O antigo sistema da “Wergeld” estatuía que a penalidade aplicada pelo ilícito variasse em grau de gravidade de acordo com a posição social da vítima.
É claro que ninguém estava preocupado com qualquer espécie de igualdade e nem mesmo tratamento paritário perante a lei em tal época.
Wergild, também designado como Wergeld, ou Weregild, (inglês antigo: “man payment”), na antiga lei germânica, descreve o valor da indenização paga por uma pessoa que comete um crime à parte lesada ou, em caso de morte, à sua família. Em certos casos, parte do wergild era paga ao rei e ao senhor – estes tendo perdido, respectivamente, um súdito ou um vassalo. O wergild era inicialmente informal, mas mais tarde foi regulamentado por lei.
Em certas áreas, o wergild de um homem era determinado por seu status na sociedade; por exemplo, na Inglaterra, o wergild de um senhor feudal era muitas vezes o de um homem comum. O wergild de uma mulher era geralmente igual e muitas vezes maior do que o de um homem da mesma classe; em algumas áreas, o wergild de uma mulher podia ser duas vezes maior que o de um homem. O clero também tinha sua própria taxa de wergild, embora isso às vezes dependesse da classe em que nasceram. Entre os francos, o wergild de um romano podia ser metade do de um franco.
Durante os séculos X e XI, em particular no Continente, onde as monarquias não tinham poder suficiente para cobrar a sua parte do wergild que tinha sido fixada por lei, as multas foram determinadas cada vez mais por acordo ou decisão judicial. Gradualmente, porém, certos crimes deixaram de ser expiáveis por compensação; os criminosos eram punidos pelas autoridades locais, geralmente com morte ou mutilação. [1]
É com a valorização do indivíduo em si, por sua condição humana e tão somente isso que é abolido o “Wergeld”, não se admitindo mais uma prática judicial que estabelecia a indexação da pena à posição social da vítima. Com sua abolição, o homicídio de qualquer indivíduo levava às mesmas sanções, não importando se era um nobre ou um camponês. Conforme aduz Boudon, com base em Simmel, “a abolição do ‘Wergeld’ emanou da afirmação do valor do indivíduo enquanto indivíduo, independentemente de sua condição social”. [2]
Ocorre que na atualidade há uma resistência ao reconhecimento da universalidade como sustento da igualdade, centrando-se as abordagens do tema, ao reverso, na diversidade. [3] Observe-se que a valorização do indivíduo, de cada indivíduo por si mesmo e seu tratamento igualitário torna-se inviável sem o reconhecimento de uma base de universalidade, de um elemento comum presente em todas as pessoas, e esse elemento comum é a própria humanidade do homem. Conforme afirma Kersting, a identidade primordial, que qualifica a todos como humanos se sobreleva a qualquer outra identidade particular que uma pessoa assuma no decorrer de sua vida. [4] Por isso, como aduz Bielefeldt, no que se refere aos Direitos Humanos, a identidade cultural, grupal ou qualquer outra de uma pessoa, somente pode ser objeto de garantias jurídicas de forma indireta. [5] O que garante a dignidade humana é a condição individual de participação na comunidade universal da humanidade. Sem essa relação dialética (no sentido dialogal) e complementar entre o “individual” e o “universal”, perde-se o fundamento para pleitear igualdade, bem como dignidade humana, de forma a justificar-se qualquer tratamento arbitrário diferenciador, baseado nos mais estapafúrdios critérios.
