Resumo – O surgimento de novas categorias de direitos materiais exigiu que o processo civil fosse remodelado para atender adequadamente às necessidades da sociedade pós-industrial. Contemporaneamente, o tema da coisa julgada é um dos mais polêmicos de todo o exame da tutela coletiva. O objetivo do presente trabalho é analisar o campo semântico dos dispositivos legais que regulam a matéria, bem como possível âmbito de incidência e constitucionalidade, à luz dos fundamentos suscitados pela doutrina e, em paralelo, ao desenvolvimento histórico da jurisprudência pátria acerca do assunto.
Palavras-chave – Direito Processual Coletivo. Direito Processual Civil. Direitos e garantias fundamentais. Tutela coletiva. Direitos coletivos. Coisa julgada.
Sumário – Introdução. 1. Coisa julgada: qualidade ou eficácia? Da imprecisão terminológica do legislador e o dever democrático do hermeneuta de superá-la. 2. Da impossibilidade ontológica de limitar territorialmente aquilo que é transindividual e indivisível por definição. 3. Da (in)constitucionalidade dos artigos 16 da LACP e 2-A da Lei nº 9.494/97. Conclusão. Referências.
INTRODUÇÃO
O sistema processual civil brasileiro por muito tempo foi moldado para atender à prestação da tutela jurisdicional em casos de lesões a direitos subjetivos individuais, mediante demandas promovidas pelo próprio lesado. Não se previam instrumentos, seja para a tutela coletiva desses direitos, salvo mediante a limitada fórmula do tradicional litisconsórcio ativo (art. 113 do CPC), seja para a tutela de direitos transindividuais, de titularidade indeterminada, como são os denominados difusos e coletivos.
Ocorre que a sociedade atual caracteriza-se por uma profunda e substancial alteração no perfil dos direitos desde sempre conhecidos, reconhecendo-se aqueles tipicamente vinculados à sociedade de consumo e à economia de massa, padronizada e globalizada, pertencentes não mais ao indivíduo, considerado como tal, mas sim a toda coletividade (como o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado – art. 225 da CRFB – e os direitos dos consumidores – art. 5º, inciso XXXII, da CRFB).
O surgimento dessas novas categorias de direitos exigiu que o processo civil fosse remodelado para atender adequadamente às necessidades da sociedade contemporânea, mesmo porque o risco de lesões que afetem simultaneamente inúmeros indivíduos ou categorias inteiras de pessoas constitui fenômeno cada vez mais frequente.
Portanto, com o aparecimento de normas de direito material decorrentes dos novos bens jurídicos ameaçados, foi preciso desenvolver mecanismos correspondentes de natureza processual para operacionalizar sua defesa em juízo. A estrutura procedimental, moldada para atender demandas entre partes determinadas e identificadas, em conflitos tipicamente individuais, já não espelha a realidade do sistema processual civil.
Foram as diversas modificações legislativas, ocorridas principalmente a partir de 1985, a começar pela Lei nº 7.347/85 (Lei da Ação Civil Pública – LACP), que alteraram de modo substancial, não apenas o então vigente Código de Processo Civil de 1973, mas o próprio sistema processual nele consagrado.
Foi com a Constituição de 1988, contudo, que a revolução atingiu seu ápice, com a previsão de um verdadeiro sistema de direitos e garantias fundamentais, encontrando fundamento último na dignidade humana (art. 1º, inciso III). A transformação do Estado e a evolução da sociedade fizeram surgir novas situações tuteláveis, bem como a necessidade da criação de instrumentos aptos a assegurar sua proteção, afinal, o reconhecimento e a declaração de um direito no texto constitucional são insuficientes para assegurar sua efetividade.
Assim é que se conceberam as chamadas “ações coletivas”, que promoveram no Brasil a “segunda onda renovatória de acesso à Justiça”, de acordo com a célebre doutrina de Mauro Cappelletti, especificamente desenvolvidas para a proteção desses direitos transindividuais, bem como dos direitos individuais que podem ser lesados em massa.
Trata-se de subsistema com objetivos próprios (a tutela de direitos coletivos e a tutela coletiva de direitos), que são alcançados à base de instrumentos próprios e fundados em princípios e regras próprios, o que confere ao processo coletivo uma identidade bem definida no cenário processual.
