The Supreme Cort is wrong! (A Suprema Corte está errada!). Esta é uma das falas da personagem Darby Shaw, interpretada por Julia Roberts, no filme “O Dossiê Pelicano” (The Pelican Brief), de 1993. Sabem o que o filme tem a ver com o objeto do presente artigo? Nada, à exceção de retratar o que alguns autores chamam de “fator Julia Roberts”.
Nesse sentido, concordo com Lênio Streck (a despeito de todas as discordâncias que me ligam ao Professor e me desligam dele): é preciso que se reconheça que um tribunal, ainda que supremo, comete equívocos. É preciso que se diga sem medo de represálias político-institucionais, sobretudo quando o equívoco atinge a atribuição do Ministério Púbico.
Logo, com respeito: o tribunal errou.
Permitam-nos começar pelo problema: mulher é vítima de tentativa de homicídio (qualificado – feminicídio). No plenário do Júri, ela confirma que o autor foi o ex-companheiro. As testemunhas também apontam a ele como o responsável pelas lesões e, ao final, o acusado confessa o crime e a motivação:
– Fui eu! Fi-lo porque ela me traiu. Defendi a minha honra.
Ainda que todos os elementos trazidos aos autos e todas as provas produzidas indicassem quem era o homicida, o Conselho de Sentença respondeu “sim” no quesito genérico-obrigatório e absolveu o acusado. Isso quer dizer que os Sete do Povo responderam sim à materialidade, sim à autoria e, ainda assim, o absolveram.
O Ministério Público, baseando-se no artigo 593, III, “d”, do Código de Processo Penal, recorreu e o Tribunal concordou que a decisão era manifestamente contrária à prova dos autos e cassou o veredicto a fim de que fosse realizado um novo Júri.
Em sessão realizada no dia 29 de setembro de 2020, contudo, ao apreciar Habeas Corpus (178.177) impetrado pela Defensoria Pública de Minas Gerais, a 1ª Turma do STF manteve a absolvição do feminicida confesso. Por três votos a dois, fixou o entendimento de que, da decisão que absolve o acusado com base no quesito genérico, não caberia recurso.
Em síntese, entendeu o Ministro Relator que a regra prevista no artigo 593, III, d, do CPP não se aplicaria quando a absolvição tivesse ocorrido com fundamento no quesito genérico. Nesse caso, portanto, ainda que a decisão fosse contrária àquilo que fora colhido e demonstrado nos autos, não poderia o titular da ação recorrer. Parece-nos, nesse sentido, que, para o relator, o princípio da soberania dos vereditos, pelo menos no que alude ao quesito genérico, tem caráter absoluto.
Não merecia censura a decisão primeira, pautada na soberania dos veredictos. Não podia o TJ gozar essa decisão e assentar que só serviria a resposta negativa. Marco Aurélio Mello.
O Ministro Dias Toffoli acompanhou e, em seu voto, disse que com a toga que me tem aos ombros eu alertei que essa é uma instituição disfuncional. Era melhor que os crimes dolosos contra a vida fossem julgados por juízes togados, e que não tivéssemos os custos e burocracias do Tribunal do Júri. Veja agora, com a pandemia, a dificuldade que é realizar o Tribunal do Júri. Os relatos são repugnantes, mas há a soberania do Júri e temos que respeitar, seja para condenar, ou para absolver. Grifamos.
Antes de avançar àquilo que é objeto deste texto e, com respeito ao Ministro e à inegável importância da Suprema Corte, não parece sequer ser um argumento válido mencionar que o júri é custoso e burocrático. Talvez o argumento tivesse alguma credibilidade se, aos jurados, aos serventuários, aos policiais e ao Promotor de Justiça fossem servidos medalhões de lagosta, caviar e eles assistissem aos debates tomando vinhos internacionalmente premiados.
No caso do Júri, contudo, é suco, refrigerante e marmitex. No máximo, pão de queijo e cafezinho – se a sessão for longa.
De volta ao tema, o fato é que, por maioria, ficou decidido que a soberania dos veredictos é absoluta. Não poderia o titular da ação penal (e, destarte, do recurso) sequer apelar ao Tribunal de Justiça a fim de demonstrar que a decisão contrariava a prova dos autos. Isso porque, de acordo com a Turma, quando a absolvição se dá no quesito genérico, o motivo dela (da absolvição) poderia ser qualquer um, inclusive a clemência.
