O acordo de não persecução penal (ANPP) foi criado, de forma pioneira, pelo Conselho Nacional do Ministério Público, através da Res. 181/17, posteriormente alterada pela Res. 183/18, cujos contornos, anos depois, foram em grande parte repetidos no art. 28-A do Código de Processo Penal, com a introdução do referido instituto pelo PACOTE ANTICRIME.
Tomado pelo espírito de justiça consensual, compreende-se o acordo de não persecução penal como sendo o ajuste obrigacional celebrado entre o órgão de acusação e o investigado (assistido por advogado), devidamente homologado pelo juiz, no qual o indigitado assume sua responsabilidade, aceitando cumprir, desde logo, condições menos severas do que a sanção penal aplicável ao fato a ele imputado.
É evidente que os instrumentos negociais, há tempos presentes no processo cível, cumprem expectativas dos indivíduos e agentes político-econômicos, porque abreviam o tempo para a solução do conflito, e atendem a um prático cálculo de utilidade social. O consenso entre as partes se estabelece em um ambiente de coparticipação racional, mediante vantagens recíprocas que concorrem para uma aceitabilidade no cumprimento da medida mais efetiva, sentimento que eleva o senso de autorresponsabilidade e comprometimento com o acordo, atributos que reforçam a confiança no seu cumprimento integral.
O processo penal carecia de um instrumento como o ANPP. Inegavelmente, o acordo de não persecução penal traz economia de tempo e recursos para que o sistema de justiça criminal exerça, com a atenção devida, e com menor grau de revitimização, uma tutela penal mais efetiva nos crimes que merecem esse tratamento.
O critério de aferição da conveniência de oferecer a proposta de acordo, com vistas à prevenção e repressão do delito, é tarefa do Ministério Público, no exercício de seu monopólio da ação penal pública (ROXIN, Claus; SCHÜNEMANN, Bernd. Strafverfahrensrecht. 27ª ed. München: Beck, 2012, p. 75). No sistema acusatório, entende-se que não pode o juiz emitir decisão a respeito de tal conveniência, razão pela qual, em caso de divergência de opinião com o órgão ministerial, deve encaminhar o caso ao órgão revisional do próprio Ministério Público.
O oferecimento do acordo, a exemplo do que já acontece com a transação penal e a suspensão condicional do processo (ar. 74 e 89, ambos da Lei 9.099/95), é prerrogativa institucional do Ministério Público e não direito subjetivo do investigado. Nesse sentido é a lição de Ada Pellegrini Grinover, Antônio Magalhães Gomes Filho, Antônio Scarance Fernandes e Luiz Flávio Gomes:
“(…) Pensamos, portanto, que o “poderá” em questão não indica mera faculdade, mas um poder-dever, a ser exercido pelo acusador em todas as hipóteses em que não se configurem as condições do § 2° do dispositivo (in Juizados Especiais Criminais. 5ª ed. RT, 2005, p. 153 – grifos nossos).
No novo instituto, no espaço de discricionariedade regrada (poder-dever) que lhe concede a legislação e a própria concepção do instituto sob foco, o MP poderá se negar a formular proposta ao investigado, pois deverá ponderar previamente e fundamentar se o acordo “é necessário e suficiente para a reprovação e prevenção do crime” (condição subjetiva e cláusula aberta de controle), no caso concreto.
São pressupostos cumulativos do acordo:
a) existência de procedimento investigatório;
b) não ser o caso de arquivamento dos autos;
c) a pena mínima abstratamente cominada ser inferior a 4 (quatro) anos, sendo que, para aferição da pena mínima cominada ao delito a que se refere o caput deste artigo, serão consideradas as causas de aumento e diminuição, aplicáveis ao caso concreto (§1º.);
d) o crime não ser cometido com violência ou grave ameaça à pessoa;
e) o investigado ter confessado formal e circunstancialmente a prática do crime.