A diferenciação de procedimentos é indispensável em um ordenamento jurídico empenhado em viabilizar a todos o acesso ao Poder Judiciário. O direito de ação deve, necessariamente, contar com procedimento e técnicas processuais idôneas à particular tutela do direito substancial.
Mas, sem a tradição dos mecanismos de tutela individual dos direitos subjetivos, os instrumentos de tutela coletiva, trazidos por leis extravagantes, ainda passam por fase de adaptação e de acomodação, suscitando, por isso mesmo, muitas controvérsias interpretativas, como a que será aqui enfrentada.
Contemporaneamente, o tema da coisa julgada diante das ações coletivas é um dos mais complexos e polêmicos de todo o exame da “tutela coletiva”, em especial com as atuais redações dos artigos 16 da LACP e 2-A da Lei nº 9.494/97. Ambos foram obras da atuação legislativa do Poder Executivo Federal, por meio de Medidas Provisórias, que, ao que tudo indica, legislou em causa própria, com o propósito de enfraquecer tal instrumento jurídico.
A doutrina, desde então, derramou litros de tinta, suscitando desde a inaplicabilidade até a inconstitucionalidade, formal e material, dos referidos dispositivos, pelos mais diversos (e alguns deles desesperados) fundamentos. Os Tribunais, inclusive superiores, por sua vez, inicialmente, aplicaram indistinta e acriticamente as regras, ignorando as mais qualificadas vozes que contra elas se levantavam.
O objetivo do presente trabalho é, inicialmente, analisar o campo semântico da norma. Em seguida, seu possível âmbito de incidência. Por fim, a constitucionalidade dos dispositivos legais, realizando um cotejo entre objeto e parâmetro, à luz dos mais diversos argumentos e fundamentos suscitados pelos cientistas jurídicos e, em paralelo, ao desenvolvimento histórico da jurisprudência pátria acerca do tema.
1. COISA JULGADA: QUALIDADE OU EFICÁCIA? DA IMPRECISÃO TERMINOLÓGICA DO LEGISLADOR E O DEVER DEMOCRÁTICO DO HERMENEUTA DE SUPERÁ-LA
Entende-se legislativamente por coisa julgada material “a autoridade que torna imutável e indiscutível a decisão de mérito não mais sujeita a recurso” (art. 502 do CPC ). A coisa julgada não é, portanto, conforme há muito ensina Enrico Tullio Liebman, um efeito da sentença, mas a qualidade ou autoridade que recobre seus efeitos e os torna imutáveis e indiscutíveis, sendo tal instituto um dos aspectos mais relevantes na distinção entre tutela coletiva e individual.
Ocorre que, segundo o art. 16 da Lei nº 7.347/85 , na ação civil pública, a sentença: “fará coisa julgada erga omnes, nos limites da competência territorial do órgão prolator, exceto se o pedido for julgado improcedente por insuficiência de provas, hipótese em que qualquer legitimado poderá intentar outra ação com idêntico fundamento, valendo-se de nova prova.”
A presente redação do dispositivo legal decorreu da famigerada Lei nº 9.494/97, flagrantemente criada para a defesa de interesses fazendários, que, por sua vez, tem norma específica trazendo semelhante limitação, nos termos de seu art. 2-A: “A sentença civil prolatada em ação de caráter coletivo proposta por entidade associativa, na defesa dos interesses e direitos dos seus associados, abrangerá apenas os substituídos que tenham, na data da propositura da ação, domicílio no âmbito da competência territorial do órgão prolator.”
E completa o parágrafo único: “Nas ações coletivas propostas contra a União, os Estados, o Distrito Federal, os Municípios e suas autarquias e fundações, a petição inicial deverá obrigatoriamente estar instruída com a ata da assembleia da entidade associativa que a autorizou, acompanhada da relação nominal dos seus associados e indicação dos respectivos endereços.”
Interpretação literal e conjunta dos dispositivos sugere que a coisa julgada, no âmbito da tutela coletiva, estaria circunscrita a um determinado espaço físico. Como se percebe, essa previsão, em sua literalidade, é incompatível com a regência da coisa julgada. Esta, conforme afirmado, representa a qualidade de indiscutibilidade de que se reveste o efeito declaratório da sentença de mérito. Não se trata de um efeito, mas de uma qualidade que se agrega a certo efeito. Pensar que uma qualidade de determinado efeito só existe em porção do território, afirmam Marinoni, Arenhart e Mitidiero , seria o mesmo que dizer que uma fruta só é vermelha em certo lugar do país.