Divergiram os Ministros Alexandre de Moraes e Barroso. Para o primeiro, trata-se de um dos crimes mais graves que o Código Penal prevê e, lamentavelmente o Brasil é campeão de feminicídio, em virtude de uma cultura extremamente machista e de desrespeito à mulher. E prosseguiu: ao permitir nova análise, a turma estaria ratificando o quesito genérico contrário à prova dos autos de legitima defesa da honra, que até 10 anos atrás no Brasil era o que mais absolvia os homens violentos que matavam suas mulheres, namoradas e companheiras.
Luís Roberto Barroso, o outro Ministro divergente, destacou que não gostaria de viver em um país em que os homens pudessem matar as suas mulheres por ciúmes e saírem impunes. E prosseguiu: se o Júri tiver um surto de machismo ou de primitivismo e absolver alguém, o Tribunal não pode rever e pedir um novo Júri que revalide? Não ter uma chance de se rever uma situação em que um homem tenta matar a sua mulher a facadas confessadamente.
Não bastasse, Barroso reforçou o efeito simbólico negativo que eventual absolvição com fulcro na legítima defesa da honra poderia gerar: Se chancelarmos a absolvição de um feminicídio grave como esse, pode parecer que estamos passando a mensagem de que um homem traído pode esfaquear a mulher em legítima defesa de sua honra. Não parece que, avançado o século XXI, essa seja uma tese que possa se sustentar. E finalizou a divergência:
O Direito não admite isso. O meu senso de justiça se sente ofendido ao se naturalizar uma tentativa de feminicídio como essa.
Acompanhamos a divergência. O artigo 593, III, “d”, do Código de Processo Penal, entrega à parte a possiblidade de recorrer de decisões contrárias à prova dos autos e não faz ressalva alguma para os casos em que a absolvição se deu no quesito genérico. Esse é o entendimento majoritário dos tribunais:
A 3ª Seção do STJ consolidou o entendimento de que não ofende a soberania dos veredictos a anulação de decisão do Tribunal do Júri que se mostre manifestamente contrária a prova dos autos, ainda que os jurados tenham respondido positivamente ao terceiro quesito formulado nos termos do art. 483, § 2º, do CPP (AgRg no AREsp n. 1.116.885/RS, Sexta Turma, Rel. Min. Nefi Cordeiro).
No RE Nº 1.285.141 – AL (2011/0239010-5), de relatoria do Ministro Sebastião Reis Júnior, a defesa, entre outros pontos, afirmava que não era possível apelação em face de decisão que absolveu o réu no quesito genérico. Alegava-se que, com a introdução do quesito obrigatório “o jurado absolve o acusado?”, tem-se que o veredicto absolutório pode-se basear na tese jurídica levantada pela defesa técnica ou em qualquer outra, ainda que sem amparo jurídico (piedade, clemência, bondade, etc.) Logo, por não ser um quesito exclusivamente relacionado aos fatos, não há como se aferir se a resposta é ou não manifestamente contrária à prova dos autos, conforme ensina a melhor doutrina.
Entretanto, de acordo com o relator, essa não era a melhor intepretação a ser extraída do dispositivo: as alterações promovidas pela Lei n. 11.689/2008 no Código de Processo Penal não inviabilizaram o recurso da acusação com base no art. 593, III, d do Código de Processo Penal.
Não é só. No HC 313.251, de relatoria do ministro Joel Ilan Paciorni, fixou-se a seguinte tese: A absolvição do réu pelos jurados, com base no art. 483, III, do CPP, ainda que por clemência, não constitui decisão absoluta e irrevogável, podendo o Tribunal cassá-la quando ficar demonstrada a total dissociação da conclusão dos jurados com as provas apresentadas em plenário. Assim, resta plenamente possível o controle excepcional da decisão absolutória do Júri, com o fim de evitar arbitrariedades. Grifamos.
