O Decreto 11.366/2023 veio regulamentar dispositivos do Estatuto do Desarmamento e modificar disposições do Decreto 9.785/2019.
Sem a pretensão de exaurir o tema, trazemos algumas observações sobre a referida legislação.
1. Dos registros de armas segundo a nova sistemática
Art. 2º As armas de fogo de uso permitido e de uso restrito adquiridas a partir da edição do Decreto nº 9.785, de 7 de maio de 2019, serão cadastradas no Sistema Nacional de Armas – Sinarm, no prazo de sessenta dias, ainda que cadastradas em outros sistemas, ressalvado o disposto no parágrafo único do art. 2º da Lei nº 10.826, de 2003.
O art. 2º determina que as armas de fogo de uso permitido e de uso restrito adquiridas a partir da edição do Decreto 9.785/2019 devem ser registradas no SINARM em até 60 dias da data da publicação do decreto em análise, mesmo que exista cadastro em outros sistemas.
A primeira observação que se faz é que o art. 2º não regulamenta a quem competirá realizar o registro no SINARM, ou seja, se competirá ao poder público estabelecer uma comunicação entre os órgãos de cadastro para realizar a integração de suas bases de dados, permitindo o efetivo registro no SINARM, ou se haverá uma responsabilidade concomitante dos proprietários de armas de fogo em realizar este registro.
Diante do silêncio da lei, e diante da dificuldade operacional em se determinar que todos os proprietários de armas que já possuem um registro cadastral em órgão oficial, entendemos que tal atribuição compete ao poder público. Segundo o princípio da legalidade, ninguém é obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei. Em não tendo sido imposta tal obrigação expressamente aos proprietários de armas de fogo, tal atribuição num primeiro momento, caberá aos órgãos públicos de controle sobre a matéria: Polícia Federal e Exército.
Uma alternativa, caso o poder público deseje estabelecer tal obrigação à população em geral, será fazê-lo expressamente e garantindo um prazo muito superior aos 60 dias estabelecidos no art. 2º do Decreto.
A inobservância deste prazo em um contexto de obrigatoriedade exclusiva do poder público para providenciar o registro junto ao SINARM faz com que a ausência de registro nesse sistema (e desde que haja outro registro em outro cadastro) configure mera irregularidade administrativa, sem adentrar no campo penal.
Caso não exista cadastro de armas e munições em qualquer órgão de controle, naturalmente a conduta poderá ser enquadrada como posse ou porte irregular de arma de fogo e munições previstos no Estatuto do Desarmamento, conforme for o caso.
2. A importância do indiciamento: cassação da autorização de posse ou porte de arma e medidas restritivas a direitos
Art. 27. Serão cassadas as autorizações de posse e de porte de arma de fogo do titular que responda a inquérito policial ou a ação penal por crime doloso.
O artigo 27 estabelece que serão cassadas as autorizações de posse e de porte de arma de fogo do titular que responda a inquérito policial ou a ação penal por crime doloso.
Assim, a decisão de indiciamento constitui fato gerador para o processo de cassação de autorização de posse ou porte de arma. Verifica-se que, segundo o decreto, basta que o sujeito esteja respondendo a inquérito policial ou ação penal por crime doloso. Para fins de caracterização da locução “respondendo a inquérito”, é necessária a existência de indiciamento.
O primeiro questionamento que podemos realizar: se o processo de cassação de autorização de posse ou porte de arma será iniciado pelo indiciamento ou pela ação penal em que o agente responda por qualquer crime doloso?
Perfilhamos duas correntes:
1) O legislador previu apenas a expressão “crime doloso”, sem fazer qualquer restrição quanto à natureza do delito. Portanto onde o legislador não estabeleceu restrição, não compete ao intérprete fazê-lo;
2) o processo de cassação de autorização somente deve ocorrer nos casos de crimes cometidos com violência ou grave ameaça, ou que tenham relação com potencial “ciclo de violência”, tais como furto, extorsão, cárcere privado, ameaça, lesão corporal, tráfico de armas e drogas, dentre outros. Exige-se, portanto, um vínculo de pertinência temática entre o delito pelo qual responde o agente e a cassação da autorização de porte ou posse de armas, respeitando-se o princípio da razoabilidade.
Enquanto a segunda corrente possa parecer mais coerente, possui o inconveniente de trazer consigo elevada carga subjetiva na definição de quais crimes teriam a pertinência temática reclamada. Portanto, a tendência é que prevaleça a primeira corrente, mais rígida e que melhor atende ao princípio da legalidade em sua vertente “lex certa” e da segurança jurídica.
Outro ponto interessante é que a cassação da autorização aplica-se a todas as armas de fogo de propriedade do indiciado ou acusado, nos termos do artigo 26, § 3º, e não apenas a uma arma específica que possa ter sido utilizada em determinado crime.
Cientificado acerca da decisão do indiciamento, o proprietário das armas e munições poderá providenciar, no prazo de 30 dias (art. 27, § 1º):
a) a entrega da arma de fogo à Polícia Federal ou ao Comando do Exército;
b) a sua transferência para terceiro, observado o artigo 10 do decreto em análise;
Quanto à decisão de indiciamento e suas consequências, fazemos as seguintes observações:
O indiciamento, conforme doutrina pacífica, não possui momento certo e definido em lei para ocorrer no âmbito do inquérito policial. No momento que que houver indícios de autoria e prova da materialidade, o indiciamento é medida que se impõe. A clareza a respeito da autoria do fato e da existência do crime, pode se dar, inclusive, no ato de lavratura do auto de prisão em flagrante. Neste momento, realizado o indiciamento do autuado, deverá a autoridade policial diligenciar sobre a existência de registro de arma de fogo em nome do suspeito e, em caso positivo, cientificá-lo para que entregue todas as suas armas a Polícia Federal ou ao Exército no prazo de 30 dias.