As condições do acordo, ajustadas cumulativa ou alternativamente, estão estampadas nos incisos que acompanham o caput do art. 28-A:
I – reparar o dano ou restituir a coisa à vítima, exceto na impossibilidade de fazê-lo. Na linha de outros instrumentos despenalizadores, o ANPP prestigia a vítima, colocando a reparação do dano ou restituição do objeto do crime como condição para o ajuste. Certamente haverá discussão quanto à possibilidade de o ajuste abranger (ou não) o dano moral. Para uma corrente, o dano moral, por guardar íntima relação com a dor e o sofrimento experimentado pela vítima, não encontraria, no processo penal, o locus adequado para debate. Para outros, com os quais concordamos, embora reconhecendo a dificuldade em se estabelecer o quantum, não afastam, de plano, essa possibilidade, dependendo sempre da cuidadosa análise do fato concreto, em especial, da gravidade do ilícito, da intensidade do sofrimento, da condição socioeconômica do ofendido e do ofensor, grau de culpa, etc., bem como a utilização dos parâmetros monetários estabelecidos pela jurisprudência para casos similares. Na seara da justiça consensual, tais dificuldades ficam quase que superadas, pois o valor a título de dano moral será discutido com a efetiva participação do ofensor. No caso de ter havido fixação de fiança e esta ter sido efetivamente paga pela/o investigada/o, mostra-se possível pactuar como cláusula do ajuste, considerando o disposto no art. 336 do CPP, que o valor depositado judicialmente seja revertido a título de reparação de danos civis. Não bastasse, com fundamento nos arts. 8º, 141, 356, 492 e 515, III, todos do CPC, e aplicados ao CPP (art. 3º), o capítulo do ANPP relativo à composição de danos civis poderá ser pactuado com caráter de autonomia, constituindo título executivo de natureza cível apto à execução, mesmo na hipótese de posterior rescisão do ajuste.
II – renunciar voluntariamente a bens e direitos indicados pelo Ministério Público como instrumentos, produto ou proveito do crime.
III – prestar serviço à comunidade ou a entidades públicas por período correspondente à pena mínima cominada ao delito, diminuída de um a dois terços, em local a ser indicado pelo juízo da execução, na forma do art. 46 do Decreto-Lei n. 2.848, de 7 de dezembro de 1940 (Código Penal).
IV – pagar prestação pecuniária, a ser estipulada nos termos do art. 45 do Decreto-Lei n. 2.848, de 7 de dezembro de 1940 (Código Penal), a entidade pública ou de interesse social, a ser indicada pelo juízo da execução, que tenha, preferencialmente, como função proteger bens jurídicos iguais ou semelhantes aos aparentemente lesados pelo delito.
V – cumprir, por prazo determinado, outra condição indicada pelo Ministério Público, desde que proporcional e compatível com a infração penal imputada. Este inciso deixa claro que o rol de condições é meramente exemplificativo. Outra condição indicada pelo Ministério Público, desde que proporcional e compatível com a infração penal imputada, pode ser ajustada. Como bem ensinam Renee do Ó Souza e Patrícia Eleutério Campos Dower, “a variedade e adaptabilidade das condições a serem estipuladas no acordo de não persecução podem experimentar relativas inovações e ampliações desde que i) a prestação avençada não seja proibida; ii) não atinja direito de terceiros; iii) não viole valores sociais e nem a dignidade da pessoa humana; iv) seja resguardada a consciência e voluntariedade do investigado; v) seja amparada pela juridicidade que permite sejam levados em consideração os elementos materiais contidos no sistema jurídico em seu aspecto substancial e vi) implique em recomposição social do bem jurídico tutelado pela norma penal aparentemente violada” (ob. cit. p. 179-180).
O legislador, no §2º do art. 28-A, anuncia as hipóteses de não cabimento do acordo. Para alguns, cuida-se de um rol de pressupostos negativos. Não cabe o ANPP nos crimes de menor potencial ofensivo. As condições pessoais do investigado também podem servir de impedimento para o ajuste (reincidente ou se houver elementos probatórios que indiquem conduta criminal habitual, reiterada ou profissional, exceto se insignificantes as infrações penais pretéritas). O fato de o agente ter sido beneficiado nos 5 (cinco) anos anteriores ao cometimento da infração, em acordo de não persecução penal, transação penal ou suspensão condicional do processo é igualmente um obstáculo.
O tipo de delito pode impedir o ANPP. Crimes praticados no âmbito de violência doméstica ou familiar, pouco importando o sexo da vítima, não merecem o ANPP. Ao lado dessas vedações, não se pode perder de vista o não cabimento do ANPP para crimes cometidos com violência ou grave ameaça à pessoa. Nesse ponto, como alertamos acima, a violência que impede o ajuste é aquela presente na conduta, e não no resultado.
