Por muito tempo no direito – sobretudo no direito administrativo – uma verdade reinou absoluta: o interesse público prevalece sobre o interesse particular. Trata-se de dogma, antigo e sólido, do nosso direito. Por muito tempo não se questionou essa afirmativa (tida como absoluta): o interesse público prevalece, sempre e indiscutivelmente, sobre o interesse particular. Hoje, porém, com o avanço da teoria dos direitos fundamentais, percebe-se que a questão tem – ou pode ter – outros matizes. O problema não é tão simples como se pensou.
Reconhecer que vivemos, neste século XXI, no Estado dos direitos fundamentais, traz consequências hermenêuticas relevantes, nem sempre devidamente desenvolvidas. Não há, hoje, como dissemos, uma distinção clara entre o direito público e o direito privado. Os direitos fundamentais penetram em ambos os domínios, público e privado. A dignidade da pessoa humana, de igual modo, não conhece campo temático que esteja livre de sua influência. Lembremos ainda que no Brasil – ao contrário do que ocorre em muitos países – a responsabilidade civil do Estado está constitucionalizada desde 1946. Isso, como não poderia ser diferente, tem repercussões interpretativas relevantes, que nem sempre são devidamente percebidas.
É possível intuir que o conceito de interesse público sofreu – na verdade está sofrendo – mudanças. Há dois aspectos que precisam ficar claros: a) interesse público, atualmente, consiste em promover direitos fundamentais; b) interesse público não se confunde com interesse estatal.
Em relação ao primeiro ponto, García de Enterría notou argutamente que “atualmente o interesse público reside na promoção dos direitos fundamentais”. E a promoção dos direitos fundamentais, em determinado caso concreto, pode colocar de um lado o cidadão, e do outro o Estado. E a solução correta – mesmo de um problema de responsabilidade civil – pode ser a proteção do direito do cidadão em face do Estado, e não, de modo autoritário, a invariável blindagem do interesse estatal, sob a cláusula do interesse público.
Em relação ao segundo ponto, é fácil constatar, hoje, que interesse público obviamente não se confunde com interesse de eventuais governos – sendo, aliás, frequentemente colidentes tais interesses. O Ministério Público, ou uma associação, poderá, por exemplo, judicializar uma demanda ambiental contra o Estado, invocando o interesse público. A situação é bastante comum, aliás. O público não estatal ganha cada vez mais relevância em nossos dias – é o espaço por excelência da sociedade civil. Algumas vezes – e isso nem é tão raro – o interesse público se situa no polo oposto ao interesse patrimonial do Estado. Percebe-se, de modo crescente, a existência, na sociedade contemporânea, de um espaço da sociedade civil – que é público, mas não estatal.
As democracias contemporâneas buscam se adequar à nova ordem de valores que surgem numa sociedade cada vez mais integrada, cada vez mais veloz, e cada vez menos tolerante com aspectos arbitrários e ditatoriais, venham de governos, venham de poderes privados. Menos abuso e menos desvio de poder é o que se espera do Estado no século XXI. Vivendo, hoje, em sociedades plurais e complexas – marcadas pela velocidade na transmissão das informações e no simultâneo contato entre todos, ou quase todos –, não podemos continuar com velhas e pesadas ideias. Com conceitos jurídicos formulados há mais de cem anos.
O direito administrativo, por exemplo, em sua formulação tradicional, continuar a trabalhar com conceitos elaborados no tempo em que o Estado tinha, não cidadãos, mas súditos. As lições teóricas, ainda, em grande parte, partem da ótica dos “poderes do administrador”, não dos “direitos do cidadão”. Há, nesse sentido, um gosto autoritário em certas lições do direito administrativo tradicional. Hoje, porém, aos poucos – embora lentamente –, abandona-se a visão que se preocupa apenas com o exercício unilateral dos poderes da administração para investigar as relações entre administradores e cidadãos. Aceita-se progressivamente o controle do chamado “mérito do ato administrativo”, algo impossível nos séculos passados. Os conceitos de “conveniência e oportunidade” perdem espaço, ou se restringem a hipóteses verdadeiramente excepcionais. A ideia de democracia ganha destaque – não em sua dimensão puramente formal, mas em sua dimensão substantiva e ativa. Aliás, a participação e a fiscalização, por parte dos cidadãos, nos negócios públicos, assume a feição de direito fundamental.
