1. Introdução
Para que o sistema de proteção do consumidor, como o conhecemos hoje, seja bem compreendido, é necessário arrolar uma série de ocorrências históricas envolvendo o consumo, de forma a demonstrar a evolução dos institutos jurídicos aplicáveis às relações de consumo.
Embora não se possa falar propriamente na existência de direitos do consumidor, já no Antigo Egito é possível identificar alguma preocupação com a qualidade dos produtos que eram comercializados por mercadores. Os egípcios, por questões estéticas, religiosas, e de saúde (para se protegerem dos efeitos dos raios solares), cultivavam o hábito de pintar o próprio corpo com alguns tipos de maquiagem (tintas, pós etc.), e a história nos conta que, já naquela época, era possível verificar a existência de concorrência entre os fabricantes dos mencionados produtos, estabelecendo-se, então, uma competição entre os mesmos, no sentido de oferecer produtos com maior qualidade, em razão das exigências dos respectivo consumidores.
Também de forma rústica, a proteção do consumidor pode ser identificada em textos antiquíssimos, como o Código de Hamurabi, editado no Império Babilônico. Visando defender os compradores de bens e serviços, o Rei Hamurabi impingiu uma forte legislação, contendo regras como a dos artigos 229 e 233 do referido estatuto, que previa:
Art. 229 – Se um pedreiro edificou uma casa para um homem mas não a fortificou e a casa caiu e matou seu dono, esse pedreiro será morto”
(…)
Art. 233 – Se um pedreiro construiu uma casa para um homem e não executou o trabalho adequadamente e o muro ruiu, esse pedreiro fortificará o muro às suas custas.
Dessa forma, é possível notar, já em um texto legal antigo, a presença da chamada responsabilidade objetiva, hoje consagrada pelo Código de Defesa do Consumidor, através do princípio da boa-fé objetiva. Ou seja, a preocupação com a reparação dos danos causados aos consumidores por defeitos oriundos de projetos, fabricação, construção, entretanto com o diferencial da pena capital, prevista no art. 229 daquele texto, mas inexistente em nosso ordenamento jurídico.
A mesma preocupação com a qualidade de produtos é ainda revelada durante a Idade Média, no que diz respeito à fabricação de espadas e outros artefatos de combate pelas corporações de ofício, as quais recebiam dos guerreiros exigências cada vez maiores em relação à qualidade daqueles produtos.
2. A experiência norte-americana
Os primeiros movimentos consumeristas de que se tem notícia originaram-se nos EUA, no final do séc. XIX, assim escalonados:
- 1872 – Edição da Sherman Anti Trust Act, conhecida como Lei Sherman, cuja finalidade era reprimir as fraudes praticadas no comércio, além de proibir comerciais desleais como, por exemplo, a combinação de preços e os monopólios.
- 1891 – Surgimento da New York Consumers League como primeiro órgão de defesa do consumidor, fundado por Josephine Lowell – ativista feminista e ligada ao movimento de trabalhadores. Anos depois, Florence Kelly fundou a National Consumers League, a partir da reunião entre Nova Iorque, Boston e Chicago. Tal organismo comprava e incentivava a compra de produtos fabricados por empresas que respeitavam os direitos humanos, ideal muito semelhante ao que hodiernamente é propugnado a garantir o consumo sustentável no mundo inteiro, através do incentivo à aquisição de produtos que respeitem o meio ambiente.
- 1906 – Upton Sinclair escreve The Jungle (a selva), obra que narra sua visita a uma fábrica de alimentos à base de carne. A repercussão dessa obra levou à edição da Pure Food and Drug Act, diante das surpreendentes e negativas revelações do autor em relação ao processo de produção daqueles alimentos.
- 1907 – Criação do Meat Inspect Act, a fim de inspecionar e controlar a comercialização de carne. Essa lei foi reflexo do Pure Food and Drug Act, anteriormente mencionado.
- 1914 – Criação do Federal Trade Comission.
- 1927 – Nasce o PFDA (Pure Food Drug Insecticide Administration). Nesse mesmo ano, Stuart Chase e Frederick Schilink lançam a “Campanha da Prova”, com o objetivo de comparar produtos, orientando os consumidores a consumir conscientemente, com o uso racional do dinheiro. Três anos mais tarde, o PFDA daria origem à FDA (Food and Drug Administration), considerada ainda a mais respeitada autarquia no que diz respeito ao controle de gêneros alimentícios e medicamentos.
- 1936 – Surgimento da Consumers Union, tornando-se o maior órgão de proteção do consumidor do mundo. Dentre suas atribuições estava a de publicar revistas e material didático para a orientação dos consumidores.