No que diz respeito aos crimes de racismo, estampados na Lei 7.716/89, praticados, em regra, sem violência ou grave ameaça e com pena mínima inferior a 4 anos, não houve proibição pelo artigo em comento. Mesmo assim, há resistência. A procuradoria-geral de Justiça e a Corregedoria Geral do Ministério Público do Estado de São Paulo, por exemplo, expediram, no ano de 2020, ORIENTAÇÃO CONJUNTA, nos seguintes termos:
“Com o fim de obedecer e concretizar os fundamentos, objetivos e os princípios estabelecidos na Constituição Federal, nos documentos internacionais de direitos humanos, em especial na Declaração das Nações Unidas sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial, os órgãos de execução do Ministério Público do Estado de São Paulo devem evitar qualquer instrumento de consenso (transação penal, acordo de não persecução penal e suspensão condicional do processo) nos procedimentos investigatórios e processos criminais envolvendo crimes de racismo, compreendidos aqueles tipificados na Lei 7.716/89 e no art. 140, §3º, do Código Penal, pois desproporcional e incompatível com infração penal dessa natureza, violadora de valores sociais”.
Os fundamentos da citada ORIENTAÇÃO são os seguintes. A República Federativa do Brasil constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como um dos fundamentos a dignidade da pessoa humana (art. 1º, III, CF/88). Constitui objetivo fundamental da República Federativa do Brasil, dentre outros, promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação (art. 3º, IV, CF/88), regendo-se, nas suas relações internacionais, dentre outros, pelos princípios da prevalência dos direitos humanos e do repúdio ao terrorismo e ao racismo (art. 4º, II e VIII, CF/88). A prática do racismo (incluídos os crimes de racismo e de injúria racial), por ordem constitucional, constitui crime inafiançável e imprescritível, sujeito à pena de reclusão, nos termos da lei (art. 5º, XLII, CF/88). A Carta das Nações Unidas baseia-se em princípios de dignidade e igualdade inerentes a todos os seres humanos, e que todos os Estados-membros, dentre eles o Brasil, comprometem-se a tomar medidas separadas e conjuntas, em cooperação com a Organização, para a consecução de um dos propósitos das Nações Unidas, que é promover e encorajar o respeito universal e a observância dos direitos humanos e das liberdades fundamentais para todos, sem discriminação de raça, sexo, idioma ou religião. As Nações Unidas têm condenado o colonialismo e todas as práticas de segregação e discriminação a ele associadas, em qualquer forma e onde quer que existam, e que a Declaração sobre a Outorga da Independência aos Países e Povos Coloniais de 14 de dezembro de 1960 (Resolução 1514 (XV) da Assembleia Geral) afirmou e proclamou solenemente a necessidade de levá-las a um fim rápido e incondicional. A Declaração das Nações Unidas sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial de 20 de dezembro de 1963 (Resolução 1.904 (XVIII) da Assembleia Geral) afirma solenemente a necessidade de eliminar rapidamente a discriminação racial no mundo, em todas as suas formas e manifestações, e de assegurar a compreensão e o respeito à dignidade da pessoa humana. A discriminação entre as pessoas por motivo de raça, cor ou origem étnica é um obstáculo às relações amistosas e pacíficas entre as nações e é capaz de perturbar a paz e a segurança entre os povos e a harmonia de pessoas vivendo lado a lado, até dentro de um mesmo Estado. A existência de barreiras raciais repugna os ideais de qualquer sociedade humana.
Contudo, no âmbito do próprio MP paulista, foi percebido por inúmeros promotores e procuradores de Justiça que a vedação absoluta parece equivocada. É que, sem desobedecer a Constituição (ou qualquer norma internacional), o ANPP pode servir ao enfrentamento do racismo, isto é, pode ser socialmente recomendável a sua utilização como mais um método autocompositivo, visando, com isso, assegurar soluções adequadas aos conflitos e satisfazer as legítimas expectativas dos titulares dos diretos envolvidos, nos exatos termos da Resolução 118/14 do Conselho Nacional do Ministério Público.
Apesar da evolução da legislação antirracista brasileira no sentido de proteção das vítimas de racismo, a criminalização não foi capaz de prevenir práticas racistas que sequer têm sido objeto de eficiente persecução criminal. Com efeito, mesmo após 34 anos do início da vigência da Lei Caó (Lei 7.716, de 5 de janeiro de 1989), fenômenos como o genocídio da juventude negra, o feminicídio negro, a seletividade racial do sistema penal e o consequente encarceramento em massa de pessoas negras se perpetuam ao longo dos anos. Essas manifestações da necropolítica[1] antinegra evidenciam que – apesar da relevância do reconhecimento da necessidade de tutela penal do direito à não discriminação racial –, a esfera penal não é a mais adequada para a promoção dos direitos da população negra, mesmo porque se restringe a atingir condutas intersubjetivas, em nada contribuindo para a desestabilização das estruturas racistas.
