Algumas reflexões filosóficas/existenciais parecem desnecessárias ao jurista e a algumas pessoas como um todo.
O pragmatismo da obtenção de um determinado resultado (ganhar uma causa, ser aprovado em um concurso público ou no exame da OAB, avançar na faculdade…) gera uma obsessão quase atávica de que as reflexões intelectuais seriam meras divagações, sem efeitos na vida real, concreta.
Muito ao contrário disso, o ato de pensar, refletir cuidadosamente, é um exercício muito útil ao cotidiano do jurista e essencial para a compreensão de certas situações da atividade jurídica e da própria existência humana.
Acho curiosa, por exemplo, a relação que o jurista trava com a verdade. Incorporando ideias sem reflexões filosóficas, criou-se uma ambiência de que o processo almeja elucidar a verdade. Como se a decisão do juiz fosse o apoteótico momento de reconhecimento de quem é mais verdadeiro naquela relação. Consta, inclusive, de vasta literatura jurídica que o processo penal perseguiria a verdade real, enquanto o processo civil/trabalhista se contentaria com a verdade formal.
Nada mais equivocado. Basta uma reflexão mais cuidadosa para notar que verdade formal não é verdade! É suposição. E, por outro turno, a verdade real é conceito inalcançável, inapropriável por uma pessoa. Afinal de contas, qual seria a verdade real, a de uma parte ou da outra? Qual das diferentes versões possíveis para um mesmo fato é a mais verdadeira?
Como não lembrar das instigantes possibilidades abertas para a verdade no Caso dos Exploradores de Caverna, uma obra difundida aos iniciantes do curso de Direito, mas esquecida solenemente depois.
Alias, essa obsessão pela busca da verdade conduz, muita vez, à perda da razão. Em uma série de palestras realizadas no Brasil, na década de 70 do século passado, MICHAEL FOULCAULT lembrou que no Direito Medieval eram utilizados meios de prova inusitados, com a crença de que as forças divinas apresentariam a verdade. Assim, amarravam o braço direito na perna esquerda do acusado e o lançavam no rio ou mar; não se afogando era considerado inocente. Também se fazia o réu andar sobre ferro em brasa; ao final, se não queimasse a sola dos pés, seria absolvido. Creio que o volume de condenação era bem alto…
Ora, é preciso ter consciência de que o conceito de verdade não é objetivo, técnico. Não há uma verdade, apropriável pelas pessoas, única e exclusiva para todos.
Gosto de pensar no exemplo das testemunhas de uma ação de indenização por acidente automobilístico. Aquelas que trafegavam do lado esquerdo da via pública podem apresentar uma versão diametralmente oposta ao que dizem as testemunhas que transitavam do lado destro. E, seguramente, nenhuma estará mentindo. Cada uma dirá a sua impressão dos fatos, de acordo com a sua percepção. E é natural que a percepção de cada pessoa sofra variações de acordo com a sua história, a sua formação etc.
Enfim, cada pessoa tem a sua verdade. Afinal de contas, como diz a música, “cada um de nós compõe a sua história”.
Não há como estabelecer uma verdade a ser alcançada pelo Direito ou, mesmo, pelas pessoas. Como saber qual e a verdade se é necessário considerar o subjetivismo dos humanos? Nem tudo que parece, efetivamente o é!!!
Um eloquente exemplo disso é a dúvida atroz que se põe em Dom Casmurro: Capitu traiu, ou não, a Bentinho? Sem medo de errar, se o próprio MACHADO DE ASSIS vivo fosse, sequer ele mesmo saberia esclarecer a duvida… Talvez o ciúme obsessivo de Bentinho induzisse a buscar uma verdade que nunca existiu? Talvez, não? Talvez, talvez, talvez…
É egocentrismo achar que a verdade se apresenta a um de nós pela simples vontade de obtê-la. A vida, as pessoas, o mundo… são maiores e mais complexos. E compreender essa multiplicidade e dinâmica da vida é tarefa relevante também para o jurista, em favor do bom funcionamento do sistema jurídico.
Essa fina percepção parece ser muito relevante nas ações de família, em especial, nas quais imputações de abuso ou assédio podem gerar debates acerca de alienação parental, alteração ou suspensão de guarda/visitas, destituição de poder familiar etc. A verdade é mais complexa do que um, ou outro, acontecimento isolado – que pode ser muito mais a consequência do que a causa.
Efetivamente, o que se almeja no processo é a reconstrução possível dos fatos (verdade possível ou verossimilhança), com vistas à decorrência de efeitos jurídicos, a partir do que se produziu. Até porque a prova apresentada é um pedaço apenas da vida daquelas pessoas.
O subjetivismo da verdade é tanto que críticos musicais chegaram a reputar desafinado o já saudoso JOÃO GILBERTO. Logo quem…. Perfeccionista, preferiu o cantor responder que, independente da verdade vislumbrada pela crítica, “no peito dos desafinados também bate um coração”, sugerindo que é preciso ser leve quando as afirmações envolvem outras humanos, que também possuem sentimentos e a sua verdade. Curiosamente, depois do episódio, afastando de vez a imputação do suposto desafino, se imortalizou a frase de que “melhor do que o silêncio, só o João”….