- 1962 – No dia 15 de março o presidente John Kennedy emite mensagem ao Congresso Americano, tornando-se o março do que hoje chamamos de consumerismo. A mensagem presidencial reconhecia, em síntese, que “consumidores somos todos nós”, na medida em que a todo o momento praticamos inúmeras relações de consumo. Kennedy afirmava que os consumidores seriam o maior grupo da economia, afetando e sendo afetado por quase todas as decisões econômicas, fossem públicas ou privadas. Todavia, seria o único grupo importante da economia não eficazmente organizado, cujos clamores quase nunca seriam ouvidos. Na mensagem ao Congresso, conclamava o Estado a voltar suas atenções a esse grupo e, ainda, listou uma série de direitos fundamentais dos consumidores, a saber:
1 – Direito à saúde e à segurança;
2 – Direito à informação;
3 – Direito à escolha;
4 – Direito a ser ouvido.
3. Primeiros Movimentos Consumeristas na Europa
A necessidade de uma cooperação internacional após a 2a Guerra Mundial, visando especialmente a reconstrução da Europa no pós-guerra, bem como a natural expansão do mercado, ocasionada pelo regime capitalista, proporcionaram o crescimento e a criação de diversos organismos com vistas à proteção e defesa do consumidor na Europa e em outros países. Observe a seguinte cronologia:
- 1948 – Com a intervenção dos EUA, foi criada a Organização Europeia de Cooperação Econômica (OECE), com o objetivo essencial de administrar o auxílio financeiro americano proporcionado pelo Plano Marshall.
- 1960 – Os países membros da OECE, com a adesão dos EUA e do Canadá, decidiram alargar o campo de atuação daquela organização, passando a ajudar os países em desenvolvimento. Naquele mesmo ano, foi assinado em Paris o tratado que extinguiu a OECE e instituiu a OCDE (Organização de Cooperação e Desenvolvimento Econômico Europeu), sendo, ainda, no mesmo ano, criado o IOCU (International Organization of Consumers Union).
- 1971 – Na Suécia, a proteção do consumidor passa a contar com o Ombudsman e o Juizado de Consumo, cujo modelo, mais tarde, seria seguido pela Noruega, Dinamarca e Finlândia.
- 1976 – A Comissão dos Consumidores, originada a partir da OCDE, criou a Carta dos Consumidores, tornando-se o primeiro documento oficial na Europa a versar sobre Direito do Consumidor. Tal Carta, embora se mostrasse um documento bastante sintético, serviu de inspiração para a Resolução 87/C092/01 de 1975 (Conselho da Europa), estabelecendo um programa preliminar da CEE para uma política de proteção e informação do consumidor.
- 1977 – Foi criado, na Inglaterra, o Unfair Contract Terms Act, consistente num sistema de defesa do consumidor que objetivava o reconhecimento da nulidade de cláusulas abusivas, notadamente aquelas que viessem a excluir a responsabilidade e riscos do fornecedor, fora dos requisitos de razoabilidade, sendo que, naquele caso, a razoabilidade possuía caráter objetivo, segundo padrões consagrados.
Na França, a legislação consumerista é vasta. Em 1973, foi editada a Lei Royer, destinada à proteção do pequeno comércio e do artesanato, a qual continha normas de regulamentação da publicidade ilícita e a permissão de exercício da ação civil pelas associações de consumidores. Criou-se ainda, em 1978, a Lei nº 78-22, conhecida como Lei Scrivner, controladora das cláusulas abusivas, e a Lei nº 78-23, que em seu artigo 35 elenca os elementos caracterizadores da abusividade nas relações de consumo. Em 1995, foi editada a lei nº 95-96, que modificou alguns artigos do Código do Consumo (Code de la Consommation), introduzindo o art. 132-1, prevendo que, nos contratos concluídos entre profissionais e não profissionais ou consumidores, são abusivas as cláusulas que criem, em detrimento do não profissional ou consumidor, um desequilíbrio significante entre os direitos e obrigações das partes contratantes. Figura interessante, incorporada pelo direito francês, é o chamado superendividamento, caracterizado pela concessão desordenada de créditos a consumidores já endividados que, ao contraírem novas dívidas, perdem a capacidade de pagá-las, comprometendo sua própria subsistência.
No direito italiano, ao contrário do que prescreve a lei consumerista brasileira e a alemã, as cláusulas abusivas nos contratos de consumo não são nulas de pleno direito. Segundo o artigo 1.341 do Código Civil Italiano, as cláusulas abusivas podem ter eficácia, uma vez que especificamente aprovadas por escrito, sendo que a “aprovação”, nesse sentido, traduz a ideia de consentimento. Vale aqui, então, transcrever o teor do dispositivo acima citado, que estabelece:
Art. 1.341 – As condições gerais do contrato previamente estabelecidas por um dos contratantes serão eficazes em relação ao outro se, no momento da conclusão do contrato, forem do conhecimento deste último ou se deveriam sê-las de seu conhecimento segundo o critério de diligência ordinária.