O que os dispositivos, evidentemente, objetivam é limitar a eficácia subjetiva da sentença (e não da coisa julgada). Há, portanto, equívoco legislativo. Confundiram-se limites subjetivos da coisa julgada, matéria efetivamente tratada na norma (como produto da interpretação), com jurisdição e competência.
Aqui, é preciso recorrer aos ensinamentos de Paulo de Barros Carvalho quando afirma que não devemos esperar do legislador a edificação de um sistema logicamente bem construído, harmônico e cheio de sentido. Essa tarefa difícil está reservada, única e exclusivamente, ao cientista, munido de seu instrumental epistemológico, transformando a multiplicidade caótica de normas numa construção congruente. A interpretação, muitas vezes, não poderá ser literal, sob pena de se construir um sistema jurídico verdadeiramente esquizofrênico.
Não merece prosperar, portanto, a ideia de que o dispositivo, exclusivamente por esse aspecto, seria ineficaz, já que decorrente de mera confusão conceitual.
Em outras palavras, o que desejou o Presidente da República, com a chancela do Congresso Nacional, foi reduzir ou limitar quem seria beneficiado por eventuais decisões proferidas no âmbito da tutela coletiva (eficácia subjetiva da sentença), único meio de, em respeito ao princípio democrático, conferir algum sentido aos dispositivos legais.
O leitor mais atento, contudo, já pôde perceber que a problemática trazida pelos artigos ora objetos de análise se desenvolve para muito além de atecnicas legislativas e confusões conceituais, conforme se verá no próximo tópico. Afinal, como conciliar eventuais limitações subjetivas ou territoriais à eficácia de decisões judiciais com a própria ontologia dos direitos essencialmente coletivos?
2. DA IMPOSSIBILIDADE ONTOLÓGICA DE LIMITAR TERRITORIALMENTE AQUILO QUE É TRANSINDIVIDUAL E INDIVISÍVEL POR DEFINIÇÃO
Nos termos do art. 81 do Código de Defesa do Consumidor (CDC), existem três diferentes espécies de direitos tutelados pelo microssistema coletivo em geral, e pela ação civil pública em especial. São eles: a) os direitos difusos; b) os direitos coletivos em sentido estrito; c) os direitos individuais homogêneos (também denominados “individuais de massa”).
Os direitos difusos, com fundamento no art. 81, parágrafo único, inciso I, do CDC, são os direitos subjetivamente transindividuais, de natureza materialmente indivisível, de que sejam titulares pessoas indeterminadas e indetermináveis, ligadas por circunstâncias de fato. Os direitos coletivos em sentido estrito, por sua vez, nos termos do inciso seguinte, são os direitos igualmente transindividuais e de natureza indivisível, de que seja titular grupo, categoria ou classe de pessoas indeterminadas (embora determináveis), ligadas entre si ou com a parte contrária por uma relação jurídica base.
Como se percebe, os direitos difusos e coletivos (em sentido estrito) são tipicamente transindividuais, não pertencendo a indivíduo determinado. Outrossim, são caracterizados por sua natureza indivisível. São direitos “essencialmente coletivos”, nas clássicas lições de Barbosa Moreira, sempre citado pela melhor doutrina. Por isso inconcebível a limitação da tutela oferecida a estes direitos a certos parâmetros territoriais.
A própria indivisibilidade do direito transindividual demonstra a incompatibilidade lógica e ontológica de limitação territorial com essas espécies de direitos. Basta imaginar um direito difuso, de toda a coletividade (como o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado – art. 225 da CRFB), sendo limitado a apenas um determinado território (em decisões proferidas em processos coletivos decorrentes da tragédia de Mariana/MG, por exemplo), o que feriria de morte a própria ideia de indivisibilidade que é essencial aos direitos transindividuais.
Quanto a esses, portanto, não tem o legislador condições de controlar os limites em que se farão sentir os efeitos de um provimento. Pode-se disciplinar os limites objetivos da coisa julgada, mas jamais será possível dizer, antecipadamente, quem ou que situação será atingida pelos efeitos do provimento.
O direito, já dizia Eros Grau, deve ser interpretado “inteligentemente, não de modo que a ordem legal envolva um absurdo, prescreva inconveniências, vá ter a conclusões inconsistentes ou impossíveis.”
