Os princípios são postulados fundamentais que inspiram todo o modo de agir da Administração Pública. Representam cânones normativos que norteiam a conduta do Estado quando no exercício de atividades administrativas. Não se pode encontrar qualquer instituto do Direito Administrativo que não seja informado pelos respectivos princípios.[1]
Isso se dá porque o Direito Administrativo vem passando por transformações importantes em razão do fenômeno da constitucionalização do Direito. O reconhecimento da normatividade da Constituição, preponderantemente axiológica, e de sua superioridade hierárquica exige adequação de todo o ordenamento jurídico ao texto constitucional.
Para além do status hierárquico superior, trata-se de verdadeiro processo dinâmico-interpretativo de releitura do ordenamento jurídico que passa a ser impregnado de normas constitucionais. Em consequência, a aplicação e interpretação de todo ordenamento devem passar necessariamente pelo filtro valorativo da Constituição (“filtragem constitucional”).
Nesse sentido, também o clássico princípio da legalidade deve ser reinterpretado a partir do fenômeno da constitucionalização do Direito Administrativo. Não é possível conceber a atividade administrativa como mera executora mecânica da lei. A atuação administrativa deve ser pautada não apenas pelo seu cumprimento, mas também pelo respeito aos princípios constitucionais. Fala-se, hoje, no princípio da juridicidade, que confere maior importância ao Direito como um tudo, daí derivando a obrigação de se respeitar, inclusive, a noção de legitimidade.[2]
Os princípios exercem ainda mais influência e são de suma importância para o Direito Administrativo, justamente por se tratar de ramo do direito não codificado.
Especificamente em material penal, ensina Eugênio Pacelli, “pode-se alinhar o princípio da lesividade ou da ofensividade como inerente a todo e qualquer tipo penal. Trata-se de verdadeira norma não escrita, mas contida implicitamente em todo o Direito de natureza penal.” E complementa: “a literalidade dos tipos penais não pode servir de referência absoluta para a determinação de seu alcance. (…) a tipicidade formal, isto é, a subsunção do fato à norma, constitui apenas o ponto de partida; o ponto de chegada, porém, será o juízo de tipicidade material, com a efetiva violação ao bem jurídico protegido.”[3] Trata-se, portanto, de verdadeiro princípio constitucional implícito.
Ocorre que, a partir de um posicionamento cristalizado na doutrina europeia de que o ius puniendi estatal é único, é preciso lutar pela aplicação dos princípios penais e processuais penais garantistas e limitadores também ao Direito Administrativo Sancionador. [4]
Afinal, o efeito aflitivo da sanção é identificado por García de Enterría[5] como o elemento central da sanção administrativa. Para o célebre e saudoso administrativista espanhol, as infrações administrativas diferenciam-se das penas somente segundo um aspecto formal, relativamente à autoridade que as impõe.
O tema ganha especiais contornos para a Defensoria Pública quando se atenta para o fato de que está entre suas funções institucionais exercer a ampla defesa e o contraditório em favor de pessoas naturais e jurídicas também em processos administrativos, perante todos os órgãos e em todas as instâncias (art. 4º, inciso V, da LC 80/94). A Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro, por exemplo, vem lutando pela edição de nova lei que regule os Conselhos Militares. O procedimento administrativo, que pode ensejar até a expulsão do militar, está em total descompasso com a Constituição.[6]
Aliás, não raras ocasiões, a intensidade da sanção administrativa é mais acentuada que da penal. Por isso mesmo, o autor afirma, acertadamente, que o Direito Administrativo Sancionador, em sua perspectiva material ou processual, não pode constituir instância repressiva arcaica, que recorra inadvertidamente a grosseiras técnicas de responsabilidade.
Para isso, é preciso pensar da construção teórica de um tipo administrativo sancionador como corolário do princípio da juridicidade. No Direito Administrativo, assim como no Direito Penal, é necessário que o indivíduo saiba quais são seus deveres e direitos. E mais: é imprescindível que tenha a certeza de que não terá seus direitos ofendidos por mera discricionariedade (ou pior: arbitrariedade).
Por conseguinte, importa (e importa muito) identificar, no amplo contexto das várias irregularidades passíveis de cometimento pelo agente público, aquelas que contêm seguros elementos que apontam para a existência de mínima relevância para o Direito Administrativo Sancionador. Esses elementos são, assim como no Direito Penal: a tipicidade (formal), a lesividade (ou tipicidade material), a antijuridicidade e a culpabilidade, que compõem um verdadeiro conceito analítico do tipo administrativo sancionador.
Ante essa reflexão, é possível (e necessário) revisitar o princípio da insignificância na sua face administrativa. Não se trata de um culto à impunidade ou incentivo a infrações bagatelares, mas de um instrumento jurídico que não só garante a razoabilidade e adequação da sanção eventualmente imposta à conduta perpetrada, como também permite uma maximização da estrutura estatal para que se punam as condutas de maior lesividade à Administração e ao Erário.