Deverá a autoridade policial, ainda, oficiar a Polícia Federal e ao Comando do Exército comunicando sobre o indiciamento do suspeito e solicitando informações sobre eventual descumprimento da obrigação de entrega das armas e munições ou da tomada de providências quanto a sua transferência para terceiros no prazo de 30 dias (art. 27, § 1º).
Caso a resposta assinale o descumprimento, haverá a apreensão da arma por parte da polícia judiciária competente para a investigação do crime motivador da cassação (art. 27, § 4º). Neste sentido, nas infrações penais comuns, caberá a apreensão da arma pela Polícia Civil ou Federal, conforme o caso, e, nas infrações militares, competirá às polícias militares do Estado ou da União.
3. Natureza jurídica da apreensão da arma de fogo
Qual seria a natureza jurídica da apreensão de armas em caso de descumprimento do prazo de 30 dias contados da decisão de indiciamento (ou de recebimento de denúncia ou queixa por crime doloso)? Medida administrativa a ser cumprida como ato administrativo autoexecutório ou é necessária medida judicial?
Vamos a possíveis interpretações.
a) trata-se de medida administrativa autoexecutória. A lei, quando quis remeter à espécie de apreensão decorrente de medida judicial, o fez de maneira expressa, como nos casos de apreensão de armas envolvendo crimes praticados no contexto de violência doméstica e familiar, a exemplo do art. 27, § 5º do Decreto (§ 5º Nos casos de ação penal ou de inquérito policial que envolva violência doméstica e familiar contra a mulher, a arma será apreendida imediatamente pela autoridade competente, nos termos do inciso IV do caput do art. 18 da Lei nº 11.340, de 7 de agosto de 2006). Neste caso, a apreensão decorre de prévia decisão judicial sobre medidas protetivas de urgência.
b) a não entrega configura crime a prazo previsto nos arts. 12, 14 ou 16, ensejando hipótese de flagrante delito. Assim, a apreensão será realizada, mediante ingresso no domicílio, desde que presentes fundadas razões para tanto, independentemente de ordem judicial justificadas a posteriori, ou mediante prévia autorização judicial.
4. Fundadas razões para o ingresso no domicílio sem mandado judicial em caso de descumprimento do prazo de entrega ou transferência de armas
Sobre as fundadas razões para o ingresso no domicílio a fim de apreender armas não entregues ou transferidas no prazo legal, podemos antecipar algumas discussões.
O fato de o proprietário não entregar as armas e munições à Polícia Federal ou ao Exército configura crime de posse ou porte irregular de arma de fogo, ou seja, já se sabe, de antemão, sobre a possibilidade de situação de flagrante delito dentro da residência do possuidor de arma de fogo. Nesse sentido, estarão autorizados os policiais ao ingresso no domicílio, independente de ordem judicial?
Pois bem: a posição do Superior Tribunal de Justiça para ingresso no domicilio sem mandado judicial exige duas condições: (a) existência de fundadas razões baseadas em elementos concretos e (b) existência de situação de urgência incompatível com a espera por ordem judicial de ingresso, sob pena de de que a prova do crime seja destruída ou ocultada (STJ, Habeas Corpus 686.489 – SP).
Neste sentido, teremos, pelo menos, dois pontos a superar:
a) existência ou não de fundadas razões: para nós, a demonstração objetiva de não entrega de armas ou de processo de transferência para terceiro, desde já, configura crime do art. 12, 14 ou 16 do Estatuto do Desarmamento. Isto, por si só, caracteriza razão fundada e objetiva para o ingresso no domicílio;
b) existência ou não de urgência para o ingresso no domicílio de modo que não se possa aguardar ordem judicial.
Quanto à condição de urgência, antevemos duas posições.
a) Passados os 30 dias para entrega da arma ou transferência para terceiro, a inércia do proprietário indica o risco à incolumidade pública pela possibilidade de não mais se localizar o paradeiro das armas e munições, o que justifica o ingresso imediato e sem mandado judicial a fim de aumentar a chance de êxito da diligência;
b) a própria concessão do prazo de 30 dias para a entrega ou transferência das armas a terceiro demonstra a ausência de urgência na medida de apreensão. Se urgência houvesse, a lei determinaria a entrega imediata da arma tão logo cientificado fosse o suspeito ou acusado quanto a decisão de indiciamento ou de recebimento da ação penal, o que não foi a opção do legislador. Neste sentido é necessária a prévia autorização judicial para a realização da busca e apreensão.
Embora a segunda corrente nos pareça a mais prudente, em razão de que há um controle prévio e mais rigoroso das autorizações para ingresso em domicílio – já que a inexistência de ordem judicial permitiria que, administrativamente, os agentes da lei ingressassem reiteradas vezes no domicílio em busca da arma – não descartamos, antecipada e peremptoriamente, situações em que o ingresso se faça necessário e independente de autorização judicial, mediante a demonstração concreta de urgência.
Ademais, na análise das duas condições ou requisitos (existência ou não de fundadas razões e impossibilidade de espera por ordem judicial), estamos diante de alguma carga de subjetividade que somente pode ser avaliada à luz do caso concreto.
Por fim, lembremos que nos casos de ação penal ou de inquérito policial que envolva violência doméstica e familiar contra a mulher, a arma será apreendida imediatamente pela autoridade competente, nos termos do inciso IV do caput do art. 18 da Lei nº 11.340, de 7 de agosto de 2006, ou seja, em cumprimento de medidas protetivas de urgência, apreensão esta que decorre de prévia autorização judicial.