Digamos ainda algo óbvio: a expressão interesse público é uma cláusula aberta, indeterminada, que reclama concreção de acordo com as opções valorativas básicas da Constituição e, também, de acordo os valores sociais de determinada época (a transparência nos negócios públicos, hoje, é um valor social e jurídico muito forte; o gestor de verbas públicas pode invocar o interesse público para decretar o sigilo de determinada operação quando o interesse público estaria exatamente em sua divulgação). Crimes, ademais, são fatos noticiáveis por natureza. Há sempre interesse público na respectiva divulgação. Aliás, hoje boa parte do interesse público está na realização concreta dos direitos fundamentais e na efetivação das sanções (sobretudo penais) em relação àqueles que se corromperam – tudo isso de modo concreto, não em discursos. E, em ambas as hipóteses, quase sempre o governo de plantão tenta impedir que isso ocorra. Busca-se, por exemplo, através de estratégias múltiplas (muitas delas envolvem até a edição de leis em sentido formal), o esvaziamento do interesse público em proveito de outros tristes interesses imediatos. Aliás, o Tribunal Constitucional espanhol consignou que a liberdade de opinião deve observar o dever de veracidade.
Os deveres de transparência, ademais, perpassam a atuação do administrador público. Não só isso. Os deveres de fundamentação, hoje, atingem fortemente o agir (e o não agir) estatal. Ao Estado contemporâneo se exige, de modo progressivo, a fundamentação de suas decisões (não só judiciais). Isto é, que legitime pelo discurso suas respostas às demandas coletivas. Não por acaso, há quem, como Cass Sunstein, fale numa “república de razões”. Os Estados constitucionais democráticos aceitam, progressivamente, que haja o controle judicial dos atos legislativos, e fortalecem o sistema de jurisdição constitucional. A jurisdição, ademais, e sobretudo a constitucional, assume forte viés criativo, e não apenas de subsunção.
Em caso de conflito, a ponderação deve ser realizada. Em tese, ambas as situações são possíveis. É possível que o interesse público prevaleça sobre o particular, ou que o direito fundamental do particular prevaleça sobre o interesse público, mas, em ambos os casos, há de haver densidade argumentativa na solução, evidenciando os porquês (à luz da proporcionalidade) de cada solução. Ademais, conforme veremos a seguir, a distinção entre público e privado – pelo menos na área jurídica – apresenta-se sob constante questionamento. Os espaços, público e privado, dialogam continuamente, e é difícil traçar fronteiras rígidas.
São novas realidades – normativas e sociais – que repercutem fortemente sobre a responsabilidade civil. O direito dos danos, convém sempre lembrar, tem forte acento pragmático, nós trabalhamos frequentemente com princípios, cláusulas gerais, conceitos jurídicos indeterminados (o juiz, para decidir um caso de responsabilidade civil, deve apreciar se houve ou não um dano; se o dano é relevante; se há nexo causal entre o dano e a ação ou omissão; e, em caso afirmativo, de quanto deve ser a indenização). Sem falar dos casos em que a vítima invoca agressões à dignidade humana, abusos de direito, danos causados em virtude de atividades perigosas. Ou pede indenizações que, além de compensar, tenham efeito pedagógico, ou que punam o agressor naqueles casos em que houve brutal menosprezo à pessoa humana.
Por tudo isso, a nova noção de interesse público projeta relevantes efeitos na nova compreensão da responsabilidade civil.
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