A lei 14.365/2022, publicada em 03.06.2022, trouxe reflexos diretos e indiretos no Código de Processo Penal, bem como na legislação especial penal.
1. Dos reflexos no processo criminal
A Lei 14.365/2022 inseriu o art. 798-A ao CPP, estabelecendo a suspensão de prazos processuais no período que estabelece, bem como prevê exceções à suspensão:
Art. 798-A Suspende-se o curso do prazo processual nos dias compreendidos entre 20 de dezembro e 20 de janeiro, inclusive, salvo nos seguintes casos:
I – que envolvam réus presos, nos processos vinculados a essas prisões;
II – nos procedimentos regidos pela Lei nº 11.340, de 7 de agosto de 2006 (Lei Maria da Penha);
III – nas medidas consideradas urgentes, mediante despacho fundamentado do juízo competente.
Parágrafo único. Durante o período a que se refere o caput deste artigo, fica vedada a realização de audiências e de sessões de julgamento, salvo nas hipóteses dos incisos I, II e III do caput deste artigo.
O denominado período de recesso forense determina uma pausa em determinadas atividades da Justiça brasileira, algo já tradicional, mas que observa exceções devido a situações consideradas urgentes.
A situação de réus presos (art. 798-A, I, CPP) e, de modo geral, relacionadas à prisão, não se suspendem, dada a importância inerente ao direito de fundamental à liberdade. Assim, processos de conhecimento em que haja réu segregado, bem como os processos no campo da execução penal, possuem normal tramitação no período previsto na norma.
Na mesma linha, os procedimentos relacionados à Lei Maria da Penha mereceram atenção do legislador (art. 798-A, II, CPP), especialmente quando presentes a necessidade de medidas protetivas. A exceção guarda conformidade com o espírito protetivo do sistema de justiça que, considerada a necessária celeridade na adoção de providências para a tutela da mulher vítima de violência doméstica e familiar, admite laudos e prontuários médicos fornecidos por hospitais e postos de saúde como forma de demonstrar a materialidade delitiva (art. 12, § 3º da Lei 11.340/2006), bem como determina a priorização da realização do exame de corpo de delito (art. 158, parágrafo único, inciso I, CPP).
As medidas consideradas urgentes também tramitam normalmente durante o período de recesso (art. 798-A, III, CPP), sendo assim consideradas as que constituem medidas cautelares diversas da prisão, medidas cautelares probatórias e, especialmente, os meios especiais de obtenção de prova, demonstrados o fumus comissi delicti e o periculum in mora. Na mesma linha, preserva-se a tramitação de procedimentos e processos que possuem como objeto medidas cautelares prisionais, como a prisão temporária e preventiva, comprovadas as suas hipóteses de cabimento e, em especial, o fumus comissi delicti e o periculum libertatis.
2. Dos reflexos no Código de Processo Penal: (a) nova hipótese de autodefesa; (b) sigilo na cadeia de custódia
2.a) Nova hipótese de autodefesa para servidores vinculados às instituições do art. 144 da CF
De outro lado, mesmo que referida lei tenha alterado dispositivos do Estatuto da Ordem dos Advogados do Brasil (Lei 8906/1994) e, dentre eles, o art. 28, que trata das incompatibilidades do exercício da advocacia, ainda que em causa própria, percebem-se reflexos no âmbito do inquérito policial e do processo judicial.
Nos termos do art. 28, a advocacia é incompatível, mesmo em causa própria, com as seguintes atividades:
I – chefe do Poder Executivo e membros da Mesa do Poder Legislativo e seus substitutos legais;
II – membros de órgãos do Poder Judiciário, do Ministério Público, dos tribunais e conselhos de contas, dos juizados especiais, da justiça de paz, juízes classistas, bem como de todos os que exerçam função de julgamento em órgãos de deliberação coletiva da administração pública direta e indireta; (Vide ADIN 1.127-8)
III – ocupantes de cargos ou funções de direção em Órgãos da Administração Pública direta ou indireta, em suas fundações e em suas empresas controladas ou concessionárias de serviço público;
IV – ocupantes de cargos ou funções vinculados direta ou indiretamente a qualquer órgão do Poder Judiciário e os que exercem serviços notariais e de registro;
V – ocupantes de cargos ou funções vinculados direta ou indiretamente a atividade policial de qualquer natureza;
VI – militares de qualquer natureza, na ativa;
VII – ocupantes de cargos ou funções que tenham competência de lançamento, arrecadação ou fiscalização de tributos e contribuições parafiscais;
VIII – ocupantes de funções de direção e gerência em instituições financeiras, inclusive privadas.