Ocorre que os direitos individuais homogêneos (art. 81, parágrafo único, inciso III, do CDC) são, em verdade, direitos individuais, perfeitamente atribuíveis a sujeitos específicos. A qualificação de homogêneos não altera essa natureza. São, portanto, o conjunto de diversos direitos subjetivos individuais que, embora pertencendo a pessoas distintas, têm a assemelhá-los uma origem comum, o que lhes dá um grau de homogeneidade, uma relação de afinidade, suficiente a ensejar sua defesa coletiva.
Resta claro que não são transindividuais e, tampouco, indivisíveis. Tanto que a proteção pode se dar ou por tutela coletiva ou por tutela individual com formação de litisconsórcio.
Perceba-se, inclusive, que homogeneidade não é sinônimo de igualdade, mas de afinidade. Direitos homogêneos não são direitos iguais, mas similares. Neles é possível identificar elementos comuns (núcleo de homogeneidade), mas também, em maior ou menor medida, elementos característicos e peculiares, o que os individualiza, distinguindo uns dos outros (margem de heterogeneidade).
Diferentemente dos direitos transindividuais, a pluralidade nos direitos individuais homogêneos não é somente dos sujeitos (que são indivíduos determinados), mas também do objeto material, que é divisível e pode ser decomposto em unidades autônomas.
Em outras palavras, os direitos homogêneos são, por esta via exclusivamente pragmática, transformados em estruturas moleculares, não como fruto de uma indivisibilidade inerente ou natural, mas por razões de facilitação de acesso à justiça, pela priorização da eficiência e da economia processuais.
Direitos ou interesses coletivos (em sentido amplo) e direitos individuais homogêneos constituem, portanto, categorias ontologicamente diferenciadas.
Assim, a afirmação de Barbosa Moreira segundo o qual os direitos individuais homogêneos podem ser classificados como “acidentalmente coletivos” deve ser entendida com reservas. É classificação decorrente não de um enfoque material do direito, mas sim de um ponto de vista processual. O “coletivo” diz respeito apenas ao modo como aqueles direitos podem ser tutelados.
Tais afirmações são reforçadas pelas lições de Teori Zavascki quando afirma que não se deve confundir direito coletivo com defesa coletiva de direitos (individuais). Tal distinção, inclusive, dá nome a sua mais célebre obra: “Processo coletivo: tutela de direitos coletivos e tutela coletiva de direitos”.
Portanto, os direitos individuais homogêneos caracterizam-se por serem direitos típica e fundamentalmente individuais. Trata-se de simples opção legislativa, no sentido de otimizar a resposta jurisdicional que se oferece a situações de direitos individuais de massa.
Sendo assim, em mais uma esforço hermenêutico, somente é possível conferir algum sentido e aplicabilidade ao texto legal no âmbito dos direitos individuais homogêneos, interpretando o art. 16 da LACP à luz do art. 2-A da Lei nº 9.494/97. Afinal, nesse caso, o objeto do litígio são direitos individuais e divisíveis, formados por uma pluralidade de relações jurídicas autônomas, que comportam tratamento separado, sem comprometimento de sua essência material.
Ressalte-se, por lealdade acadêmica, que já houve (hoje absolutamente superada) corrente, capitaneada por Ada Pellegrini Grinover, em que se sustentava a aplicabilidade/incidência do art. 16 da LACP somente aos direitos difusos e coletivos. Isso porque a Lei nº 7.347/85 só disciplinaria a tutela jurisdicional destes. A criação da categoria
dos interesses individuais homogêneos seria própria do CDC, que não traz semelhante limitação. Tal corrente chegou a ser abraçada pelo STJ, em isolado precedente de relatoria da Ministra Nancy Andrighi.
Essa decisão, entretanto, foi reformada em julgamento de embargos de divergência, ainda mais teratológico, tendo a 2ª Seção do STJ, a época, decidido que o art. 16 da LACP se aplicaria a qualquer espécie de direito tutelado pelo microssistema coletivo, inclusive os individuais homogêneos, o que, conforme se busca demonstrar é fática e juridicamente impossível.
Se os direitos essencialmente coletivos são subjetivamente transindividuais e materialmente (ou ontologicamente) indivisíveis, como limitar os efeitos da decisão proferida a determinado território? A extensão subjetiva erga omnes ou ultra partes é consequência natural da transindividualidade e da indivisibilidade do direito tutelado na demanda.
Após tantas críticas apresentadas e tendo algumas delas sido superadas, resta saber: seriam tais dispositivos legais formal e materialmente constitucionais?
