James Arthur Baldwin advertiu: “Tome cuidado com o que você coloca em seu coração – pois isto certamente será seu”. Quem convida o preconceito para o próprio coração cedo ou tarde irá encontrar as tristes consequências da escolha pouco sábia.
Escolhemos a frase acima, cheia de verdade e elegância, para algo falarmos sobre o preconceito. Vivemos dias de incríveis inovações tecnológicas. A informação nos chega de modo ágil e estonteante. Sabemos, em poucos segundos, o que está acontecendo do outro lado do mundo.
Esses notáveis avanços tecnológicos, no entanto, não conseguiram remover do coração humano a triste chaga do preconceito. Falaremos, brevemente, nesta semana, sobre preconceitos religiosos e raciais. Na próxima semana abordaremos as discriminações preconceitos em virtude das opções sexuais, em virtude da origem geográfica e a discriminação contra mulheres. A Constituição da República – cujo fundamento, entre outros, é a dignidade da pessoa humana (art. 1º, III) – repudia quaisquer condutas que trilhem a estrada do menosprezo à pessoa humana, ou sua redução com propósitos ultrajantes.
A internet, com a pluralidade e a liberdade de expressão que a caracteriza (e o fácil anonimato, reconheça-se) é território fértil para atitudes criminosas. Proliferam comunidades que pregam a violência contra minorias e a discriminação sexual e racial. As páginas de conteúdo homofóbico e racista aproveitam a ausência de fiscalização prévia dos seus conteúdos, e a difícil (mas não impossível) persecução penal em relação a tais crimes.
Do outro lado do preconceito está o dever de tolerância, decorrente do pluralismo. O pluralismo é um valor marcante do direito atual. Teoriza Cláudia Lima Marques: “Pluralismo de fontes legislativas que regula o fato, pluralismo de sujeitos que protege, por vezes difusos, como o grupo de consumidores ou os que se beneficiam de proteção do meio ambiente, pluralidade de agentes ativos, como os fornecedores que organizam-se em cadeia, em relações extremamente despersonalizadas. Pluralismo na filosofia aceita, onde o diálogo é que legitima o consenso, onde os valores e princípios têm sempre uma dupla função, o ‘double coding’ e onde os valores são muitas vezes antinômicos”. (Claudia Lima Marques, apresentação, p. 35. Ricardo Luis Lorenzetti, Fundamentos do Direito Privado. São Paulo: RT, 1998).
O direito dos nossos dias é marcado por valores que prestigiam a diversidade e a tolerância. “Tolerância que compreende o convívio de identidades, espectro plural, sem supremacia desmedida, sem diferenças discriminatórias, sem aniquilamentos. Tolerância que supõe possibilidade e limites” (Luiz Edson Fachin, Elementos críticos do Direito de Família. Rio de Janeiro: Renovar, p. 306). Paralelamente a essa constatação, a “doutrina, por sua vez, percebeu a importância de tratar de assuntos práticos, que agitam os Tribunais, abandonando as excessivas abstrações e taxonomias, nem sempre úteis à sociedade” (RTDC, editorial, vol.3. jul/set, 2000).
Conforme sinalizamos acima, abordaremos, hoje, os preconceitos religiosos e raciais. As opções religiosas dividem países ao meio, abrindo abismos culturais entre vizinhos, causando preconceito e dor. São inúmeros os relatos de brutalidades e absurdos causados em nome da religião. Na França, há alguns anos, a polêmica causada pela proibição do uso do véu nas escolas, pelas estudantes muçulmanas, dividiu o país. Nestas primeiras décadas do século XXI é com tristeza que se vê a intolerância religiosa dominar partes do mundo. Imaginávamos, ingenuamente, que tais cenas pertenciam a um triste passado. Vemos, com pesar, que ainda fazem parte do presente. Seja na Europa, seja, de modo mais acentuado, no Oriente Médio, o radicalismo religioso produz lamentáveis capítulos que mancham a história humana.