Ademais, a não aplicação da legislação penal antirracista por parte do sistema de Justiça tem sido uma tônica, inclusive reconhecida, em 2016, pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), no célebre caso Simone André Diniz (nº 12.001[2]) – primeiro contencioso internacional contra o Estado brasileiro por violação de direitos humanos na seara da discriminação racial –, que considerou o nosso Poder Judiciário institucionalmente racista. Em seu relatório, a CIDH destaca a inoperância do sistema penal nesse campo[3] e afirma que, inobstante o avanço da ordem jurídica no que se refere à gradativa criminalização de atos de preconceito e discriminação racial, há resistência dos tribunais na aplicação da legislação pertinente. Desse modo, o racismo institucional resulta na condescendência da justiça brasileira com a prática do racismo, violando o direito das pessoas negras de não serem discriminadas e afetando seu acesso à justiça em busca de reparação, o que tem reflexos inclusive na esfera cível, muitas vezes inviabilizando eventuais ações de indenização por dano moral.
Embora haja quem defenda que um longo processo penal, por si só, já representa uma punição simbólica para o réu, é preciso recordar que também a vítima enfrenta essa mesma morosidade, na tentativa de ter acesso efetivo à justiça, terminando, na maior parte dos casos, condenada à injusta absolvição do seu agressor ou à responsabilização do réu sem qualquer reparação à vítima pelos danos (morais e/ou materiais) sofridos.
Recorde-se, nesse ponto, a importante pesquisa realizada pelo Laboratório de Análises Econômicas, Históricas, Sociais e Estatísticas das Relações Raciais (Laeser), entre 1º de janeiro de 2005 e 31 de dezembro de 2006, que constatou que vítimas de crimes de racismo perdem 57,7% dos casos, nos julgamentos em segunda instância.[4]
Nos poucos casos de condenação, as penas privativas de liberdade são substituídas por penas restritivas de direito, sem nenhuma atenção à reparação à vítima. Foi o que se constatou em pesquisa realizada no âmbito da Promotoria de Justiça de Combate ao Racismo e à Intolerância Religiosa do Ministério Público do Estado da Bahia, primeira desta natureza no país, instituída em 1997. Segundo o levamento – que analisou ações penais por crimes de racismo, com denúncias oferecidas entre 2016 e 2021 –, dos 82 processos penais apenas 15 foram concluídos, sendo que destes 5 geraram condenação – ou seja, 6% do total –, dentre os quais somente um resultou em reparação à vítima. [5]
Deve-se considerar, ainda, a morosidade da resposta repressiva – também constatada na supracitada pesquisa –[6], que seria “a concretização da vontade do constituinte ordinário no combate ao racismo”, como parece defender quem negligencia a conformidade do ANPP com os ditames constitucionais, com a efetiva tutela da não discriminação racial e, se bem manejado, com instrumentos de promoção da igualdade racial.
Nesse contexto, a principal questão que se coloca em relação ao ANPP nos crimes de racismo é se sua aplicação significaria um afastamento da tutela penal ou uma maior eficiência e celeridade desta, tendo em conta a já demonstrada ineficiência do processo penal como resposta. Ou seja, o Poder Judiciário, que sempre negou ao povo negro o seu direito constitucional à não discriminação racial por meio da tutela penal, agora manipula o argumento da gravidade e censurabilidade de práticas racistas para fomentar a persecução criminal, buscando proibir – ao arrepio da vigente legislação – a aplicação do ANPP, instrumento de justiça negocial hábil a concretizar direitos fundamentais por uma via não punitivista.
Assim, como já se afirmou em outra oportunidade:
“em contraposição ao entendimento de que a aplicação do ANPP é inconstitucional por resultar em proteção insuficiente – privilegiando pessoas que cometem crimes raciais com uma “seletividade invertida” (ou um direito à não criminalização) -, vê-se que, na prática, a opção pelo ANPP é opção por eficiência e celeridade na resposta penal aos crimes de racismo. A sua recusa representa a defesa de um simbolismo punitivista estéril. (…) Em síntese, pode-se dizer que, no Brasil, o déficit de resposta penal à prática de racismo não decorre da “pouca pena” e sim de aspectos – em especial, do próprio racismo institucional – que florescem no curso do processo e que, ao fim e ao cabo, inviabilizam a condenação. (VAZ, Lívia Sant’Anna Vaz. O acordo de não persecução penal nos casos de racismo, 2021).