Nota-se, então, que o princípio da autonomia privada, conservando o aforismo pacta sunt servanda, ainda se faz presente em plano primário na lei italiana. Entretanto, o código italiano traz a boa-fé expressa em seus artigos 1.175 e 1.337. O primeiro dispositivo prescreve que o devedor e o credor devem se comportar segundo regras de correção, enquanto o segundo diz que as partes, no desenvolvimento e na formação do contrato, devem se comportar segundo a boa-fé. Ou seja, o dever de conduta segundo as regras de correção e o dever de comportamento segundo a boa-fé nada mais traduzem do que a boa-fé objetiva, pois ambos os dispositivos citados consagram uma regra de comportamento.
As normas consumeristas espanholas e portuguesas também contribuíram para a formação do sistema jurídico brasileiro.
No ordenamento espanhol, o artigo 10 da Lei General para la Defesa de los Consumidores y Usuários disciplina a boa-fé nos contratos de consumo.
Em Portugal, o Decreto-Lei nº 446/85 de 25 de outubro de 1985 proíbe as cláusulas contratuais contrárias à boa-fé. Semelhantemente à lei consumerista brasileira, o Código Civil português, em seu artigo 227, procurou resguardar os contratos em suas fases preliminares e de formação, dispondo que as partes devem proceder segundo as regras de boa-fé, prevendo, ainda, a reparação por ato ilícito por aquele que culposamente causar danos à outra parte.
Importante diploma civilista, também inspirador do sistema brasileiro é o Código Civil alemão (BGB). Estabelece o § 242 do referido estatuto que o devedor está adstrito a realizar a prestação tal como o exija a boa-fé, com consideração pelos usos e costumes de tráfego. A doutrina brasileira destaca que o inciso IV do artigo 51 do nosso Código de Defesa do Consumidor foi inspirado no § 9º da lei das Condições Gerais dos Negócios (AGB-Gesetz) que, além de adotar o princípio da boa-fé, proibiu o estabelecimento de vantagem exagerada a uma das partes na relação de consumo. A regra contida no § 242 do BGB não só é válida para as relações consumo, mas para todas as relações jurídicas. Outro traço interessante no direito alemão diz respeito aos §§ 10 e 1 da AGB-Gesetz, que preveem as listas negra e cinza, respectivamente. A primeira cuida das cláusulas contratuais absolutamente ineficazes, e a segunda das relativamente ineficazes. Destaque-se que tal divisão é de cunho doutrinário.
Além dos diplomas legais acima citados, o direito do consumidor alemão goza ainda de legislações específicas, como a VerbrKrg (Lei de crédito ao consumo), criada em1990 com a finalidade regular os contratos de crédito e os contratos de agenciamento de crédito, privilegiando a posição do consumidor, que pode, por exemplo, revogar unilateralmente o contrato. Há também a HausTWG (Lei sobre a revogação de negócios realizados na porta de casa e negócios semelhantes) que, inclusive foi alterada pela lei anteriormente mencionada. Essa lei contém um traço interessante acerca da declaração de vontade, levando-se em conta o local da declaração. Harriet Christiane Zitscher assinala que tal declaração “deve ser manifestada no local de trabalho do consumidor ou na sua residência privada; quando terceiro leva a algum local; ou nas ruas ou meios de transporte”. É importante lembrar que as legislações acima referidas aplicam-se no campo da proteção contratual do consumidor. Mas há também outras legislações específicas objetivando a proteção extracontratual do consumidor. Como exemplo citamos a ProdHaftG de 1989, conhecida como Lei sobre a responsabilidade por produtos defeituosos e a ProdSG de 1997 (Lei sobre a exigência de segurança de proteção e para a proteção do símbolo CE). Essa lei foi criada com o objetivo de regulamentar as exigências de produtos e para que possuam a informação CE, que identifica a origem do produto como sendo a União Europeia (ZITSCHER, Harriet Christiane. Introdução ao Direito Civil Alemão e Inglês. Belo Horizonte: Del Rey, 1999).
Nota-se, então, através do estudo da legislação alemã, que o nosso direito do consumidor acabou por se inspirar em grande parte naquele sistema, que consagra o direito à proteção e à informação, o direito à proteção da saúde e segurança, direito à proteção de seus interesses econômicos, direito ao ressarcimento do dano sofrido, direito à instrução e formação e o direito à representação (direito de ser ouvido).