Na doutrina, prevalece o mesmo entendimento:
(…) Entretanto, o duplo grau de jurisdição não pode ser retirado do órgão acusatório. Em primeiro lugar, quando a defesa promove a sua sustentação em plenário as teses são inscritas em ata. Por isso, o Tribunal poderá tomar conhecimento de todas e verificar se a absolvição assumida pelo Conselho de Sentença é ilógica ou guarda alguma harmonia com qualquer delas. Em segundo lugar, o Tribunal poderá avaliar as provas constantes dos autos e chegar à conclusão de que a absolvição não era cabível, qualquer que fosse a razão adotada pelos jurados. Remete-se o caso a novo julgamento e o Tribunal Popular novamente se reúne. Em nome da soberania, se decidir absolver, pela segunda vez, torna-se definitivo o veredicto (Nucci, Guilherme de Souza. Código de Processo Penal Comentado. 15ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2016, p. 1240).
Pacelli e Douglas Fischer reforçam o entendimento:
A soberania dos veredictos não pode ser interpretada no sentido que possa a conclusão do Conselho de Sentença ser dissociada integralmente do que apurado nos autos, por mais que o espírito dos jurados (unânime ou majoritário) esteja correlacionado com a intenção de absolver em ideia genérica de justiça para com o autor ou partícipe do fato. Assim, em situações excepcionais, nas quais a absolvição for totalmente dissonante das provas carreadas aos autos, poderá haver a anulação do julgado acaso promovido recurso de apelação forte no art. 593, III, d, CPP […].
A irresignação quanto à decisão do STF pode ser sustentada ainda em recentes decisões da Corte Interamericana de Direitos Humanos. Para o Professor, pós-doutor e amigo, Valério Mazzuoli, e Marcelle Rodrigues da Costa e Faria, presidente da Confraria do Júri, a decisão, além de injusta e de caracterizar desamparo à vítima da violação a direito humano, atinge o postulado da proporcionalidade que dirige o Direito Penal brasileiro e corresponde a uma decisão em descompasso com a Convenção Americana de Direitos Humanos, bem como com a sua interpretação estampada nos precedentes da Corte IDH.
Segundo a autora, o princípio da proporcionalidade não se esgota na proibição de excesso do Estado, mas também está atrelado a um dever de proteção dos direitos fundamentais e direitos humanos, inclusive quanto às agressões provenientes de terceiros, que leva à proibição da proteção insuficiente desses direitos. A impossibilidade de recorrer do veredicto injusto configura proteção deficiente à vítima da violação.
Nota-se, portanto, que era farto o entendimento dos tribunais superiores no sentido de que a unificação de teses absolutórias promovida pelo quesito genérico visava facilitar a vida do jurado, isto é, tornar o julgamento dos votos mais objetivo. A intenção do legislador, em momento algum, foi transformar a decisão do conselho de sentença numa conclusão irrecorrível e, assim, imutável.
Mas, ainda que consideremos equivocada a decisão da maioria, não é ela, por si só, que nos levou a mencionar o pelicano e o “Fator Julia Roberts”, mas sim a (não)coerência do seu conteúdo quando comparada àquilo que ficou decidido pouco tempo depois, em outra demanda.
No julgamento da ADPF 779, o Supremo Tribunal Federal, por unanimidade, concedeu medida liminar e firmou o entendimento de que a tese da legítima defesa da honra é inconstitucional, por contrariar os princípios constitucionais da dignidade da pessoa humana (art. 1º, III, da CF), da proteção à vida e da igualdade de gênero (art. 5º, caput, da CF). Com isso, obstou à defesa, à acusação, à autoridade policial e ao juízo que utilizassem, direta ou indiretamente, a tese de legítima defesa da honra (ou qualquer argumento que induzisse à tese) nas fases pré-processual ou processual penais, bem como durante julgamento perante o tribunal do júri, sob pena de nulidade do ato e do julgamento, nos termos do voto do Relator, Ministro Dias Toffoli.
O nervo da questão reside aqui.
No julgamento do HC em que se manteve a absolvição de um feminicida confesso, fixou-se a ideia de que a soberania dos veredictos é absoluta. Em miúdos, o Ministério Público não poderia recorrer se a absolvição se deu no quesito genérico, ainda que a decisão seja escancaradamente contrária à prova dos autos.
Noutro giro, no julgamento da ADPF 779, o mesmo Tribunal, por unanimidade, proibiu que a defesa utilizasse a legítima defesa da honra em qualquer fase da persecução penal. Logo, relativizou a plenitude de defesa.
