Na onda midiática do famigerado “Caso Lázaro” vem a lume um artigo da lavra de Bottini e Rocha, alegando, desde o chamativo título, que “Policial não age em legítima defesa”. [1]
O argumento central está em afirmar que o instituto da legítima defesa é referido somente ao particular e não à atuação do Estado. Em suas palavras:
A legítima defesa é a reação do cidadão diante de uma agressão injusta. O Estado, detentor do monopólio da violência, abre mão da sua prerrogativa, e permite que o particular exerça a autotutela, porque não há tempo ou condições de acessar a proteção pública (CP, artigo 25). [2]
Não há necessidade de rebater mais intensamente essa espécie de argumentação com o fato notório de que a legítima defesa é um direito inerente ao ser humano, não importando as circunstâncias em que se encontre, mas tão somente a satisfação das condições exigidas para a configuração do instituto. Não há qualquer espécie de especulação legítima capaz de afastar a condição humana de qualquer homem devido a circunstâncias acidentais. Essa pretensão, para além de imoral, constitui um erro crasso que faz confusão entre acidente e essência. O acidental é aquilo que não define o ser, que pode ser retirado ou posto sem alterá-lo consideravelmente. O essencial, ao reverso, é aquilo que define e, se retirado ou posto, desnatura o ser. [3] Será que o acréscimo da condição de policial a alguém lhe retira a condição humana? Ou a retirada dessa condição de policial tem o condão de retornar o homem à condição de ser humano? É evidente que não.
A verdade é que o texto em discussão não comporta sequer a passagem da consideração da raiz intelectiva que o guia para seus aspectos técnicos. Na raiz já se pode parar, vez que não há sustentação mais mínima que seja para um arbusto, quanto mais uma árvore de fundamentos.
A palavra “argumento”, como bem lembra Marías, tem sua “origem etimológica” no grego “àrgyros” e no latim “argentum”, referindo-se ao metal “branco, brilhante, que reluz”. [4] Portanto, argumentar significa lançar luz sobre aquilo que é objeto da argumentação. Isso é exatamente o que não faz o texto dos autores em destaque. Na verdade, torna obscura ou opaca a questão da legítima defesa do policial devido ao seu ponto de partida desastroso que, logo de início, desumaniza o humano.
Os autores partem de um raciocínio que aniquila “ab ovo” tudo que pretendam afirmar no seguimento. Eles erram, como é, infelizmente comum ocorrer, na identificação do agente. Focam no “Estado” como se este pudesse ser “sujeito” de qualquer ação concreta no mundo real, isso é um erro grotesco (embora comuníssimo) de categoria. O Estado não é agente de coisa nenhuma, é um ente abstrato. A ação é humana, de seres humanos. Alijar qualquer ser humano do direito à legítima defesa é um absurdo, é criar um sub – humano. É um Direito Penal do Inimigo invertido. Dizer impunemente tudo que se disse torna-se fácil pelo processo de desumanização empreendido (consciente ou inconscientemente). Toma-se um ente abstrato e se o indica artificialmente como suposto agente concreto, ocultando a face humana do policial envolvido. Esse tipo de coisa, tragicamente, é um sintoma da falta de formação intelectual para além da mera tecnicidade. Isso torna tudo mais que se afirme indigno de consideração.
Estarrece constatar como pessoas sobre as quais se supõe ou espera algum nível intelectual ao menos mediano podem ser contaminadas por uma cegueira ao ponto de não perceber que a desumanização sempre tem sido, ao longo da história, o primeiro passo para a justificação da violência, inclusive letal, sobre certas pessoas. A desumanização do humano e a sua equiparação a coisas ou animais tem sido, sempre e invariavelmente, o primeiro pretexto e mecanismo psicológico para sua eliminação impiedosa. Esse é o resultado do rompimento das “unidades amplas”, dotadas de “realidade” e densidade “muito superior à de seus componentes” distintivos, enfatizando o “diferencial” e “desdenhando o comum” que é de “magnitude e alcance incomparáveis”. [5] Não perceber que se está recaindo nesse processo desumanizador ao supostamente defender uma contenção da atuação dos agentes estatais, exatamente com o fito de preservar a dignidade humana, é o resultado inevitável de uma visão monocular, da confusão entre categorias e da incapacidade de distinção entre agentes reais e abstrações.