3. DA (IN)CONSTITUCIONALIDADE DOS ARTIGOS 16 DA LACP E 2-A DA LEI Nº 9.494/97
Ao prever e garantir os direitos coletivos e individuais violados em massa, implicitamente a Constituição exigiu do legislador ordinário o desenvolvimento de mecanismos eficientes de proteção desses interesses. O direito transindividual não pode ser confundido com o direito individual e, mesmo este último, diante das peculiaridades da
sociedade de massa, merece tratamento diferenciado.
Há quem sustente, como Nelson Nery Junior, em que pese discordemos veementemente, e citamos apenas ante a envergadura de seus defensores, a tese de que a modificação legal tenha sido ineficaz por ter modificado dispositivo que já não mais se encontrava em vigor.
Segundo esse entendimento, a partir do momento em que o CDC passou a regulamentar de forma exaustiva o tema da coisa julgada na tutela coletiva por meio de seu art. 103, o art. 16 da LACP, com redação anterior, que não trazia qualquer limitação territorial ou subjetiva, teria sido tacitamente revogado. Como o CDC é de 1990 e a mudança do art. 16 para a atual redação deu-se em 1997 (Medida Provisória 1.570/97), a modificação teria sido ineficaz e, portanto, inaplicável.
Não concordamos com esse entendimento porque, para ampará-lo, seria necessário afastar a ideia de microssistema coletivo, com interação e diálogo (e jamais revogação, salvo se expressa) de leis que versam sobre processo coletivo. Ora, a Lei da Ação Civil Pública e o Código de Defesa do Consumidor estão interligados, existindo perfeita interação entre os dois estatutos legais. Não é porque repudiamos vigorosamente os dispositivos em que tela que abandonaremos nossas convicções e, sobretudo, a boa técnica.
Ciente da fragilidade do supraexposto, sustenta Nelson Nery Junior, ainda, que o “Presidente da República editou [a atual redação do art. 16 da LACP], por meio de medida provisória, sem que houvesse autorização constitucional para tanto, pois não havia urgência (o texto anterior vigorava há doze anos, sem oposição ou impugnação).” Como é notório, o art. 62 da Constituição, de fato, prevê que o Presidente da República somente poderá editar medidas provisórias em caso de relevância e urgência.
Em que pese mais sedutor tal argumento, entende o Supremo Tribunal Federal que a definição do que seja relevante e urgente para fins de edição de medidas provisórias consiste em um juízo político (escolha política/discricionária) de competência do Presidente da República, controlado, em regra, pelo Congresso Nacional. Desse modo, salvo em caso de “notório abuso”, o Poder Judiciário não deve se imiscuir na análise dos requisitos da MP, quanto mais décadas após sua edição.
Não obstante, todos os esforços hermenêuticos e argumentativos anteriores para salvar os dispositivos legais foram em vão. A verdade é que as regras não sobrevivem a um controle de validade substancial das normas a partir da Constituição, por: a) ofenderem a isonomia; b) já que fomentam o conflito lógico e prático de julgados; c) além de comprometerem o acesso à justiça; d) com ressonância na própria eficiência da prestação jurisdicional; e) e estarem em desacordo com o princípio hermenêutico da máxima efetividade; f) em violação ao princípio da vedação à proteção insuficiente/deficiente; g) ou, em última análise, por afrontarem o próprio espírito e características mais elementares da tutela coletiva.
A exigência de diversas ações coletivas a respeito da mesma circunstancia fáticojurídica poderá gerar decisões contraditórias. E, uma vez existindo várias decisões de diferente teor, também restará maculado o princípio da isonomia, com potencial tratamento jurisdicional distinto para sujeitos pela simples razão de serem domiciliados em diferentes localidades.
Mais que isso, limitar a abrangência da coisa julgada nas ações civis públicas significa multiplicar demandas, o que, de um lado, contraria toda a filosofia dos processos coletivos, destinados justamente a resolver molecularmente os conflitos de interesses, ao invés de atomizá-los e pulverizá-los. De outro lado, contribui para a multiplicação de processos, a sobrecarregarem os tribunais, exigindo múltiplas respostas jurisdicionais quando uma só poderia ser suficiente, em flagrante atentado ao princípio da eficiência.