4. Primeiras leis consumeristas e origem do Código de Defesa do Consumidor
O vocábulo consumerismo provém do inglês consumerism, e se relaciona com o movimento social surgido nos EUA na década de 1960, contra a produção, e comercialização e a comunicação em massa, contra os abusos nas técnicas de marketing, propaganda, contra a periculosidade de produtos e serviços, visando a qualidade e confiabilidade dos mesmos. O movimento se fortaleceu com já citada mensagem do presidente Kennedy, e daí ganhou o mundo. Estabelecia-se, assim, um março; um novo modelo de direito do consumidor, que reconhece neste um sujeito de direitos específicos e lhe atribui direitos fundamentais.
Merece especial referência a figura de Ralph Nader, advogado americano responsável pelo primeiro recall automobilístico de que se tem notícia, e pela quebra do paradigma de indenizações “tarifadas” no direito norte-americano. A história do direito norte-americano dá conta de que aquele causídico ajuizou uma ação contra um fabricante de automóveis após um defeito de fabricação em um de seus automóveis, o qual apresentava falhas em seu sistema elétrico, provocando a produção de fagulha num dos fios que conduzia eletricidade ao farol traseiro do veículo, sendo que tal falha se dava próxima ao tanque de combustível do mesmo, provocando sua explosão.
Após uma família ter sido vitimada pelo evento, culminando com a morte do filho do casal, Ralph Nader ingressou com uma ação indenizatória contra a empresa, sendo, então, auxiliado por um ex–contador da empresa como testemunha no processo, o qual revelou ao Juízo da causa que a fabricante do veículo preferia pagar as indenizações pelos danos causados, inclusive por morte, (raramente esse valor ultrapassava US$10.000,00) do que chamar os veículos para reparar o defeito. O êxito na demanda fez com que Nader conseguisse o pagamento de uma indenização milionária à família vitimada, além de uma determinação judicial no sentido de que os veículos defeituosos fossem recolhidos pela fabricante para os devidos reparos.
As experiências no campo da proteção do consumidor levaram a ONU a estabelecer, em 1985, na sua 106ª Sessão Plenária, através da Resolução nº 39/248, o princípio da vulnerabilidade do consumidor, reconhecendo-o como a parte mais fraca na relação de consumo, e tornando-o merecedor de tutela jurídica específica, exemplo que foi seguido pela legislação consumerista brasileira. Criava-se, assim, uma série de normas internacionais de proteção do consumidor, com o objetivo de universalizar esse direito. As normas ali contidas tinham por finalidade oferecer diretrizes para os países, especialmente os em desenvolvimento, para que as utilizassem na elaboração ou no aperfeiçoamento das normas e legislações de proteção e defesa do consumidor, bem assim encorajar a cooperação internacional nesse sentido.
Registra-se que o consumo, no Brasil, se intensificou após o início de nossa industrialização, em meados da década de 1930, sendo que, já nessa época, o Estado possuía características fortemente intervencionistas na ordem econômica (SayegO Contexto Histórico da Defesa do Consumidor em Face do Abuso de Poder Econômico e sua Importância. Revista de Direito Internacional e Econômico. Ano II – nº 07 – abr, maio, jun/2004., 2004).
Antes mesmo de ser incluída na Carta Constitucional de 1988, a defesa do consumidor, no Brasil, teve como março mais significativo a edição da Lei nº 7.347/85, conhecida como Lei da Ação Civil Pública, com vistas à proteção dos interesses difusos da sociedade. No mesmo ano, criou-se o Conselho Nacional de Defesa do Consumidor.
Com um histórico eminentemente intervencionista, o Brasil, visando a preservação dos direitos sociais, sempre interveio no domínio econômico. Na Constituição Federal de 1988, a matéria é regulada no art. 170, que traz em sua letra:
Art. 170 – A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social…
No Brasil, o direito do consumidor possui fincas na Constituição Federal de 1988, cuja garantia de defesa do consumidor encontra-se consagrada em seu art. 5º, XXXII.
No que se refere ao Código de Defesa do Consumidor (Lei nº 8.078/90), constitui-se como um microssistema vinculado aos preceitos constitucionais. Há de se diferenciar, contudo, o sistema político do sistema normativo de defesa do consumidor. Aquele é representado pelo SNDC – Secretaria Nacional de Direito Econômico, enquanto o último decorre da lei.
É correto dizer que o CDC é uma lei principiológica, na medida em que encerra em si princípios gerais cujo objetivo precípuo é o de abranger todas as situações envolvendo o consumo, sem, no entanto, especificar cada caso, como o fazem as leis casuísticas. É, portanto, um sistema de cláusulas abertas onde alguns dispositivos possuem rol meramente exemplificativo, dando margem interpretativa ao julgador quando da apreciação de ações cujo objeto é afeto às suas disposições.