Informativo: 668 do STJ – Processo Penal
Resumo: A mera presunção de parcialidade dos jurados do Tribunal do Júri em razão da divulgação dos fatos e da opinião da mídia é insuficiente para o desaforamento do julgamento para outra comarca.
Comentários:
O desaforamento é disciplinado nos art. 427 e 428 do CPP e consiste na modificação modifica da regra de competência territorial nos crimes julgados pelo júri. Por meio do desaforamento, portanto, o réu, por motivos que a lei relaciona, é julgado em foro diverso daquele em que cometeu o crime, deixando de ser observada a competência pelo lugar da infração mencionada no art. 70 do CPP (competência ratione loci). Desaforar, pois, na precisa lição de Júlio Fabbrini Mirabete, “é retirar o processo do foro em que está para que o julgamento se processe em outro” (Processo penal, p. 502).
Admite-se o desaforamento em quatro situações: 1) por interesse da ordem pública; 2) quando pairar dúvida sobre a imparcialidade do júri; 3) quando houver risco à segurança pessoal do acusado e 4) quando injustificadamente o júri não se realizar no prazo de seis meses contado do trânsito em julgado da decisão de pronúncia.
Como consequência da acolhida do pedido, conforme dispõe a parte final do art. 427 do CPP, tem-se o desaforamento para “outra comarca da mesma região, onde não existam aqueles motivos, preferencialmente as mais próximas”.
O pressuposto que, na prática, fundamenta a imensa maioria dos pedidos de desaforamento é a dúvida sobre a imparcialidade dos jurados.
É sabido que se espera do juiz, quer togado, quer leigo, que aprecie a causa com imparcialidade. A imparcialidade é, por assim dizer, verdadeiro sinônimo de justiça; não se cogita a existência de uma sem a outra. Por vezes, no entanto, a repercussão do crime ganha tamanha intensidade que é capaz de gerar dúvida quanto à condição dos jurados para proferirem um veredicto imparcial. O jurado, nesses casos, mesmo sem conhecer o processo a fundo, muitas vezes ignorando a prova produzida e antes de ouvir os debates, já tem sua convicção previamente formada. Em outras palavras: ele já sai de casa com a conclusão precipitadamente estabelecida, seja para condenar, seja para absolver. Essa situação deve ser evitada como forma de preservação da imparcialidade do Júri, e, para tanto, há o desaforamento.
Exige-se, portanto, para o desaforamento, que a opinião do jurado esteja turvada pelo ódio contra o acusado em virtude do crime bárbaro que cometeu. Ódio tão intenso que se mostre capaz de retirar o equilíbrio do jurado, podendo ser citado, como exemplo, o réu que mata conhecido e estimado padre de pequena cidade, com vários anos de sacerdócio. Está condenado muito antes de ser julgado. E se o assassino do padre vem a ser morto, posteriormente, por um terceiro, munido de extraordinário espírito de vingança? Este júri também estará contaminado, caso mantida a competência original, por contar o réu com enorme simpatia dos jurados, que fatalmente o levariam à absolvição, podendo, pois, ser desaforado. Pode ocorrer o inverso a justificar também o desaforamento. O prestígio do réu na cidade, sua influência política ou econômica, enfim, uma série de fatores que revelem a grande probabilidade de perda da isenção dos jurados, tendentes à absolvição.
O desaforamento não pode ser provocado simplesmente em razão dos efeitos midiáticos do crime. Sabemos que, em determinadas situações, a cobertura jornalística sobre homicídios desencadeia tamanha repercussão que todos os detalhes dos crimes se tornam amplamente conhecidos. As pessoas (dentre elas os futuros jurados, obviamente) são de tal forma expostas às informações mais minuciosas que acabam, mesmo sem querer, formando determinado juízo sobre o indivíduo apontado como autor. Não obstante, esta é uma espécie de influência menos relevante, que não é objeto de preocupação do legislador, até mesmo porque, em alguns casos de grande repercussão, a facilidade com que atualmente se difundem notícias por todo o país (ou mesmo pelo mundo) tornaria inócuo o desaforamento para qualquer outro local. A influência que se busca evitar, portanto, é a direta, decorrente de alguma circunstância particular do local do crime. Por isso o STJ tem decidido que a presunção de imparcialidade em virtude de divulgação jornalística do crime não pode fundamentar o desaforamento:
“No caso o impetrante requereu o desaforamento sob o argumento de que há manifesto comprometimento da imparcialidade do Júri, pela ampla divulgação nos meios de comunicação, por parte da acusação, da condenação do Paciente.
Nos termos do art. 427 do CPP, se o interesse da ordem pública o reclamar, ou se houver dúvida sobre a imparcialidade do júri ou a segurança pessoal do acusado, o Tribunal, a requerimento do Ministério Público, do assistente, do querelante ou do acusado ou mediante representação do juiz competente, poderá determinar o desaforamento do julgamento para outra comarca da mesma região, onde não existam aqueles motivos, preferindo-se as mais próximas.
A mera presunção de parcialidade dos jurados em razão da divulgação dos fatos e da opinião da mídia é insuficiente para o deferimento da medida excepcional do desaforamento da competência” (HC 492.964/MS, j. 03/03/2020).
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