Informativo: 672 do STJ – Processo Penal
Resumo: O ato de delegação da condução e direção de produção de prova oral à autoridade estrangeira, a fim de que esta proceda diretamente à inquirição da testemunha ou do investigado, não encontra qualquer tipo de respaldo constitucional, legal ou jurisprudencial.
Comentários:
Nas relações internacionais a figura da cooperação jurídica ganha cada vez mais importância por facilitar o cumprimento de medidas judiciais ou extrajudiciais que, determinadas por autoridades de um país para que sejam cumpridas em outro, dificilmente seriam exitosas se não houvesse a disposição mútua de colaboração.
A cooperação é estabelecida por tratados e, nos termos do art. 27 do Código de Processo Civil, pode ter por objeto: I – citação, intimação e notificação judicial e extrajudicial; II – colheita de provas e obtenção de informações; III – homologação e cumprimento de decisão; IV – concessão de medida judicial de urgência; V – assistência jurídica internacional; VI – qualquer outra medida judicial ou extrajudicial não proibida pela lei brasileira.
Devido a seus diversos objetos, a cooperação internacional tanto pode depender de juízo de delibação no Brasil (por meio do STJ) como também pode ser executada diretamente. Há, neste ponto, certa divergência em razão do disposto no art. 28 do CPC, segundo o qual a modalidade de auxílio direto é cabível “quando a medida não decorrer diretamente de decisão de autoridade jurisdicional estrangeira a ser submetida a juízo de delibação no Brasil”. Essa disposição permite duas interpretações: a) apenas atos administrativos são passíveis de execução direta, reservando-se os atos judiciais de qualquer natureza à carta rogatória; b) o auxílio direto é possível ainda que se trate de procedimentos judiciais, desde que não tenham carga decisória capaz de lesionar direitos que, no Brasil, só podem ser atingidos por decisão judicial. Esta segunda interpretação é reforçada pelo disposto no art. 30 do CPC, que se refere ao auxílio direto com a finalidade de: I – obtenção e prestação de informações sobre o ordenamento jurídico e sobre processos administrativos ou jurisdicionais findos ou em curso; II – colheita de provas, salvo se a medida for adotada em processo, em curso no estrangeiro, de competência exclusiva de autoridade judiciária brasileira; III – qualquer outra medida judicial ou extrajudicial não proibida pela lei brasileira.
No julgamento do RHC 102.322/RJ (j. 12/05/2020), o STJ anulou a colheita de provas baseada em pedido de auxílio promovido pela França e que havia sido determinada diretamente pela Justiça Federal, sem passar pela análise do tribunal.
No caso, a partir da decisão de um juiz de instrução francês para oitiva de um indivíduo e apreensão de bens, foi solicitado auxílio para a execução das medidas no território brasileiro. Inicialmente, a ministra Laurita Vaz – relatora – havia negado provimento ao recurso por considerar que o juízo de delibação do STJ só é necessário se a própria decisão estrangeira tiver de ser executada diretamente no Brasil, o que não era o caso, tendo em vista que a providência determinada na França teria antes de ser submetida à apreciação da Justiça brasileira, como de fato aconteceu:
“In casu, não há decisão judicial estrangeira a ser submetida ao juízo delibatório do Superior Tribunal de Justiça. O caso foi de pedido de assistência direta, o qual, por exigir pronunciamento judicial, foi submetido ao crivo da Justiça Federal nacional, que examinou amplamente o mérito do pedido”.
O ministro Nefi Cordeiro, no entanto, fez algumas considerações que levou a relatora a reconsiderar seu voto. De acordo com o ministro, o auxílio direto não pode ser solicitado se o pedido é oriundo de decisão judicial. Neste caso, apenas a carta rogatória, que passa pelo crivo do STJ, é o instrumento hábil de cooperação internacional:
“Sendo o pedido estrangeiro oriundo de ato judicial, não cabe auxílio direto, mas sim o procedimento da carta rogatória, pois, “tratando-se de ato judicial que deve ser cumprido no Brasil (sequestro de bens para garantia da execução dos efeitos civis de sentença penal condenatória proferida pela Justiça paraguaia), a sua execução, por Juiz Federal, supõe a prévia concessão do exequatur pelo Superior Tribunal de Justiça” (Rcl 3.364/MS, Rel. Ministra LAURITA VAZ, CORTE ESPECIAL, julgado em 05/10/2016, DJe 26/10/2016).
O auxílio direto é forma de cooperação judicial internacional direta, célere e simples, sem conferência judicial centralizada, mas como atos de mera informação e de simples instrução. Quaisquer gravames pessoais serão sempre oriundos de decisão judicial e, sua execução, vinda de pedido do estrangeiro, dependerá de exequatur do STJ”.
