De acordo com o disposto no § 2º, “É suspensa a pretensão punitiva do Estado referente aos crimes previstos no caput, durante o período em que a pessoa física ou a pessoa jurídica relacionada com o agente dos aludidos crimes estiver incluída no parcelamento, desde que o pedido de parcelamento tenha sido formalizado antes do recebimento da denúncia criminal.” (grifamos). Diante da atual disposição, há, no próprio STJ, decisões nas quais se considera o momento de ocorrência do crime (se anterior ou posterior à Lei 12.382/11) para estabelecer a eficácia suspensiva do parcelamento:
“I – Cinge-se a controvérsia a saber acerca da aplicação da lei no tempo, demandando, para tal, a definição da natureza jurídica do art. 83, § 2º, da Lei 9.430/96, com redação determinada pela Lei 12.392/2011, se norma eminentemente penal ou processual penal, definindo a subsunção, ou não, dos crimes cometidos anteriormente a sua vigência, mas cujo parcelamento ocorreu sob sua égide, após o recebimento da denúncia. II – O art. 83, § 2º, da Lei 9.430/96, com redação determinada pela Lei 12.392/2011, disciplina a suspensão do processo e da prescrição da pretensão punitiva estatal, tema afeto à punibilidade do agente, evidenciando a natureza penal material da norma em comento. III – Com efeito, aplica-se a regra da lex mitior, razão pela qual, nos crimes em que a constituição definitiva do crédito tributário se deu até 28/02/2011, data de vigência da lei posterior mais gravosa, terá o acusado direito à suspensão do andamento do feito, caso concedido o parcelamento, independentemente de ter havido ou não o recebimento da denúncia na ação penal.” (REsp 1.524.525/MG, j. 28/11/2017).
13) A pendência de ação judicial ou de requerimento administrativo em que se discuta eventual direito de compensação de créditos fiscais com débitos tributários decorrentes da prática de crimes tipificados na Lei n. 8.137/90 não tem o condão, por si só, de suspender o curso da ação penal, dada a independência das esferas cível, administrativo-tributária e criminal.
O pressuposto para o ajuizamento da ação penal por crime material contra a ordem tributária é, como vimos, a constituição definitiva do tributo. Uma vez que o órgão fazendário tenha estabelecido, em procedimento administrativo próprio, que o tributo foi sonegado, cabe ao Ministério Público perseguir a punição.
Isso não impede que o agente a quem se atribui a sonegação busque, perante o próprio órgão fazendário ou por meios judiciais, a compensação entre o tributo definitivamente inscrito e eventuais créditos de que seja titular perante a Fazenda Pública.
Essa possibilidade leva acusados da prática de crimes tributários a buscar a suspensão do curso da ação penal enquanto tramita o pedido de compensação, que, se alcançada, pode provocar relevantes efeitos sobre o crédito já constituído.
O STJ, no entanto, tem afastado tais pretensões. Para o tribunal, somente se suspende a ação penal por crime tributário material se houver o parcelamento dos tributos. No mais, só se analisa a influência da compensação no caso de seu deferimento:
“1. O simples requerimento de compensação dos débitos pelo contribuinte não impõe a imediata suspensão da pretensão punitiva estatal pois, consoante o disposto no artigo 68 da Lei n. 11.941/09, tal benefício está adstrito aos débitos quanto aos quais a Fazenda Pública houver efetivamente concedido parcelamento e que este corresponda à integralidade da dívida a que se refere a ação penal em curso. 2. Não tendo havido o efetivo deferimento do pedido de compensação pela autoridade fazendária, mostra-se prematura a suspensão da persecução penal.” (AgRg no REsp 1.320.191/DF, j. 28/03/2017)
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