Com a Lei 14.365/2022, foi introduzido o § 3º ao art. 28 estabelecendo exceções às vedações constantes nos incisos V e VI, a saber:
§ 3º As causas de incompatibilidade previstas nas hipóteses dos incisos V e VI do caput deste artigo não se aplicam ao exercício da advocacia em causa própria, estritamente para fins de defesa e tutela de direitos pessoais, desde que mediante inscrição especial na OAB, vedada a participação em sociedade de advogados. – grifamos.
Os incisos V e VI, que foram ressalvados pelo § 3º, permitiram que os ocupantes de cargos ou funções vinculados direta ou indiretamente a atividade policial de qualquer natureza e os militares de qualquer natureza, na ativa, pudesse advogar em causa própria, quando para fins de tutela de direitos pessoais, desde que mediante inscrição especial na OAB.
Ressalte-se, a alteração legislativa, de forma alguma, havia permitido a policiais e militares da ativa a possibilidade de cumular a advocacia com o exercício da função policial ou militar de forma irrestrita. Aqueles exercentes da atividade policial ou militar da ativa somente poderiam advogar em causa própria, sendo vedado o patrocínio de defesa ou tutela de direitos em favor de terceiros, o que constitui função destinada à advocacia. O mesmo § 3º enfatizou que a atuação é permitida estritamente para fins de defesa e tutela de direitos pessoais.
Os ocupantes de cargos ou funções vinculados direta ou indiretamente a atividade policial são os policiais civis, policiais federais, rodoviários federais, policiais penais (EC 104/2019) policiais legislativos e guardas municipais.
Em relação aos militares de qualquer natureza, na ativa, tem-se os policiais militares, bombeiros militares e os militares das Forças Armadas.
Outro ponto a referir é de que o dispositivo não trouxe qualquer limitação quanto à matéria ou instância em que advocacia em causa própria era permitida aos ocupantes de cargos ou funções vinculados direta ou indiretamente a atividade policial e ao militar de qualquer natureza da ativa atuar em juízo. Assim, esses legitimados poderiam tutelar seus interesses pessoais de natureza cível, penal, trabalhista, por exemplo, não se limitando à proteção de interesses decorrentes do exercício da profissão – neste caso, aliás, a maior utilidade que a norma apresentava. Poderiam também atuar tanto na esfera administrativa quanto judicial, desde que na tutela, estritamente, de direito próprio.
Assim, a possibilidade de atuação em causa própria foi admitida somente aos que possuem aprovação no exame da Ordem dos Advogados do Brasil, ou seja, aos licenciados em razão da função pública, e aos que, uma vez empossados sem nunca ter obtido a aprovação no exame da Ordem, se submeterem às respectivas provas e forem aprovados.
Contudo, é preciso referir que todas as inovações até então trazidas pela Lei 14.365/2022, que permitiram a advocacia em causa própria para ocupantes de cargos ou funções vinculados direta ou indiretamente a atividade policial de qualquer natureza, e militares de qualquer natureza, na ativa, foi considerada inconstitucional pelo Supremo Tribuna Federal quando do julgamento da ADI 7227 (2023). Os principais argumentos foram de que a declaração de invalidade dos §§ 3º e 4º do art. 28 do EOAB busca evitar privilégios de acesso a inquéritos e processos, desequilíbrio na relação processual, abusos, tráfico de influência e práticas que coloquem em risco a independência e a liberdade da advocacia.
2.b) Sigilo na cadeia de custódia
A cadeia de custódia consta regulamentada no art. 158-A do Código de Processo Penal, alterado pelo Pacote Anticrime (Lei. 13.964/2019).
A cadeia de custódia consiste em um procedimento segmentado em etapas, cada uma com suas finalidades, de modo que seja preservado o vestígio desde a sua identificação até o descarte.
Dentre essas etapas, consta a do reconhecimento, que é o ato de distinguir um elemento como de potencial interesse para a produção da prova pericial (art. 158-B, I, CPP) e a da fixação, que envolve a descrição detalhada do vestígio conforme se encontra no local de crime ou no corpo de delito.