É possível encontrar precedentes do Superior Tribunal de Justiça nesse sentido:
“O ato havido por ímprobo deve ser administrativamente relevante, sendo de se aplicar, na sua compreensão, o conhecido princípio da insignificância, de notável préstimo no Direito Penal moderno, a indicar a inaplicação de sanção criminal punitiva ao agente, quando o efeito do ato agressor é de importância mínima ou irrelevante, constituindo a chamada bagatela penal: de minimis non curat Praetor.” (AgRg no REsp 968447/PR, Rel. Ministro Napoleão Nunes Maia Filho, Primeira Turma, julgado em 16/04/2015)
Nessa mesma linha, adotando uma teoria do tipo administrativo sancionador, em notável avanço civilizatório, a Controladoria-Geral da União[7] em seu “Manual de Processo Administrativo Disciplinar”:
“Viu-se que o primeiro requisito da infração disciplinar é que a conduta seja típica, conjugadas as tipicidades objetiva e subjetiva. Portanto, a ausência tanto do dolo quanto da culpa afasta toda a tipicidade da conduta, que então não deverá ser considerada uma infração disciplinar.
Certas condutas, entretanto, poderão ser atípicas no Direito Penal, em virtude da inexpressiva ofensa que tiverem causado ao bem jurídico tutelado. Este é o fundamento do Princípio da Insignificância ou da Bagatela, defendido por alguns doutrinadores sob o argumento de que a tipicidade também exige que o bem jurídico pela norma que prevê a infração seja efetivamente afetado, e, portanto, a irrelevância da lesividade material do ato o excluiria do âmbito de proibição da norma, deixando de existir a tipicidade.
Seria possível adaptar este princípio ao Direito Disciplinar, abarcando aquelas condutas que à primeira vista seriam enquadráveis legalmente, mas que devido ao ínfimo potencial ofensivo, não são capazes de afetar o interesse público tutelado. Entretanto, como ele não consta expressamente reconhecido no ordenamento jurídico administrativo, pode também ser considerado uma decorrência dos princípios da razoabilidade e da proporcionalidade.”
Não há como negar que os enunciados da maioria dos tipos administrativos dos estatutos disciplinares são extremamente abertos, o que exige do seu aplicador especial atenção e cuidado com os aspectos fáticos dos ilícitos administrativos ali elencados, para se evitar que a extensão conceitual daquelas figuras termine por ampliar os seus contornos, ao ponto de neles caberem condutas que não expressam infrações minimamente graves à ordem administrativa e que por isso não devem ser classificadas como infração administrativa disciplinar, mas sim como meras irregularidades, indiferentes ao Direito Sancionador.
Para poder impor sanção, o Estado precisa, antes de tudo, definir na lei (e somente nela) com as minúcias possíveis aquilo que a sociedade não quer ver realizado e estabelecer a exata retribuição que recairá sobre o agente,[8] delimitando ao máximo o campo semântico dos preceitos normativos.
É, portanto, insuficiente a clássica definição doutrinária de infração administrativa como o mero “descumprimento de um dever (conduta contrária ao comando da norma), pelo destinatário da norma jurídica, cuja sanção possa ser imposta por autoridade administrativa (no exercício da função administrativa), em virtude do ordenamento jurídico conferir-lhe tal competência.”[9]
Não se configurará infração administrativa a conduta pelo seu só ajuste semântico-gramatical ao texto da norma proibitiva ou deontológica. É, pois, insuficiente o enquadramento típico meramente formal da conduta. Avulta-se forçoso, outrossim, que a conduta seja materialmente violadora dos preceptivos deontológicos previstos na legislação, é dizer-se, ela deve ser repugnada mesmo após o teste de razoabilidade e proporcionalidade.[10] É possível falar, inclusive, numa função conglobante do tipo administrativo sancionador.
Há, assim, a necessidade também de utilização do Direito Administrativo Sancionador, e não apenas do Direito Penal, com certa prudência, a fim de que não seja enfraquecido e se torne impotente, vulgarizando-se pelo excesso de sua utilização. No âmbito da improbidade administrativa, segundo a jurisprudência dominante do STJ:
“A distinção entre conduta ilegal e conduta ímproba imputada a agente público ou privado é muito antiga. A ilegalidade e a improbidade não são situações ou conceitos intercambiáveis, cada uma delas tendo a sua peculiar conformação estrita: a improbidade é uma ilegalidade qualificada pelo intuito malsão do agente, atuando com desonestidade, malícia, dolo ou culpa grave. (…) nem toda ilegalidade é ímproba. (…) Quando não se faz distinção conceitual entre ilegalidade e improbidade, ocorre a aproximação da responsabilidade objetiva por infrações.” (REsp 1.193.248-MG, Rel. Min. Napoleão Nunes Maia Filho, julgado em 24/4/2014)
No mesmo sentido a doutrina especializada de Rafael Oliveira e Daniel Assumpção[11], quando afirmam que “qualquer deslize administrativo, por menor que ele seja, poderia configurar violação ao princípio da legalidade, atraindo a incidência das sanções de improbidade, o que acarretaria insegurança jurídica para os agentes públicos.” E igualmente complementam: “Em suma: a improbidade não se confunde com ilegalidade, exigindo-se, ainda, a configuração de desonestidade do agente público.”
