Vivemos dias que valorizam fortemente os direitos fundamentais. Trata-se de categoria jurídica que surgiu, historicamente, no direito constitucional, mas hoje repercute, com singular relevância, em todo o ordenamento jurídico. Quando surgiram, os direitos fundamentais buscavam evitar agressões estatais. Eram direitos de defesa em face do Estado (a prestação devida pelo Estado consistia numa abstenção). Atualmente essa dimensão originária continua existindo, mas há outras dimensões que se somaram àquela original. Basta lembrar que o Estado, hoje, não deve apenas se abster de lesar direitos fundamentais. Deve ter uma postura ativa para que outros também não violem tais direitos.
Os direitos fundamentais, atualmente, são um sistema de valores que dão unidade à ordem jurídica. Podemos falar, nesse sentido, em dimensão objetiva dos direitos fundamentais, ou eficácia irradiante. Conforme dissemos acima, hoje não basta que os poderes públicos se abstenham de violar tais direitos. Exige-se deles bem mais: exige-se que os protejam de modo ativo contra agressões e ameaças provindas de terceiros. Em conexão teórica com os pontos acima mencionados, está o reconhecimento dos deveres de proteção por parte do Estado (que adiante estudaremos).
A atuação do Estado em relação aos direitos fundamentais não deixa de ser ambígua. É que, de um lado, pelo monopólio do uso legítimo da força, o Estado é forte candidato a violar direitos fundamentais (pensemos no histórico de abusos e excessos da polícia, por exemplo). Por outro lado, cada vez mais se exige do Estado que atue, inclusive preventivamente, para evitar lesões a direitos fundamentais (evitar, digamos, que haja bullying dentro de uma escola). Esta a ambivalência: o Estado, desse modo, deve ser o protetor precípuo dos direitos fundamentais, sendo com muita frequência seu cruel agressor. Essa constatação não inibe nem esvazia seus deveres de proteção, cada vez mais fortes e intensos. Sabendo que a vida, a segurança, a liberdade são ameaçadas, de modo constante, por particulares, o Estado é a autoridade que pode impedir essas violações. Aparece, nesse sentido, como amigo dos direitos fundamentais.
Cada vez mais se percebe que os direitos fundamentais afetam todos os setores da experiência jurídica, horizontalmente. Nenhuma relevância apresenta o caráter público ou privado da norma, nem mesmo se o Estado está agindo ou se omitindo. Os direitos fundamentais – com o perdão da obviedade – podem ser violados por ações ou omissões estatais. Às vezes as lesões mais graves, hoje, decorrem de omissões, não de ações. Nesse contexto, se quisermos levar a sério os direitos fundamentais, toda a atividade interpretativa-aplicativa (do legislador, do administrador e do juiz) deve ser orientada para a maior realização possível dos direitos fundamentais. Aliás, não exageramos ao afirmar que o direito à compensação dos danos extrapatrimoniais é espécie de direito fundamental.
Importante dizer que hoje se aceita, no Brasil, de modo crescente, a tese da aplicação direta dos direitos fundamentais às relações privadas. Assim, “que as normas constitucionais, e particularmente o rol dos direitos e garantias individuais, possuam direta eficácia nas relações de direito privado, parece pouco a pouco constituir um consenso para a melhor doutrina, animada sobretudo pelos debates doutrinários desenvolvidos na Alemanha, na Itália e em Portugal, nos últimos 30 anos”. Na Alemanha, prevalece na doutrina a tese da aplicação indireta (através da mediação do legislador), No Brasil, prevalece a tese da aplicação direta (sem a mediação do legislador). Talvez o melhor exemplo que possamos dar de aplicação dos direitos fundamentais às relações privadas seja o reconhecimento – unânime, pelo STF, ao julgar a Ação Direta de Inconstitucionalidade 4.277 e a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 132 – da união estável para casais do mesmo sexo. Diante da omissão do Congresso Nacional em legislar sobre a matéria, e várias posições – favoráveis e contrárias, na doutrina e na sociedade – a respeito da possibilidade, o STF entendeu que a admissibilidade da união estável em casos tais decorria dos princípios e regras constitucionais, diretamente aplicáveis.
Lembremos que o STF, em outra ocasião, declarou inconstitucional o artigo do Código Civil (art. 1.790) que estabelecia regimes sucessórios distintos para o cônjuge e companheiro (menos favorável para esse último). O STF entende que casamento e união estável são iguais no que diz respeito à herança (incluindo os homoafetivos). Em outras palavras, não importa como foi constituída a família, importa apenas se é família (STF, RE 646.721 e RE 878.694).
A tutela dos direitos fundamentais é uma tutela amplíssima, que não se esgota nesse ou naquele remédio, nesse ou naquele instituto. A energia criativa dos nossos dias pode criar – e espera-se que crie sempre – novos meios e formas de se tutelar, eficazmente, os direitos fundamentais. Lembrando que a tutela deles será tanto melhor quanto mais envolver dimensões preventivas. Desse modo, “a tutela dos direitos fundamentais nas relações privadas não se esgota na garantia de uma obrigação geral de abstenção, nem na reparação dos danos pelas lesões perpetradas, através da responsabilidade civil. A proteção conferida pela ordem constitucional é mais ampla, e envolve tanto uma tutela preventiva dos direitos como uma atuação repressiva e corretiva. Ademais, ela pode abranger tanto obrigações negativas do particular, como deveres positivos, dependendo das circunstâncias de cada caso e da concreta configuração dos interesses em jogo”.
Não cabe, nesta obra, discutir o fundamento dos direitos fundamentais. O tema é complexo e envolve denso debate de filosofia constitucional. Podemos resumir afirmando que o fundamento – ou um dos fundamentos – dos direitos fundamentais é a solidariedade.
Talvez seja importante, em nome da clareza, sistematizar alguns pontos: a) a aplicação direta dos direitos fundamentais às relações privadas é doutrina amplamente majoritária no Brasil. A aplicação direta também é conhecida como eficácia horizontal dos direitos fundamentais (aplicação direta dos direitos fundamentais nas relações privadas ou eficácia privada). Costuma-se, também, citar os termos originários, em alemão (Drittwirkung ou horizontalwirkung); b) o Estado deve não só se abster de lesar direitos fundamentais, deve agir para que terceiros não lesem (os direitos fundamentais, portanto, não são apenas direitos de defesa em face do Estado); c) vivemos uma fase que pode ser definida como o Estado dos direitos fundamentais (ou mais exatamente: o Estado como garantidor de direitos fundamentais); d) na atividade interpretativa-aplicativa deve-se buscar a máxima eficácia dos direitos fundamentais; e) os cidadãos são titulares de direitos fundamentais, mas o Estado não é.
São imensas e profundas as conexões, teóricas e normativas, entre os direitos fundamentais e a responsabilidade civil. Apesar dessa constatação, a abordagem doutrinária tradicional da responsabilidade civil não costuma convidar os direitos fundamentais para o debate. Sobretudo em certas áreas, essa confluência dos temas é essencial. Na responsabilidade civil do Estado, por exemplo, seria impensável – acreditamos – tratar hoje do tema sem sequer aludir aos direitos fundamentais, nos argumentos e nas conclusões.
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