No entanto, existe uma tendência ao identitarismo que insiste em classificar, catalogar e rotular as pessoas, tendo por critério a pertença a algum coletivo cultural, sexual, de classe social, racial etc. E ainda mais, a sustentar a atribuição de direitos e garantias fundamentais nessas identidades e não na identificação de todo humano simplesmente como humano. É claro que o argumento para esse proceder é o de que se pretende um progresso do reconhecimento de uma igualdade formal para a consecução de uma efetiva igualdade material. Escapa, porém, a esses teóricos identitários, que a insistência na classificação, catalogação e rotulação das pessoas vai ao caminho contrário, seja da igualdade formal ou da material, acabando por desaguar numa falta de fundamento que conduz à perversão de toda e qualquer boa intenção inicial. O resultado é a aproximação cada vez maior de exemplos históricos de discriminação negativa. Como salienta Risério, a base filosófica do identitarismo caminha do “relativismo antropológico a um ideologismo relativista” [6] que, ao contrário de igualdade e paz social, somente cria discriminações e conflitos. Enfim, o resultado dessas distinções e rotulações é o surgimento do que Frascolla chama de “Tribos Extemporâneas”, ou seja, “uma coletividade intermediária entre indivíduo e Estado, seja ela racial, étnica ou religiosa”. Sua extemporaneidade se caracteriza por surgir no contexto de sociedades que já superaram a condição tribal. [7]
A verdade é que essa fixação na diferença ao invés de naquilo que temos de comum, tende a ocasionar divisões que em nada contribuem para a promoção de qualquer igualdade ou pacificação. Ao contrário, como alerta Bruckner, “tudo o que distingue os homens acaba por opô-los”. [8] A reafirmação da diferença no exato momento em que se pugna por igualdade, tende, ainda que inadvertidamente, a perpetuar preconceitos, mesmo que com sinais ou polos opostos. [9] É preciso sempre lembrar que a Justiça não é uma versão da Injustiça de ponta – cabeça, nem a Igualdade uma versão da Desigualdade invertida. Fato é que “em nenhum caso a celebração da diversidade enquanto norma suprema pode criar uma base comum”. Nesse contexto, “é a própria ideia de uma igualdade humana que é sabotada”. [10]
No Brasil tem sido comum legislar de forma incontida para conferir especiais tratamentos a determinados grupos considerados hipossuficientes ou de alguma forma prejudicados, deserdados histórica, cultural, econômica ou socialmente. Assim é que se cria uma figura especial de homicídio com a denominação de “Feminicídio” e outra espécie de homicídio qualificado, tendo em vista a condição de agente de segurança pública, penitenciária ou militar. Há projetos para criar também uma figura especial de homicídio “homofóbico” ou “transfóbico” (PL 7292/17, de autoria da Deputada Federal Luizianne Lins (PT – CE), onde se usa a expressão “LGBTcídio”). [11]
É bom saber que esses dispositivos legais já vigentes em nosso país, bem como o projeto mencionado não incidem diretamente em algo como o “Wergeld”, ou seja, numa imediata tarifação de vidas humanas de acordo com a pertença a certos grupos ou a presença de certas características secundárias. O Feminicídio não é um homicídio qualificado somente pelo fato de a vítima ser mulher, mas pela motivação subjetiva do autor estar ligada à misoginia ou à situação de violência doméstica e familiar contra a mulher. O homicídio de agentes de segurança pública, penitenciária ou militares também não se qualifica somente pelo fato de se tratarem dessas espécies de funcionários, mas devido à motivação do crime ser ligada ao exercício das funções respectivas. Finalmente, o Projeto do “LGBTcídio” também não qualifica o homicídio e o clássica como hediondo somente pelo fato de a vítima ser homossexual ou transexual, mas tendo em conta que tenha sido morta devido à discriminação ligada a essa condição.
Não obstante isso, fato é que em todos os casos acima citados as mortes se dariam por “motivo torpe”, tendo em vista o “preconceito” ou um ato de “represália ou vingança injustificável”, o que já é previsto em nosso Código Penal desde 1940 (artigo 121, § 2º., inciso I, “in fine”, CP), bem como é considerado como “Crime Hediondo” desde 1994, quando o homicídio qualificado foi incluído no rol da Lei 8.072/90 (artigo 1º., inciso I da Lei 8.072/90, com redação dada pela Lei 8.930/94).
Dessa forma, ainda que se adicionem especiais circunstâncias e elementos subjetivos para a qualificação nas novas figuras criadas ou projetadas, evitando um reacionário sistema direto e efetivo de “Wergeld”, fato é que a referência a determinadas categorias de forma especial tem um efeito simbólico que acaba remetendo a um tratamento diverso para seres humanos devido a determinadas características pessoais. O jurista em geral saberá discernir o traço especificador das figuras em discussão, mas no imaginário popular ou no senso comum, será recorrente o entendimento de que certas categorias de pessoas têm suas vidas avaliadas de forma superior a outras. Além disso, essa criação de figuras especiais para cada categoria de pessoas tende a se agigantar de forma irracional, exatamente devido a esse simbolismo subjacente ou mensagem oculta (ainda que espúria) de valorização especial de umas vidas em detrimento de outras. Ocorre que a tendência é a proliferação de reivindicações de grupos que passam a almejar a criação de figuras especiais a tratarem da violência perpetrada contra seus membros. A inexistência dessas previsões passa a ser interpretada como uma espécie de injustiça e indiferença estatal e social. E não funciona explicar que essas incriminações são meramente simbólicas. Um mecanismo reivindicatório marcado pelo ressentimento e pela sensação de discriminação está posto em funcionamento.
Dessa forma, estaremos sempre aguardando para saber quem será o hipossuficiente ou o deserdado da vez que ensejará motivação para a criação de um novo homicídio qualificado e crime hediondo. Estaremos sempre esperando o surgimento de algum “Negricídio”, “LGBTcídio”, “Gerontocídio”, “Juvenicídio”, “Obesocídio” e assim por diante “ad infinitum”.