Por isso, é de precisão cirúrgica Ada Pellegrini Grinover quando constata que “no momento em que o sistema brasileiro busca saída nos precedentes vinculantes, o menos que se pode dizer do esforço redutivo do Executivo é que vai na contramão da história.” O leitor há de convir: ou a demanda é coletiva, ou não o é; ou a coisa julgada é erga omnes, ou não o é.
Daniel Assumpção traz interessante exemplo em sua obra: imagine que o Ministério Público Estadual ingressou com uma ação coletiva para obrigar um fornecedor a dispor um telefone 0800 para os consumidores que, uma vez tendo adquirido o produto em telefonemas gratuitos, tinham que posteriormente reclamar por meio de telefonemas pagos, inclusive interurbanos.
Agora basta imaginar uma sentença de procedência diante de tal pedido. Ela teria efeito somente para os consumidores domiciliados na comarca em que tramitou a demanda judicial, ou, ainda, na melhor das hipóteses, no Estado em que a Comarca está contida?
Instado a criar um telefone 0800, ele seria disponível somente para quem provasse ser domiciliado naquele determinado território? Consumidores de outro Estado receberiam uma mensagem gravada afirmando que o serviço para eles não funcionaria porque no seu Estado não teria o fornecedor sido condenado a oferecer tal serviço?
Aliás, o objetivo do dispositivo de limitar a abrangência dos efeitos da sentença nem em demandas individuais se prestaria. Uma pessoa divorciada, por exemplo, não pode ser divorciada apenas na cidade onde foi prolatada a sentença de seu divórcio. Ora, imagine se uma sentença de divórcio proferida por Juiz de São Paulo não pudesse valer no Rio de Janeiro, continuando os (ex?) cônjuges casados nesta comarca.
O legislador infraconstitucional não poderia autorizar uma prática que feriria o princípio da igualdade em seu núcleo essencial, pois pessoas na mesma situação, nas lições mais comezinhas de Introdução ao Estudo do Direito, não deveriam receber do Poder Judiciário potenciais soluções distintas. Exigir-se o fracionamento da questão coletiva, com o evidente risco de decisões contraditórias, é, sem dúvida, violar, para além da isonomia, o bom senso.
Se a apontada limitação territorial dos efeitos da sentença não ocorre nem no processo singular, com mais razão, não pode ocorrer no processo coletivo, sob pena de desnaturação desse salutar mecanismo de solução plural das lides.
Bem lembra o professor Alexandre Câmara que o art. 506 do CPC/15, diferentemente de seu antecessor (art. 472 do revogado CPC/73), embora regulando as demandas individuais, estabelece que terceiros não podem ser prejudicados pela coisa julgada, o que implica dizer que podem eles se beneficiar de uma coisa julgada formada em processo de que não tenham participado.
Não obstante todas essas considerações, o STJ vinha oscilando muito no que diz respeito à aplicabilidade dos artigos em tela. Até 2014, prevalecia na Corte o entendimento externado no já citado REsp nº 411.529/SP, em sede de embargos de divergência: a aplicabilidade do art. 16 da LACP a qualquer espécie de direito tutelado pelo microssistema coletivo, inclusive os individuais homogêneos.
Naquele ano, contudo, os Ministros do STJ passaram a reconhecer as impropriedades do referido dispositivo. Tendo como paradigma o REsp nº 1.114.035/PR, o STJ firmou entendimento defendendo a inaplicabilidade do art. 16 aos direitos difusos e coletivos em sentido estrito, dizendo ser ele aplicável apenas na defesa de direitos individuais homogêneos.
Finalmente, nos embargos de divergência no REsp nº 1.134.957/SP, a Corte Especial do STJ, em sessão ocorrida em 2016, consagrou seu atual entendimento, consolidando que também em relação aos direitos individuais homogêneos a sentença coletiva não deve ter abrangência restrita à competência territorial do órgão julgador, afastando-se a aplicabilidade do art. 16.
Não obstante os avanços, sobretudo no Tribunal da Cidadania (STJ), aquele que deveria o Guardião da Constituição (STF), em verdadeiro retrocesso, no RE nº 612.043/PR, julgado em 2017, declarou expressa e especificamente a constitucionalidade do art. 2-A da Lei nº 9.494/97.
Na oportunidade foi proposta a tese de que a eficácia subjetiva da coisa julgada formada a partir de ação coletiva, ajuizada por associação civil na defesa de interesses dos associados, somente alcançaria os filiados, residentes no âmbito da jurisdição do órgão julgador, que o sejam em momento anterior ou até a data da propositura da demanda,
constantes de relação juntada à inicial do processo de conhecimento.