Nesse cenário de ódio e dor, o Brasil se apresenta como belo exemplo de convivência pacífica. É arriscado dizer algo assim: logo virão os céticos com exemplos em contrário. Exceções que não negam a verdade da tese. O Brasil, com os óbvios defeitos que carrega, pode se orgulhar de admirável grau de tolerância religiosa. Isso nunca foi real problema entre nós. Espera-se que nunca seja. Em São Paulo um juiz condenou pastor evangélico que, durante festa religiosa de umbanda, se infiltrou dentre os umbandistas, vestindo-se de branco para distribuir panfletos evangélicos que ridicularizavam e negavam as divindades dos umbandistas. A liberdade de religião não autoriza que, a pretexto de exercê-la, se ridicularize outros cultos.
Sobre o tema, enxergando o prisma penal, decidiu o STJ que todo aquele que pratica conduta discriminatória ou preconceituosa é autor do delito de racismo, inserindo-se, em princípio, no âmbito da tipicidade direta (STJ, HC 15.155). O STF teve a oportunidade de consignar que: “O dogmatismo religioso revela-se tão opressivo à liberdade das pessoas quanto à intolerância do estado, pois ambos constituem meio de autoritária restrição à esfera de livre-arbítrio e de autodeterminação das pessoas, que hão de ser essencialmente livres na avaliação de questões pertinentes ao âmbito de seu foro íntimo (…)” (STF, HC 84.025).
Sérgio Buarque de Hollanda, em Raízes do Brasil, definiu o brasileiro como o “homem cordial”, e foi criticado por isso. Talvez no Brasil as razões do preconceito sejam mais sociais do que propriamente raciais. De todo modo, cordialidade, segundo alguns, não haveria, posição crítica discutível, mas que não vem ao caso, aqui, aprofundar. Seja como for, não temos aqui, felizmente, as ainda hoje sérias disputas havidas nos Estados Unidos. É certo que o racismo é sempre irracional. A irracionalidade não admite gradações, mas, supondo que houvesse, seria ainda mais absurda no Brasil, que tem a segunda população negra no mundo.
Sobre o tema o STJ reconheceu o “dano moral causado a policial civil, por ofensas e agressões dirigidas a sua pessoa, inclusive com alusão pejorativa a sua cor” (STJ, REsp. 472.804). Houve, no caso, ofensa a policial civil durante registro de ocorrência de trânsito. Segundo os autos, a agressora, de forma ríspida e prepotente, agrediu a policial, causando danos morais. O juiz de primeiro grau acolheu a ação, condenando a agressora em cem salários mínimos, a título de danos morais, sentença mantida nas instâncias superiores. O TRF da 4ª Região, reconhecendo a publicação de charge ofensiva aos índios, condenou o chargista e o jornal que a fez veicular. O relator aponta que existem no Brasil “formas sutis de racismo e de intolerância que, mais de um século após a abolição da escravidão, continuam a produzir efeitos insidiosos contra a inserção socioeconômica de índios e afrodescendentes”. Conclui argumentando,“não há dúvida, a intenção dos demandados foi, além de ironizar, ridicularizar a imagem dos índios da Comunidade Toldo Chinbangue, bem como ratificar o preconceito à cultura indígena” (RTDC, vol. 17, jan/mar 2004, p. 284).
O TSE julgou caso em que empregado era chamado pelos colegas e chefes com expressões racistas, humilhação que se repetia e à qual a vítima se submetia para não perder o emprego. O Tribunal esclareceu: “A emissão de vocativos de cunho explicitamente racista e de conteúdo depreciativo, dirigidos por chefe imediato a empregado negro, constitui ato injurioso, ofensivo da dignidade da pessoa humana. Patente que constrange e humilha o ser humano, provocando-lhe profunda dor na alma. Comportamento discriminatório e preconceituoso desse jaez não apenas merece o mais cadente repúdio da cidadania, como também gera direito a uma compensação pelo dano moral daí advindo” (TST, RR 1011/2001 – 561-04-00.5).
Bernard Shaw, prêmio Nobel de Literatura e genial em suas ironias, disse que não tinha preconceitos, pois odiava a todos igualmente. Ironias à parte, o direito do século XXI – embora tenhamos avançado nas últimas décadas – tem, nos mais variados ramos, muito ainda a fazer para extirpar o preconceito e a discriminação do rol dos atos que envergonham a humanidade.