1)Acesso – A propriedade moderna é um direito fundamental individual de seu titular, devendo ser garantida pelo ordenamento contra o Estado e os não-proprietários). Esta propriedade também é uma garantia institucional, representando o hígido funcionamento do mercado, traduzida a segurança jurídica na conservação da ordem econômica. A noção de “acesso” ingressa no Estado Democrático de Direito, pela qual o rule of law transcende a conservação daquilo que se “tem”, incluindo a promoção de direitos fundamentais para os futuros proprietários. O acesso à propriedade é um derivativo do princípio da igualdade substancial, convertendo o invisível “erga omnes” em pessoa concreta, cuja afirmação de situações existenciais passa pelo ingresso à cidadania pela via da democratização de titularidades, aqui concebida como projeção do mínimo existencial. Portanto, é na latente tensão entre direito de propriedade (art. 5, XXII, CF) e direito à propriedade (art. 5., caput CF) que percebemos a propriedade contemporânea conglobando o direito de excluir daqueles que já têm e o direito a não ser excluído, àqueles que anseiam “vir a ter”.
2)Pertencimento- Propriedade e domínio exprimem conceitos distintos e complementares. A propriedade é uma situação jurídica complexa, relacionando o titular formal aos não proprietários, consubstanciada em poderes, deveres, faculdades e ônus correspectivos. Em contrapartida, o domínio é o poder imediato do titular sobre a coisa, que se exprime nas clássicas faculdades de uso, gozo e disposição. O domínio é por essência refratário ao acesso e ao compartilhamento, ostentando o atributo da exclusividade. Assim como pode haver propriedade sem domínio (v.g. titular de um bem após decorrido o prazo de usucapião por outrem ou após quitação da promessa de compra e venda), nada impede a dissociação entre o domínio e a propriedade, pois as relações de pertencimento alcançam os direitos reais limitados e as situações possessórias. No século XXI, todavia, o que mais importa no universo dos bens essenciais, não é o “pertencimento” do bem, mas sim o da sua gestão, que deve garantir o acesso ao bem e prever a participação dos sujeitos interessados, mediante uma administração guiada pelo princípio da solidariedade.
3)Multipropriedade- Pode existir uma pergunta mais fundamental do que, o que são o espaço e o tempo? A laje a multipropriedade confirmam a relatividade de ambos os conceitos no que se aplica à propriedade clássica. A laje por se constituir em fracionamento espacial da propriedade, desvinculada do solo alheio ou de uma fração ideal – uma titularidade em 3D (que não chega a ser um multiverso, pois existem relações jurídicas entre o proprietário e o lajeário). A multipropriedade, por sua vez, não desafia o espaço, mas o tempo. Nessa relação jurídica de aproveitamento econômico de bens – que ingressou no CC como modalidade especial de condomínio em propriedade imobiliária – adentra-se a uma distinta dimensão da titularidade, na qual o pertencimento se exerce periodicamente sobre uma unidade temporal de uma fração ideal física. Afasta-se o fenômeno da composse, pois a fruição do direito se concebe alternada e sucessivamente. No aspecto funcional, enquanto a laje incorpora o fenômeno tipicamente brasileiro do “puxadinho”, como acesso ao mínimo existencial, frequentemente o “time sharing” mira exatamente o oposto: o máximo existencial, pelo compartilhamento de titularidade de bens supérfluos como resorts de férias, aeronaves, iates e carros de luxo.
4)Economia do Compartilhamento– É um novo padrão colaborativo que não se identifica propriamente com o universo do direito das coisas, mas que nele impacta profundamente. O vocábulo “mercado”, já não se traduz pelo câmbio de propriedades. “ter” algum bem é por vezes algo pesado e burocrático em sociedades fluidas e digitais. As novas gerações optam pelo acesso à fruição de bens, novas experiências e a interação com outros neste processo. A valorização da criatividade e da transparência, associada à constante inovação, cria uma massa de consumidores que não almejam a titularidade de bens, porém são ávidos usuários de serviços. Se valores não utilizados são valores desperdiçados, nas transações “peer to peer” a fruição de bens é maximizada, evitando a sua ociosidade. Ademais no modelo negocial da “sharing economy” muda também o padrão dos grandes fornecedores: A Uber não é dona dos veículos que oferece nem o AirBnb dos apartamentos que aluga, tampouco a AliBaba de qualquer dos produtos que comercializam. As plataformas simplesmente fornecem o acesso ao pertencimento temporário.
5) Multititularidades – O termo foi introduzido pela Jurista Everilda Brandão Guilhermino (“A tutela das multititularidades, Ed. Lumen Juris, 2018). As multitularidades abrem um novo horizonte nos direitos reais, para além da função social da propriedade. Enquanto esta cláusula geral constrange o titular a adimplir obrigações perante a coletividade, conciliando o seu desejável retorno individual a um proveito social, as múltiplas titularidades se situam em um passo adiante do cumprimento da função social: Em matéria de direitos difusos, substitui-se a propriedade excludente por uma titularidade inclusiva, que passa a conviver com uma titularidade autônoma – pertencente a sociedade. Em sede de bens comuns, elimina-se o atributo da exclusividade, pois é da índole dessa nova forma de pertencimento o acesso simultâneo e o compartilhamento de bens simultaneamente suscetíveis de valoração econômica (quanto à sua disponibilidade) e social (indisponíveis ao mercado posto atrelados à cidaania).
Ao contrário do predito por Francis Fukuyama, a História não acabou. O mesmo se diga da trajetória da propriedade. O que ocorreu é que a linguagem novecentista do Código Civil não é capaz de albergar os conceitos de acesso, compartilhamento e pertencimento inclusivo. Só com essa nova simbologia articularemos soluções para a “tragédia dos comuns”, mediante a harmonização de diferentes estatutos proprietários em uma abrangente noção de patrimônio, incluindo bens imateriais, virtuais e difusos (v.g., patrimônio histórico e ambiental). Isso implica em reconhecer uma diferente dimensão que supera a dicotomia público-privado, fora do individualismo proprietário e da tradicional gestão pública dos bens. Água, energia, internet, medicamentos entre outros bens comuns e essenciais se inserem no rol de direitos fundamentais. Cumpre ao civilista do século XXI vestir as sandálias da humildade, abandonar sua roupagem de segurança jurídica limitada à apropriação e conservação de bens e dialogar com outros saberes a fim de sedimentar uma ética do pertencimento inclusivo. Ao tratar da nova relação entre o mundo das pessoas e o mundo dos bens – há muito tempo substancialmente confiado à lógica do mercado – bem pontuou Stefano Rodotá: “bens comuns são aqueles funcionais ao exercício de direitos fundamentais e ao livre desenvolvimento da personalidade, que devem ser salvaguardados, removendo-os da lógica destrutiva do curto prazo, projetando a sua tutela ao mundo mais distante, habitado pelas gerações futuras. O acoplamento aos direitos fundamentais é essencial e nos leva para além de uma referência genérica à pessoa. É um tema “constitucional”, pelo menos para todos os que, voltando o olhar para o mundo, captam a insustentabilidade crescente das sistematizações cegamente confiadas à lei “natural” dos mercados”.