Isso porque, de acordo com o entendimento dominante no Supremo, as associações representariam (legitimação ordinária), e não substituiriam processualmente (legitimação extraordinária), seus filiados, salvo no caso de mandado de segurança.
Ocorre que, pelos mesmos argumentos supraexpostos, a inconstitucionalidade dessa norma é manifesta. Primus, é da essência da ação coletiva a peculiar eficácia subjetiva da coisa julgada, que se dá erga omnes ou ultra partes, conforme o caso. Secundus, quando propõe ação, em nome próprio, a associação não está na condição de representante, mas de substituto processual. Ou seja: a tutela é requerida por quem não é titular do direito afirmado,
embora em favor de quem o é. Vale reforçar que tudo que se disse em relação ao art. 16 da LACP, aplica-se ao art. 2-A da Lei nº 9.494/97.
Adotando a corrente esposada pelo STF no RE nº 612.043/PR, questiona-se: qual seria a diferença, do ponto de vista da efetividade da tutela do direito subjacente ou de economia processual, entre uma ação coletiva ajuizada por uma associação na tutela de direitos individuais homogêneos e o mero ajuizamento de ação individual proposta por seus associados em litisconsórcio ativo? A resposta é evidente, embora estarrecedora: nenhuma.
Mais um exemplo elucidativo: uma sentença estrangeira pode produzir efeito em todo território nacional, desde que submetida ao procedimento de homologação de sentença estrangeira perante o STJ. No entanto, uma sentença brasileira coletiva somente poderia produzir efeitos nos limites territoriais do juízo prolator ou para indivíduos ali domiciliados. Trata-se de absurdo sem precedentes.
Para além de todos os argumentos já expostos, parece que os Ministros do STF não se atentaram para um fundamento, diferentemente dos anteriores, pouco desenvolvido pela doutrina. A dignidade constitucional da ação civil pública (art. 129, inciso III) exige do leitor redobrada atenção. Isso porque a previsão constitucional desse procedimento ressalta a sua importância e dos direitos por ele protegidos, o que deveria reforçar o compromisso do Estado brasileiro com a sua preservação.
É necessário não perder de vista a índole constitucional da tutela coletiva, que importa a eficácia maximizada que se lhe deve sempre emprestar, não se justificando limitações ou interpretações ilegítimas que reduzam sua efetividade.
A tutela coletiva (quer relativa a direitos transindividuais, quer a concernente a direitos individuais de massa) tem origem constitucional, em regras inúmeras, coroadas na cláusula que concebe a garantia do acesso à Justiça (art. 5º, inciso XXXV), exigindo-se que se oferte, àquele que se diz titular de um direito, mecanismos adequados de proteção, ou seja, meios de tutela efetivamente predispostos e consentâneos para a realidade do direito material específico. A garantia exige, portanto, a concepção de instrumentos hábeis a lidar, de maneira completa, com esses interesses.
Não há dúvidas, portanto, em que pese a omissão doutrinária acerca do tema, de que a Ação Civil Pública possui natureza jurídica de verdadeira garantia fundamental, ou seja, de instrumento constitucional que assegura e promove os direitos fundamentais, igualmente constitucionais.
Como tal, à luz do princípio da máxima efetividade, deve o aplicador do direito interpretar as normas a fim de que sejam otimizadas sua eficácia, densificando seus preceitos, a fim de assegurar a efetividade dos direitos fundamentais. Em síntese: O Poder Público, em suas ações, deve sempre se voltar para o cumprimento e potencialização dos direitos fundamentais e não o oposto, desnaturando a principal marca da ação coletiva (a coisa
julgada), tão logo se sentiu ameaçado com algo que não deveria incomodá-lo: a defesa coletiva dos cidadãos.
Nesse sentido, conquanto a regra da proporcionalidade ainda seja predominantemente entendida como instrumento de controle contra excessos dos poderes estatais, cada vez mais vem ganhando importância a discussão sobre a sua utilização para finalidade oposta, isto é, como instrumento contra a omissão ou contra a ação insuficiente dos
poderes estatais. Antes se falava apenas em proibição de excesso. Já há algum tempo fala-se também em proibição de insuficiência.
