Instituições devem assegurar integridade e confidencialidade das informações e dos documentos eletrônicos utilizados
Artigo originalnalmente publicado no portal Jota.
Enquanto se discute no Supremo Tribunal Federal sobre quais os dados que podem ser fornecidos pela Unidade de Inteligência Financeira aos órgãos de controle e de repressão, em especial aos Ministérios Públicos e Polícias – não sendo demais lembrar que a Medida Provisória 893/2019, que alterou o nome COAF e sua vinculação ao Ministério da Economia, ainda não foi convertida em lei –, existem outros temas que são igualmente relevantes no cenário do combate à lavagem de dinheiro.
Um dos temas é a necessidade de se conhecer bem o cliente bancário. É a obrigação conhecida pela sigla KYC (do inglês Know Your Customer). Arcabouço jurídico para tal obrigação não falta: desde os chamados “Princípios do Comitê da Basileia”, passando pela lei 9.613/1998, até as Resoluções do Conselho Monetário Nacional – em especial as Resoluções 2.747/2000 e 4.753/2019 –, convivemos com este regramento há mais de duas décadas.
Essa obrigação de bem conhecer o cliente ganha dificuldade, contudo, ao passo em que os serviços bancários vão incorporando novas tecnologias e vão deixando de contar com o crivo dos gerentes no momento de abertura das contas.
É que desde 2016 o CMN autorizou, por meio da Resolução 4.480, atualizada pela redação da Resolução 4.697/2018, a abertura e fechamento de contas de depósito por meio eletrônico, ou seja, com a utilização de sites e aplicativos dos bancos, nos quais não há contato presencial com o proponente. Passou-se a admitir a utilização de assinatura digital, bem como a coleta de assinatura por meio de dispositivos eletrônicos, nos termos dos parágrafos 1º e 2º do artigo 2º da Resolução.
A referida Resolução visou adequar o Brasil à tendência mundial no sentido de se utilizarem os smartphones para transações financeiras com o mínimo de burocracia possível. As instituições, todavia, devem tomar especial atenção contra a lavagem de dinheiro e o financiamento do terrorismo, podendo se valer de bancos de dados complementares públicos ou privados.
Diante da verificação de irregularidades nas informações prestadas, julgadas de natureza grave, as instituições devem proceder ao encerramento da conta, nos termos da redação atualizada do art. 13 da Resolução 2.025/1993 do CMN (regra, aliás, que vale não só para contas digitais). Ocorre que o cenário normativo acima indicado sofrerá alterações a partir de 01/01/2020.
Trata-se do novo regramento que valerá para a abertura, manutenção e encerramento de contas de depósito: a Resolução CMN 4.753, de 26/09/2019, ato normativo já abordado na recém lançada 2ª edição do livro “Compliance Bancário: Um Manual Descomplicado”, escrito em coautoria com Carlos Fernando dos Santos Lima e publicado em novembro de 2019 pela editora Juspodivm.
Como colocado na referida obra, buscando modernizar e simplificar os procedimentos de abertura, manutenção e encerramento de contas, o CMN revogou, de uma só vez, a partir de 01/01/2020, diversas Resoluções que versavam sobre o tema (2.025/1993, 2.078/1994, 2.747/2000; 2.817/2001, 2.953/2002, 3.211/2004, 3.222/2004, 4.480/2016, 4.697/2018, além do parágrafo único do art. 2º da Resolução nº 3.972/2011.
Em breve síntese, a nova Resolução 4.753/2019, no mesmo sentido das anteriores, diz expressamente em seu art. 2º ser de responsabilidade das instituições financeiras a correta e necessária identificação e qualificação dos seus clientes – obrigações do programa KYC – bem como a verificação da autenticidade das informações prestadas por ele. O parágrafo 2º do mesmo artigo prevê, ainda, a hipótese da abertura de contas por meio de um chamado “processo de qualificação simplificado”, desde que estabelecidos “limites adequados e compatíveis de saldo e de aportes de recursos para sua movimentação.” Aqui achamos necessárias duas observações.
Mesmo que o “processo simplificado” tenha por objeto conta de menor movimentação financeira, a obrigação de conhecer bem o cliente – KYC – deve ser observada para todas as contas, independentemente dos valores movimentados.
No mais, como nas anteriores, a Resolução 4.753/2019 prevê que as instituições deverão manter os dados de identificação dos clientes devidamente atualizados.
Outrossim, o art. 6º prevê a obrigação de se proceder ao encerramento da conta em caso de irregularidades nas informações prestadas, consideradas de natureza “grave”. No nosso entender, tendo em vista principalmente o disposto na lei de combate à lavagem de dinheiro (artigos 10 e 11), qualquer incompatibilidade de movimentação financeira com o perfil do cliente deve, sim, ser considerada “grave” pela instituição.
E devem as instituições assegurar a integridade, a autenticidade e a confidencialidade das informações e dos documentos eletrônicos utilizados. Eis mais uma regra fundamental para o programa KYC.
De todo modo, mesmo ainda na vigência das Resoluções 4.480/2016 e 4.697/2018 até 31/12/2019, e com mais razão ainda a partir de 01/01/2020, resta saber como, na prática, os bancos irão se adaptar a essa nova realidade, evitando que, de fato, contas não sejam abertas e movimentadas por “laranjas”, traficantes, “doleiros”, terroristas ou integrantes de organizações criminosas.
Dizemos isso porque, considerando-se as regras do Comitê da Basileia, a lei de combate à lavagem de dinheiro e a Circular 3.461/2009 do BACEN, em que pesem os cuidados mencionados pelas Resoluções do CMN aqui em comento, o contato pessoal entre o gerente e o proponente ajuda, sim, a evitar a abertura de muitas contas “frias” por criminosos. Já por meio de aplicativos de smartphones ou pela internet, a relação com o cliente fica mais distante e impessoal, exatamente ao contrário do que preconiza a obrigação do KYC.
Diante desse cenário, fica claro que o desafio será fazer com que a tecnologia conviva sempre em harmonia com o programa KYC.
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O autor escreveu: Compliance bancário: Um manual descomplicado