Essa aposta no punitivismo está evidenciada na decisão da Segunda Turma do STF, no Habeas Corpus nº 222.599/SC, datada de 06/02/2023, que entendeu não ser possível a celebração do Acordo de Não Persecução Penal em crimes de racismo, sob o argumento de que a “despenalização” contraria as disposições constitucionais. Curioso é que o mérito do writ não se pautava na questão racial, tendo a decisão ultrapassado seus limites, inclusive desconsiderando a recente alteração legislativa produzida pela Lei 14.532/2023, que embora, em linhas gerais, tenha foco no recrudescimento penal nos crimes de racismo, não vedou a aplicação do ANPP para tais casos.
Essa sanha por uma “resposta simbólica” ignora que é o próprio punitivismo que sustenta o racismo estrutural, fortalecendo sua essência, via populismo penal e a partir da lógica do aprisionamento, que resulta em mais mortes negras – sobretudo, por violência policial – e encarceramento massivo racialmente seletivo. Dito de outro modo, a “manipulação antirracista” da Lei e Ordem por meio do punitivismo não garante efetivo enfrentamento ao racismo, quer numa perspectiva estrutural/institucional, quer numa perspectiva intersubjetiva, mesmo porque, neste último caso, das condenações penais não resultam prisões, apesar de ser esta a bandeira comumente levantada em defesa da criminalização e do aumento de penas.
Importar afirmar, ainda, que a simples e ilusória solução pela via da majoração da pena não garante a eficiência da dita tutela penal, uma vez que as mesmas vicissitudes que atualmente resultam na ausência de responsabilização continuarão presentes. Desse modo, levando em consideração que o oferecimento de ANPP não é direito subjetivo do investigado, cabendo, inicialmente, ao Ministério Público a apreciação no tocante à necessidade e suficiência para reprovação e prevenção do crime –, defende-se, aqui, que a aplicabilidade do acordo aos crimes de racismo deve ser analisada caso a caso, com observância dos critérios legais pertinentes.
Portanto, a aplicação de ANPP aos crimes de racismo não se contrapõe à reprovabilidade constitucional de práticas racistas, evidenciada pela imprescritibilidade e inafiançabilidade estabelecidas no art. 5º, XLII, da CF. Ao contrário, tal censurabilidade deve ser considerada quando da celebração do acordo, para assegurar que medidas previstas no ANPP estejam condizentes com o reconhecimento e necessidade de mitigação do racismo estrutural, voltando-se para a construção de um sistema de responsabilização antirracista que não compactue com o punitivismo.
Assim, como já defendido em outra ocasião (VAZ, 2021), a proposta do ANPP – sobretudo quando atende a “cláusulas mínimas” antirracistas – alinha a prática penal não (re)legitimante do racismo antinegro, em suas diversas dimensões, a uma pedagogia condizente com a promoção da igualdade racial, em termos de responsabilização.
Foi a partir desse posicionamento que o Conselho dos Procuradores e Promotores de Justiça com atuação na área Criminal (CONCRIM), do Ministério Público do Estado da Bahia, aprovou, em 01 de junho de 2022, por unanimidade, o ENUNCIADO nº 28, que estabelece:
“Nos crimes de racismo (inclusive injúria racial), a proposta de acordo de não persecução penal, além das condições dos incisos de I a V, do caput do art. 28 -A do CPP, deverá conter cláusula pertinente: I – à reparação mínima à vítima pelos danos morais e materiais decorrentes do crime, cujo valor deverá ser abatido em eventual condenação cível; II – à fixação, em sendo o caso, de valor mínimo de indenização por dano moral coletivo, destinando-se o valor correspondente para fundos ou ações específicos destinados ao enfrentamento ao racismo e/ou à promoção da igualdade racial, sem prejuízo de eventual ação civil pública, cujo valor da condenação deverá ser abatido do montante pago em decorrência do acordo; III – à prestação de serviço à comunidade, que consistirá em atribuições de tarefas gratuitas a serem realizadas em organizações ou instituições públicas ou privadas cuja principal atuação esteja voltada para o enfrentamento ao racismo e/ou à promoção da igualdade racial; IV – à participação do investigado em cursos ou grupos reflexivos de letramento racial, a serem realizados por organizações ou instituições públicas ou privadas cuja principal atuação esteja voltada para o enfrentamento ao racismo e/ou à promoção da igualdade racial.”
