Lembremos ainda que está havendo um deslocamento no eixo do sistema jurídico: de um sistema fechado, autorreferente, composto exclusivamente por regras, para um sistema que, sem desprezar as regras, enfoca, com particular preponderância, nos princípios e nos conceitos abertos. As fontes normativas – em especial aquelas situadas na Constituição – passaram a aceitar uma atividade jurídica mais permeável aos valores. Nesse sentido, não é exagero dizer que as dimensões existenciais do ser humano são de consideração relativamente recente, na caminhada histórica do direito privado. Hoje tanto a propriedade como os contratos ganham notas funcionais, isto é, a função define, em certo sentido, o que estes institutos são, e não apenas até aonde eles podem ir. Isto é, a funcionalização dos conceitos, categorias e institutos não atua apenas como limites externos.
Os contratos são instrumentos para a consecução de finalidades sociais. Trata-se de instituto jurídico cujas feições alteram-se de acordo com as funções que é chamado a exercer, bem como a partir do contexto econômico e social em que se insere. Perderam, atualmente, a cor puramente voluntarista, uma espécie de manto sagrado atrás do qual a vontade humana tudo podia (porque livremente manifestada). Não se trata, hoje, de buscar a vontade tácita para além da vontade expressamente declarada. É preciso absorver a imensa mudança havida: a Constituição confere força obrigatória aos contratos não porque voluntariamente queridos – na medida do querer egoístico das partes –, e sim porque seus efeitos são socialmente adequados, proporcionais, razoáveis e equitativos.
Há, além disso, a necessidade da tutela da confiança das partes e de terceiros. Busca-se, como veremos adiante, o equilíbrio material entre as prestações. A função social dos contratos desempenha relevantes tarefas, ao lado das múltiplas funções da boa-fé objetiva. Passa-se da tutela subjetiva da vontade à tutela objetiva da confiança. Existem, no Código Civil, três grandes princípios que marcam o direito contratual: princípio do equilíbrio material entre as prestações, princípio da boa-fé objetiva e princípio da função social dos contratos.
Na esfera da propriedade, hoje a função social da propriedade se reflete nas definições dos comportamentos possíveis. O proprietário, nesse sentido, não pode mais ser considerado senhor absoluto e arbitrário das escolhas relativas à utilização do bem. O direito de propriedade, ademais, deve guardar necessária compatibilidade com a proteção do meio ambiente, perdendo legitimidade em caso contrário (CF, art. 225). Um direito biodifuso não aceita as velhas fórmulas individualistas e patrimonializantes. O autenticamente novo pede novos modelos de pensamento. Aliás, como adiante veremos, o conceito atual de bem – seja o conceito civilístico, seja o conceito de bem na teoria geral do direito – está se renovando, ganhando dimensões existenciais, não puramente patrimoniais. Cada um desses pontos repercute e dialoga com a responsabilidade civil e suas soluções.
Vejamos agora brevemente a questão da equidade.
A equidade, historicamente, ao longo dos séculos, tem sido usada para quebrar o rigor absoluto de certas fórmulas: “Quem quer que examine a evolução do direito romano, vê que essa se descreve no sentido de quebrar-se o absoluto dos direitos. Alguns anotam o caminho que vem do direito estrito à equidade”. Um pouco adiante o notável jurista destaca: “Gaio não inovava; observava, discernia, quando proclamou: Male enim nostro iure uti non debemus. Não devemos mal-usar do nosso direito. Mal-usar. Note-se o que há de qualitativo, de ético, nesse male. Por aí chegou o jurista à justificação de se interditarem os pródigos e à proibição do maltrato dos escravos”.
Embora o Código de Processo Civil de 2015 tenha mantido a tradicional regra jurídica sobre equidade que já existia no Código anterior (“Art. 140. O juiz não se exime de decidir sob a alegação de lacuna ou obscuridade do ordenamento jurídico. Parágrafo único. O juiz só decidirá por equidade nos casos previstos em lei”), o STJ já entendeu – de forma corretíssima – que “a proibição de que o juiz decida por equidade, salvo quando autorizado por lei, significa que não haverá de substituir a aplicação do direito objetivo por seus critérios pessoais de justiça. Não há de ser entendida, entretanto, como vedando se busque alcançar a justiça no caso concreto, com atenção ao disposto no artigo 5º da Lei de Introdução” (STJ, REsp. 48.176). Nesse contexto, o juiz, ao decidir com base na equidade, tem um campo maior de liberdade argumentativa, embora cresçam, proporcionalmente, os deveres de fundamentação. Cabendo alertar que não se trata de liberdade de substituir os valores e normas do ordenamento por idiossincráticas opções subjetivas.
Há, no contexto antes descrito, uma revalorização da equidade, no sentido aristotélico de justiça do caso concreto. Uma consequência até certo ponto óbvia dessas mudanças é a seguinte: quanto mais a ordem jurídica se vale de normas abertas, maior é o campo de atuação do intérprete. Porém, se sua liberdade de movimentação é maior ao lidar com princípios e cláusulas gerais, maiores também serão, proporcionalmente, seus deveres de argumentação, que se mostram mais rigorosos à medida que a norma se evidencia mais aberta. Ademais, gostemos ou não, trata-se de fenômeno dos nossos dias, com os quais devemos aprender a lidar e dele extrair as melhores potencialidades.
Uma das mais relevantes e mais utilizadas normas da Lei de Introdução às Normas do Direito brasileiro é a dicção clássica do seu art. 5º: “Na aplicação da lei, o juiz atenderá aos fins sociais a que ela se dirige e às exigências do bem comum”. Não é raro que os magistrados invoquem esse dispositivo em sentenças judiciais, o que não deixa de ser uma forma de dialogar com a equidade. O CPC/2015, no art. 8º, aprimora e atualiza essa redação, trazendo a menção a princípios da mais alta envergadura: “Ao aplicar o ordenamento jurídico, o juiz atenderá aos fins sociais e às exigências do bem comum, resguardando e promovendo a dignidade da pessoa humana e observando a proporcionalidade, a razoabilidade, a legalidade, a publicidade e a eficiência”. Aliás, a jurisprudência mais sensível e mais atenta aos novos rumos do nosso século tem decidido que a mitigação do sofrimento humano deve ser o sustentáculo de decisões judiciais, no sentido de salvaguardar o bem supremo e o foco principal do direito: o ser humano em sua integridade física, psicológica, socioambiental e ético-espiritual (STJ, REsp 1.008.398).
A equidade, aliás, participa da quantificação dos danos em muitas situações. Em algumas, o próprio Código Civil assim o autoriza, como no parágrafo único do art. 944, ou no parágrafo único do art. 928 (se, digamos, um garoto com 10 anos causa um dano grave – e os responsáveis não têm meios materiais para arcar com a indenização –, se o menor tiver patrimônio em nome próprio poderá ser responsabilizado, porém a indenização deverá ser fixada à luz da equidade). Outras vezes a indenização equitativa resulta, não da lei, mas do entendimento jurisprudencial. O estado de necessidade, por exemplo, é um ato lícito que pode causar danos (Código Civil, art. 188, II e art. 929). Digamos que alguém, dirigindo seu carro, é surpreendido por uma criança correndo atravessando a rua. Para evitar o atropelamento, o motorista faz um desvio brusco e acaba colidindo com um carro que está estacionado. Trata-se de ato lícito, porém indenizável (o dono do carro estacionado tem direito à indenização). A indenização, nesse caso, segundo o STJ, deve ser fixada com proporcionalidade, evitando-se a imposição de valores abusivos (STJ, REsp 1.292.141).
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