O art. 5º, XXXVIII, da CRFB/88, consagra os princípios constitucionais explícitos do Júri. Dentre eles, em duas de suas alíneas, estão a PLENITUDE DE DEFESA e a SOBERANIA DOS VEREDICTOS. Notem que são dois princípios, previstos no mesmo artigo, que tratam do mesmo assunto e, dessa forma, com densidade normativa absolutamente igual. Mas, mesmo assim, a Suprema Corte considerou que um é absoluto (soberania); o outro (plenitude), relativo.
Entrega-se ao intérprete a impressão de que o peso de um ou de outro princípio é calculado à luz daquilo que convém. Princípios que tratam de um mesmo instituto, que são tratados no mesmo dispositivo e que possuem a mesma força normativa foram tratados de maneiras distintas.
Para não dizer que não falamos das dores, registre-se que consideramos a legítima defesa da honra primitiva, injusta e inaceitável (ao menos, do ponto de vista ético e convencional). Ocorre que, um dos pilares do júri é a plenitude de defesa (artigo 5º, XXXVIII da CRFB/88). A defesa poderia consagrar a tese a fim de alcançar a absolvição do cliente/assistido e, ao Ministério Público, caberia recorrer caso a decisão fosse absolutamente contrária à prova dos autos.
A fim de reduzir o campo hermenêutico e limitar, ainda mais, as possibilidades interpretativas que levam ao absurdo, sugerimos que seja acrescentado à alínea “d” do inciso III do artigo 593 o seguinte complemento: ainda que a absolvição tenha ocorrido em resposta ao quesito absolutório genérico.
A CRFB/88 salvaguarda a soberania dos veredictos. Mas a legislação também garante que, diante de prova contrária aos autos, haja um novo júri. Além do mais, parece-nos que a proteção eficiente da vida de uma mulher deveria valer mais diante do peso de qualquer princípio constitucional (ainda que seja um tão relevante — e a soberania dos vereditos o é).
Para além disso, entendemos que a decisão do STF viola a vedação da proteção deficiente do Estado, na perspectiva positiva do garantismo. Perspectiva essa que fez com que o Brasil, por exemplo, fosse compelido no caso que envolvia Maria da Penha e que culminou na feitura da Lei 11.340/06.
Concluímos que interpretações absurdas não devem prevalecer, sobretudo aquelas cujas consequências podem ter efeitos simbólicos negativos para as mulheres, grupo que sofreu e sofre os mais variados tipos de violência.
Nesse caso, reiteramos, o excesso de zelo é prudente e oportuno, afinal, a justiça não existe, ela existirá apenas se a fizermos. Ainda que a definição de justiça seja abstrata e sua conceituação seja quase que inalcançável (diante da carga subjetiva que ela traz consigo), é muito fácil se dizer o que não é justo. E, nessa perspectiva, não é justo que o réu confesso de um feminicídio seja absolvido sob o argumento de que a decisão do jurado é irrecorrível.
Mas, mais injusto do que isso, é a tentativa de se sanar um erro com um outro erro: a mitigação à plenitude de defesa. Cabe ao defensor, diante daquilo que considera benéfico ao acusado e à luz de sua independência funcional, levar a tese aos Sete do Povo. Qualquer uma! Ao Ministério Público cabe refutá-la e, eventualmente, recorrer, caso a decisão contrarie a prova dos autos.
Em síntese, para que o presente texto não seja apenas uma crítica-pela-crítica, sugerimos a alteração no art. 593 do CPP, a fim de que se garanta que o Promotor de Justiça recorra diante quando a decisão contrariar a prova dos autos. Isso porque a soberania do veredicto não é absoluta, assim como nenhum princípio o é. Prova disso foi a relativização feita à plenitude de defesa, instituto tratado no mesmo dispositivo e possuidor da mesma densidade normativa do princípio que se considerou absoluto. Citamos, no entanto, a plenitude de defesa como reforço à argumentação, uma vez que consideramos arbitrário proibir, abstratamente, o uso de uma tese em plenário (ainda que discordemos dela).
Aos que comemoraram a proibição do uso da legítima defesa da honra, um lembrete: a mão que afaga é a mesma que apedreja. Permitir que os ministros proíbam o uso de uma tese não deveria ser comemorado, afinal, da próxima vez, eles podem decidir proibir a leitura dos antecedentes em plenário. E isso, nós comemoraríamos? Ou seria outro pelicano?