Dessa forma, se a realização de acordos processuais é expressão da atual tendência da justiça criminal, a luta antirracista no campo penal pode tê-lo como instrumento legítimo e eficaz. Com efeito, sem a demora e os custos inerentes ao processo penal, o ANPP, com mais rapidez e maior economia, sem criar campo fértil para desnecessária revitimização, pode, quando bem manejado, servir de modo suficiente para reprovação e prevenção do crime. Apenas deve-se cuidar para que, no ajuste, as cláusulas incorporem a perspectiva racial, ou seja, compreenda as relações de poder que levam à prática de atos racistas, enxergando as expectativas não só das vítimas, mas do grupo atingido pelo preconceito/discriminação racial. Nesse sentido, em crimes dessa natureza, parece importante, a despeito do silencio da lei, ouvir a vítima – como estabeleceu o Ato Normativo Conjunto nº 1, de 15 de agosto de 2022, do MP-BA, no § 8º do seu artigo 4º – para aferição dos danos sofridos, mesmo porque do racismo sempre decorre, pelo menos, dano moral à vítima, e para que suas expectativas de proteção sejam consideradas nas condições a serem estabelecidas pelo Ministério Público. O problema, desse modo, não está no cabimento do ANPP, mas dos ajustes que têm sido entabulados, alguns possivelmente não atentando para as peculiaridades dos crimes de racismo. A representação social de que acordos processuais são uma banalização da resposta é muito mais uma crítica às condições do acordo do que propriamente à possibilidade de se realizar acordos em si. Muitas vezes, estas representações sociais são reflexo de uma deriva punitivista que enxerga no encarceramento a única resposta possível ao conflito criminal, negligenciando o custo social e os riscos envolvidos na movimentação de um processo criminal. Portanto, cabe ao Ministério Público fazer uma autocrítica e assegurar que as condições previstas em tais acordos não sejam irrisórias e se harmonizem com a necessária proteção das vítimas, da população negra e da própria sociedade contra práticas racistas.
[1] MBEMBE, Achille. Necropolítica: biopoder, soberania, estado de exceção política da morte. Tradução de Renata Santini. São Paulo: N-1 Edições, 2018.
[2] CIDH – OEA, Relatório nº 66/06, Caso 12.001, mérito, Simone André Diniz, Brasil, 21 de outubro de 2006. Disponível em «http://www.cidh.org/annualrep/2006port/BRASIL.12001port.htm». Acesso em 2 de dezembro de 2021.
[3] De acordo com trecho da decisão de mérito emitida no Relatório nº 66, de 2006 – Caso 12.001, de 21 de outubro de 2006, “de 300 Boletins de Ocorrência analisados, de 1951 a 1997, nas cidades do Rio de Janeiro, São Paulo, Salvador e Porto Alegre, apenas 150 foram considerados como crime pelos delegados de polícia chegando ao estágio de inquérito policial. Desses, somente 40 foram encaminhados pelo Ministério Público para uma ação penal contra o discriminador, dos quais apenas nove – cinco em São Paulo e quatro no Rio Grande do Sul – chegaram a julgamento”. Disponível em «http://www.cidh.org/annualrep/2006port/BRASIL.12001port.htm». Acesso em 2 de dezembro de 2021.
[4] MENEZES, Maiá. Vítimas de racismo perdem 57,7% das ações. O Globo, 20 nov. 2008. Disponível em: https://www2.senado.leg.br/bdsf/bitstream/handle/ id/408706/noticia.htm?sequence=1&isAllowed=y. Acesso em: 5 out. 2021.
[5] AZEVEDO, Delina Santos. Racismo Institucional: uma análise dos processos de crimes e racismo judicializados na Comarca de Salvador (2016-2021). Pesquisa realizada no âmbito do Grupo de Pesquisa Eixo Racismo, instituído pelo Centro de Aperfeiçoamento de Estudos Funcionais (CEAF), do Ministério Público do Estado da Bahia, a ser publicada na Revista Captura Críptica da UFSC, Dossiê “Racismos: corpos, políticas, cidades, poderes e dominações em tempos de ódios”, v. 12, nº 1, 2023.
[6] Nesse aspecto, a pesquisa constatou que, das 15 ações penais concluídas, 6 tiveram a duração de 2 anos, 5, de 3 anos, 2 tramitaram por 5 anos, uma teve a duração de 4 anos e uma foi concluída em um ano.