Limitar a eficácia das decisões proferidas no âmbito da tutela coletiva, instrumento de proteção dos mais diversos direitos fundamentais, traz a tona, portanto, mais uma inconstitucionalidade: aquela decorrente da proteção insuficiente, postulado que visa impedir que medidas constitucionalmente exigidas para a proteção e promoção dos direitos fundamentais fiquem aquém do necessário.
CONCLUSÃO
Conforme restou evidenciado, sem a tradição dos mecanismos de tutela individual dos direitos subjetivos, os instrumentos de tutela coletiva, trazidos por leis extravagantes, ainda passam por fase de adaptação e de acomodação, suscitando, por isso mesmo, muitas controvérsias interpretativas. O tempo, a experimentação, o estudo e, eventualmente, os ajustes legislativos necessários, sem dúvida, farão dos mecanismos de tutela coletiva uma via
serena de aperfeiçoamento da prestação da tutela jurisdicional.
No que tange ao objeto do presente trabalho, importante frisar que a finalidade social da função jurisdicional, que é de pacificar com justiça, perde-se diante da fragmentação e pulverização dos conflitos. Na atual sociedade de massas, exige-se uma acrescida proteção, em nome da justiça social, daqueles interesses que aglutinam grandes conjuntos de cidadãos.
A substituição de decisões atomizadas (na expressão de Kazuo Watanabe) pelo tratamento molecular das controvérsias, levando à solução do Judiciário, de uma só vez, conflitos que envolvem milhares ou milhões de pessoas, significou tornar o juiz a peça principal na condução de processos de massa que, por envolverem conflitos de massa, têm sempre relevância política, econômica e social. Graças aos processos coletivos, o Judiciário, saindo de uma posição frequentemente distante e remota, tornou-se protagonista das grandes controvérsias nacionais, sem que isso abale, prima facie, o sistema de freios e contrapesos.
Os efeitos erga omnes ou ultra partes das decisões proferidas no âmbito da tutela coletiva serão de âmbito nacional, regional ou local, não conforme a arbitrária e ilegítima (diga-se, inconstitucional) vontade dos poderes Executivo e Legislativo, nem mesmo de teratológicas interpretações pretorianas, mas sim conforme a extensão de dano ou referente ameaça, bem como a qualidade dos direitos postos em Juízo, atuando no plano dos fatos e litígios concretos.
O leitor há, novamente, de convir: se até a sentença estrangeira pode produzir efeitos no Brasil, qualquer sentença proferida por órgão do Poder Judiciário pátrio pode ter eficácia para além de seu território.
A tutela jurisdicional dos direitos difusos, coletivos em sentido estrito e individuais homogêneos representa, em nosso atual estágio jurídico, sociológico, político e econômico, uma das conquistas mais expressivas do direito brasileiro.
O Executivo, seguido pelo Legislativo, foi extremamente infeliz. Limitar a abrangência da coisa julgada nas ações civis públicas significa multiplicar demandas, o que, de um lado, contraria toda a filosofia dos processos coletivos, destinados justamente a resolver molecularmente os conflitos de interesses, ao invés de atomizá-los e pulverizá-los.
De outro, contribui para a multiplicação de processos, a sobrecarregarem os tribunais, exigindo múltiplas respostas jurisdicionais quando uma só poderia ser suficiente. No momento em que o sistema brasileiro busca saída até nos precedentes vinculantes, pode-se dizer, em elegante crítica, que o esforço do Poder Executivo foi que na contramão da história.
O governo usou seu poder de império para alterar a legislação da maneira que lhe convinha, desnaturando a principal marca da ação coletiva (a coisa julgada), tão logo se sentiu ameaçado com algo que não deveria incomodá-lo: a defesa coletiva dos cidadãos.
Ora, o principal objetivo do processo coletivo é justamente permitir que um sem número de indivíduos seja beneficiado por uma decisão judicial sem que cada um tenha que percorrer, individualmente, o caminho do Judiciário para satisfazer suas pretensões.
Ao longo desse trabalho, em cada tentativa de “salvar” as normas, o que se buscou, em verdade, foi fortalecer a desconstrução delas que estaria por vir. Ou seja, nem mesmo com todo esforço hermenêutico ou argumentativo é possível concordar com a incidência, seja indiscriminada, seja mitigada, desses famigerados dispositivos legais. Fique, portanto, o alerta aos desavisados: “ou a demanda é coletiva, ou não o é; ou a coisa julgada é erga omnes ou
não o é.”
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