Para além de todo este arcabouço principiológico, doutrinário e jurisprudencial, há de se atentar para as recentes alterações legislativas perpetradas pela Lei 13.655/2018, que acresceu diversos dispositivos à LINDB. Dentre eles estão o art. 22, §2º, que determina na aplicação de sanções a consideração da gravidade da infração cometida e os danos que dela provierem para a administração pública. De outro lado, contribui argumentativamente o artigo 28 quando determina que “O agente público responderá pessoalmente por suas decisões ou opiniões técnicas em caso de dolo ou erro grosseiro.”
Para Floriano de Azevedo Marques Neto e Rafael Véras de Freitas, em artigo publicado no Conjur com sugestivo nome (“O artigo 28 da nova LINDB: um regime jurídico para o administrador honesto”), “o artigo 28 da nova LINDB revitaliza no nosso sistema a expressa responsabilidade subjetiva do agente público. Não tolhe a coibição dos comportamentos ímprobos, desonestos. Mas presta a devida deferência ao servidor honesto.”[12]
Há muito está superada a concepção de que as sanções administrativas estariam baseadas em infrações de mera ordenação, destinadas à proteção das estruturas do Estado, e, portanto, eticamente neutras.
Demonstra-se que o princípio da insignificância, instituto tipicamente penal, manifestação dos princípios constitucionais implícitos da lesividade e da proporcionalidade, é perfeita e impositivamente aplicável ao campo do Direito Administrativo Sancionador. Ou seja, com base na aplicação dos princípios constitucionais incidentes sobre o Direito Administrativo, utiliza-se de princípio classicamente penal, de modo se afastar a tipicidade material da conduta.
Não há dúvidas, portanto, de que o estudo e o desenvolvimento de uma teoria do tipo administrativo sancionador é de extrema relevância, com impactos, inclusive, no âmbito da Execução Penal, o que pode tomar o Direito Penal como ponto de partida epistemológico, embora para muito além dele. Só assim será possível uma limitação racional do ius puniendi estatal em suas diversas manifestações.
NOTAS
[1] CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de Direito Administrativo. São Paulo: Atlas, 2017, p. 18.
[2] OLIVEIRA, Rafael Carvalho Rezende. Curso de Direito Administrativo. Rio de Janeiro: Forense, 2019, p. 40.
[3] PACELLI, Eugênio; CALLEGARI, André. Manual de Direito Penal: Parte Geral. São Paulo: Atlas, 2016, p. 93.
[4] GUARDIA, Gregório Edoardo Raphael Selingardi. Princípios processuais no direito administrativo sancionador: um estudo à luz das garantias constitucionais. Disponível em: <http://www.revistas.usp.br/rfdusp/article/view/89256/Rev_2014_27> Acesso em: 21 de julho de 2019.
[5] GARCÍA DE ENTERRÍA, Eduardo; FERNÁNDEZ, Tomás-Ramón. Curso de direito administrativo. Tradução de Arnaldo Setti. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1991. p. 876.
[6] http://www.defensoria.rj.def.br/noticia/detalhes/9035-Nova-lei-deve-regular-os-conselhos-militares-diz-defensor. Acesso em 21 de julho de 2019.
[7] https://www.cgu.gov.br/Publicacoes/atividade-disciplinar/arquivos/manualpad_130513.pdf. Acesso em 21 de julho de 2019.
[8] SANTOS, Luiz Fernando de Freitas. A tipicidade no direito administrativo sancionador: Balada de La Justicia y La Ley in OSÓRIO, Fábio Medina (coord.). Direito sancionador: sistema financeiro nacional. Belo Horizonte: Fórum, 2007, p. 257.
[9] VITTA, Heraldo Garcia. A sanção no direito administrativo. São Paulo: Malheiros, 2003. p.35.
[10] DE OLIVEIRA, Carlos Eduardo Elias. O juízo de proporcionalidade na fase de instauração de procedimentos disciplinares. Disponível em: <https://jus.com.br/artigos/24057/o-juizo-de-proporcionalidade-na-fase-de-instauracao-de-procedimentos-disciplinares>. Acesso em: 21 de julho de 2019.
[11] NEVES, Daniel Amorim Assumpção; OLIVEIRA, Rafael Carvalho Rezende. Manual de Improbidade Administrativa. Rio de Janeiro: Forense, 2017, p. 95
[12] MARQUES, Floriano de Azevedo; DE FREITAS, Rafael Véras. O artigo 28 da nova LINDB: um regime jurídico para o administrador honesto. Disponível em: <https://www.conjur.com.br/2018-mai-25/opiniao-lindb-regime-juridico-administrador-honesto>. Acesso em: 21 de julho de 2019.