A mixórdia entre o “Estado” e o policial, tornando opaca a face deste segundo enquanto “outro” humano é aterrorizante e tanto pior quanto mais for inconsciente, porque é exatamente isso que permite a falta absoluta de empatia, respeito, comiseração e a presença insensibilizada da crueldade. Trata-se da “negação pelo sujeito da humanidade de seu semelhante”, [6] sendo isso uma mão dupla, ou seja, não deve ser permitido desumanizar mesmo aqueles que se pensa que agem de forma desumana. Ainda que um criminoso seja da pior espécie, ainda que possa haver abusos policiais por parte de alguns, isso não justifica o processo desumanizador seja do criminoso empedernido seja do policial infrator. Muito menos justifica generalizar um afastamento de um direito fundamental, que é a legítima defesa! A presença do “outro” (qualquer “outro” humano) diante de mim é impositiva de uma relação ética de reciprocidade e reconhecimento. [7] Trata-se de um relacionamento “Eu – Tu” distinto substancialmente de um relacionamento “Eu – Isso”, já que “o homem não é uma coisa entre coisas ou formado por coisas”. [8] O artifício da obnubilação do ser humano policial mediante sua diluição no ente abstrato estatal é um processo tão sutil quanto insidioso e desastroso. Certamente isso ocorre nos autores em destaque, não por maldade intencional, mas, como já se destacou, por um erro grotesco, por uma incapacidade incrível (embora muito comum) em identificar os verdadeiros agentes do mundo real, da história, enfim do mundo da vida cuja concretude se impõe ao mundo das ideias.
Portanto, salvo se há a pretensão ou o equívoco de desumanizar policiais, apagando sua face e borrando seus contornos na abstração do Estado, impõe-se reconhecer, por conhecimento direto e notório, que estes podem sim agir em legítima defesa. Preocupações com abuso de poder estatal, opressão do indivíduo pelo Estado são questões que não podem alterar o reconhecimento de que o policial é um ser humano como outro qualquer, dotado dos mesmos direitos e garantias. A condição humana do policial é inclusive inseparável de qualquer pretensão humanizadora do Direito e do Estado, porque não é possível pretender um sistema humanizado que admita categorizações entre maior ou menor grau de humanidade circunstancial ou acidental. Isso sob pena de também abrir a porta para a legitimação da desumanização circunstancial dos particulares. Ao fim e ao cabo, o problema se resolve por meio da coerência e do velho bom – senso.
REFERÊNCIAS
ARISTÓTELES. Categorias. Trad. Ricardo Santos. Lisboa: Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 2014.
BOTTINI, Pierpaolo Cruz, ROCHA, Tiago. Policial não age em legítima defesa. Disponível em https://www.conjur.com.br/2021-jun-30/direito-defesa-policial-nao-age-legitima-defesa , acesso em 02.07.2021.
BUBER, Martin. Eu e Tu. Trad. Newton Aquiles Von Zuben. 2ª. ed. São Paulo: Moraes, 1977.
FARIAS, Francisco Ramos de. Por que, afinal, matamos? Rio de Janeiro: 7 Letras, 2010.
LEVINAS, Emmanuel. Totalidade e infinito. Trad. José Pinto Ribeiro. Lisboa: Edições 70, 1988.
MARÍAS, Julián. Tratado Sobre a Convivência – Concórdia sem Acordo. Trad. Maria Stela Gonçalves. São Paulo: Martins Fontes, 2003.
NOTAS
[1] BOTTINI, Pierpaolo Cruz, ROCHA, Tiago. Policial não age em legítima defesa. Disponível em https://www.conjur.com.br/2021-jun-30/direito-defesa-policial-nao-age-legitima-defesa , acesso em 02.07.2021.
[2] Op. Cit.
[3] ARISTÓTELES. Categorias. Trad. Ricardo Santos. Lisboa: Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 2014, p. 2 – 25.
[4] MARÍAS, Julián. Tratado Sobre a Convivência – Concórdia sem Acordo. Trad. Maria Stela Gonçalves. São Paulo: Martins Fontes, 2003, p. 27.
[5] Op. Cit., p. 5 – 6.
[6] FARIAS, Francisco Ramos de. Por que, afinal, matamos? Rio de Janeiro: 7 Letras, 2010, p. 91.
[7] LEVINAS, Emmanuel. Totalidade e infinito. Trad. José Pinto Ribeiro. Lisboa: Edições 70, 1988, p. 177.
[8] BUBER, Martin. Eu e Tu. Trad. Newton Aquiles Von Zuben. 2ª. ed. São Paulo: Moraes, 1977, p. 9.