Esse procedimento, além de inútil, irracional e ineficiente, provocador de uma hipertrofia normativa absolutamente contraproducente, acaba, ainda que simbólica e equivocadamente, alimentando uma discriminação inaceitável entre vidas humanas por categorias no imaginário popular, o que é extremamente danoso sob o ponto de vista ético. É neste sentido que se entende que o identitarismo tem o potencial de provocar um retrocesso jurídico semelhante aos tempos do “Wergeld”, de maneira que seria importante rever esse mecanismo de criação de figuras específicas e focar simplesmente nas motivações torpes e/ou preconceituosas para a prática de homicídio, seja essa torpeza ou preconceito de qual natureza for e vise quem quer que seja (homens, mulheres, crianças, jovens, adultos, idosos, negros, brancos, ricos, pobres, policiais, comerciantes, operários, religiosos, ateus, magros, gordos, prostitutas (os), heterossexuais, população LGBTI+, deficientes etc.).
REFERÊNCIAS
BIELEFELDT, Heiner. Filosofia dos Direitos Humanos. Trad. Dankwart Bernsmüller. São Leopoldo: Unisinos,2000.
BOUDON, Raymond. O Relativismo. Trad. Edson Bini. São Paulo: Loyola, 2010.
SIMMEL, Georg. Filosofia del Dinero. Trad. Garcia Cotarello. Madrid: Capitán Swing Libros, 2013.
BRUCKNER, Pascal. Um Racismo Imaginário Islamofobia e Culpabilidade. Trad. Pedro Vieira. Lisboa: Gradiva, 2017.
FRASCOLLA, Bruna. As Ideias e o Terror. Salvador: República AF, 2020.
HAJE, Lara, MORAES, Geórgia. Projeto Endurece Pena para Homicídio contra população LGBT que envolva discriminação. Disponível em https://www.camara.leg.br/noticias/538399-projeto-endurece-pena-para-homicidio-contra-populacao-lgbt-que-envolva-discriminacao/ , acesso em 03.01.2021.
KERSTING, Wolfgand. Universalismo e Direitos Humanos. Porto Alegre: EdiPucrs, 2003.
RISÉRIO, Antonio. Sobre o Relativismo Pós – Moderno e a Fantasia Fascista da Esquerda Identitária. Rio de Janeiro: Topbooks, 2019.
SANTOS, André Leonardo Copetti, LUCAS, Doglas Cesar. A (In)Diferença no Direito. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2015.
THE Editors of Encyclopaedia Britannica. Wergild Germanic Law. Disponível em https://www.britannica.com/topic/wergild , acesso em 03.01.2021.
NOTAS
[1] THE Editors of Encyclopaedia Britannica. Wergild Germanic Law. Disponível em https://www.britannica.com/topic/wergild , acesso em 03.01.2021.
[2] BOUDON, Raymond. O Relativismo. Trad. Edson Bini. São Paulo: Loyola, 2010, p. 58. Ver também: SIMMEL, Georg. Filosofia del Dinero. Trad. Garcia Cotarello. Madrid: Capitán Swing Libros, 2013, p. 419. “El rescate de sangre fue una forma de compensación, normalmente el pago como reparación exigido a uma persona culpable de homicidio u otro tipo de muerte ilegal, aunque también podia ser exigido por cualquier otro crime serio”.
[3] Cf. SANTOS, André Leonardo Copetti, LUCAS, Doglas Cesar. A (In)Diferença no Direito. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2015, “passim”.
[4] KERSTING, Wolfgand. Universalismo e Direitos Humanos. Porto Alegre: EdiPucrs, 2003, p. 162.
[5] BIELEFELDT, Heiner. Filosofia dos Direitos Humanos. Trad. Dankwart Bernsmüller. São Leopoldo: Unisinos,2000, p. 210.
[6] RISÉRIO, Antonio. Sobre o Relativismo Pós – Moderno e a Fantasia Fascista da Esquerda Identitária. Rio de Janeiro: Topbooks, 2019, p. 39.
[7] FRASCOLLA, Bruna. As Ideias e o Terror. Salvador: República AF, 2020, p. 35.
[8] BRUCKNER, Pascal. Um Racismo Imaginário Islamofobia e Culpabilidade. Trad. Pedro Vieira. Lisboa: Gradiva, 2017, p. 21.
[9] Op. Cit., p. 23.
[10] Op. Cit., p. 30.
[11] HAJE, Lara, MORAES, Geórgia. Projeto Endurece Pena para Homicídio contra população LGBT que envolva discriminação. Disponível em https://www.camara.leg.br/noticias/538399-projeto-endurece-pena-para-homicidio-contra-populacao-lgbt-que-envolva-discriminacao/ , acesso em 03.01.2021. Vide também o inteiro teor do Projeto: PL 7292/2017 Projeto de Lei. Disponível em https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=2128135 , acesso em 03.01.2021.