[…]
Desse modo, providências informativas (do andamento de processos, certidões de bens) ou de simples instrução (como na colheita de documentos públicos) admitirão a via do auxílio direto, mas a restrição de direitos individuais somente permitirá a via da rogatória, pois necessariamente oriunda de decisão judicial.
Assim é que mesmo a colheita de provas que afete direitos fundamentais, como a busca e apreensão, a quebra de sigilos e as constrições patrimoniais, decorrerão de ordem judicial e da via da rogatória, com exequatur. Ainda que a autoridade estrangeira que pediu o auxílio direto não integre o Judiciário do Estado requerente, pedidos nesse sentido são de natureza e conteúdo jurídico e que dependem de carta rogatória e do exequatur desta Corte Superior, pela natureza e conteúdo da medida.
Ademais, foi o pedido de auxílio direto requerido pelo Tribunal de Grande Instância de Paris, órgão de natureza judicial, o qual solicita medidas constritivas (busca e apreensão de bens e condução coercitiva do paciente), assim necessariamente encaminhadas pela via da rogatória”.
Os demais integrantes da 6ª Turma seguiram unanimemente essa orientação.
No mesmo julgamento, o tribunal ainda reconheceu a nulidade do procedimento adotado na oitiva que havia sido solicitada no pedido de cooperação. Isso porque foi uma autoridade estrangeira que acompanhava as diligências a responsável por conduzir toda a inquirição do investigado, algo sem nenhum respaldo nas normas do direito interno e que desrespeita a soberania nacional. A presença de agentes estrangeiros pode ser admitida, mas desde que não interfiram na realização dos atos que competem às autoridades brasileiras:
“Verifica-se, nesses termos, que a Defesa tem razão ao questionar a legalidade da oitiva do Recorrente, pois breve análise da gravação de vídeo da mencionada audiência é capaz de comprovar a veracidade da alegação de que as autoridades estrangeiras dirigiram e conduziram, por cerca de cinco horas seguidas, o ato de produção de prova oral. Em particular, é de se reconhecer que, de fato, como bem apontou a Defesa, “a autoridade brasileira, representada pelo Procurador da República, se ausentou da sala logo no início da oitiva, não formulando qualquer pergunta” (fl. 236), de modo a conferir às autoridades estrangeiras o poder completo de direção e condução da produção da prova, o que se mostra inadmissível à luz da soberania nacional, um dos fundamentos da República Federativa do Brasil (art. 1.º, inciso I, da Constituição Federal).
De início, consigno que a ausência superveniente do membro do Ministério Público Federal, com delegação do protagonismo às autoridades estrangeiras, infringe a Portaria de Instauração n.º 340/2017/ACRIM/SCI/PGR exarada pelo próprio órgão ministerial para fins de autorização da realização do ato, na qual se lê, explicitamente, que “a participação de agentes estrangeiros nas diligências a serem realizadas em território nacional é admitida exclusivamente a título de coadjuvação das autoridades brasileiras competentes, que devem estar presentes em todos os atos, cabendo-lhes dirigi-los (v. STF CR 8577/AR, rel. Min. Celso de Mello)”.
É dizer: ao limitar-se a dar início ao ato de produção de prova, com posterior atribuição da palavra e da condução das perguntas às autoridades estrangeiras, o membro do Ministério Público Federal, ao qual foi confiada a realização do mencionado ato, desobedeceu ordem expressa da Procuradoria Geral da República, a qual fez constar a exigência de que a autoridade brasileira não apenas estivesse presente durante todo ato, como também o dirigisse.
[…]
Insta salientar que, no âmbito do Superior Tribunal de Justiça, o Ministro Ari Pargendler, em decisão proferida em 2011 na Carta Rogatória n.º 5.480/FR, também já teve a oportunidade de salientar que a presença de agentes públicos estrangeiros é permitida “sem que interfiram, direta ou indiretamente, na direção da audiência”.
Essa, com efeito, é a melhor interpretação a ser dada aos dispositivos do Acordo de Cooperação Judiciária em Matéria Penal entre o Brasil e a França (Decreto n.º 3.324/1999), os quais demonstram nítida preocupação com os limites dos atos de cooperação ali previstos, a bem da preservação da soberania dos Estados requerente e requerido.
Em termos simples: o ato de delegação, expressa ou tácita, da condução e direção de produção de prova oral a autoridade estrangeira, a fim de que esta proceda diretamente à inquirição da testemunha ou do investigado, não encontra qualquer tipo de respaldo constitucional, legal ou jurisprudencial.
Por conseguinte, trata-se de ato eivado de nulidade absoluta, por ofensa à soberania nacional, o qual não pode produzir efeitos dentro de investigações penais que estejam dentro das atribuições das autoridades brasileiras”.
Para se aprofundar, recomendamos:
Livro: Código de Processo Penal e Lei de Execução Penal Comentados por Artigos
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