Ocorre que nem todos os vestígios ou objetos apreendidos serão, necessariamente, objeto de perícia, o que não importa dizer que estão imunes a uma controlabilidade da origem da fonte de prova e o seu manuseio até que esteja à disposição daquele que realizará o seu exame, que poderá ser o perito, o juiz ou mesmo as partes.
A depender dos objetos que serão apreendidos na diligência de busca e apreensão, poderá ser inviabilizada a plena separação, in locu, daqueles elementos de interesse da investigação daqueles que não o são. Nesses casos, costuma-se realizar a apreensão de um determinado conjunto de elementos, como documentos e mídias, para posterior análise e separação pelos investigadores.
Para essas situações, o art. 7º, § 6º – D do Estatuto da OAB estabeleceu que no caso de inviabilidade técnica quanto à segregação da documentação, da mídia ou dos objetos não relacionados à investigação, em razão da sua natureza ou volume, no momento da execução da decisão judicial de apreensão ou de retirada do material, a cadeia de custódia preservará o sigilo do seu conteúdo, assegurada a presença do representante da OAB, nos termos dos §§ 6º-F e 6º-G deste artigo.
A regra possui o objetivo de evitar vazamento de informações sobre o teor de documentos em geral apreendidos quando da execução de busca e apreensão em escritório de advocacia, antes que se saiba a sua relação com a investigação ou o processo criminal. É que em razão de uma busca e apreensão em que não foram individualizados os elementos vinculados a determinada investigação, as autoridades investigantes terão conhecimento de assuntos acobertados pelo sigilo profissional existente entre o advogado e terceiros alheios ao objeto da persecução, havendo invasão à sua privacidade. Portanto, a fim de proteger a privacidade e a relação de boa-fé que rege a atividade do advogado e do seu cliente alheio à lide penal, é que deve ser assegurado o necessário sigilo.
Preservado, portanto, o direito à intimidade de terceiros que não se relacionam com a persecução em concreto, cabe à autoridade investigante avaliar se divulga ou não o teor de documentos e demais informações obtidas por meio da diligência, tudo sob sua responsabilidade. Não há que se entender, dessa forma, que a previsão legal tenha determinado qualquer espécie de sigilo absoluto quanto ao conteúdo do material apreendido, havendo que se realizar, com razão, um exame de pertinência em relação ao objeto da investigação criminal.
3. Dos reflexos no Código Penal e na Legislação Especial
3.1 Reflexos no Código Penal
A Lei 14365/2022 inseriu o § 6-I no art. 7º do Estatuto da OAB, conforme segue:
§ 6º-I. É vedado ao advogado efetuar colaboração premiada contra quem seja ou tenha sido seu cliente, e a inobservância disso importará em processo disciplinar, que poderá culminar com a aplicação do disposto no inciso III do caput do art. 35 desta Lei, sem prejuízo das penas previstas no art. 154 do Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940
Estabeleceu-se, no campo criminal, a responsabilização do advogado que firmar acordo de colaboração premiada contra quem tenha sido ou seja seu cliente.
Art. 154 – Revelar alguém, sem justa causa, segredo, de que tem ciência em razão de função, ministério, ofício ou profissão, e cuja revelação possa produzir dano a outrem:
Pena – detenção, de três meses a um ano, ou multa de um conto a dez contos de réis.
É importante referir que não incide no tipo penal o advogado que celebrar acordo de colaboração premiada contra aquele que nunca foi seu cliente, situação não prevista pelo art. 7º, § 6º-I.
A infração penal, processável mediante representação (art. 154, parágrafo único, CP) do ofendido, é considerada infração de menor potencial ofensivo, cabendo transação e suspensão condicional do processo.
3.2 Reflexos na Legislação Especial
O mesmo art. 7º, § 6-I do Estatuto da OAB proibiu a celebração do acordo de colaboração premiada por advogado, contra quem foi ou é seu cliente.
A ética que norteia a atuação da advocacia sempre impôs restrições no campo probatório aos advogados, em nome da preservação do sigilo profissional e, com isso, da relação de confiança entre o causídico e seu patrocinado.
Ao mesmo tempo em que o Código de Processo Penal, ao regulamentar a prova testemunhal, confere aos familiares a possibilidade de o ascendente ou descendente, o afim em linha reta, o cônjuge, ainda que desquitado, o irmão e o pai, a mãe, ou o filho adotivo do acusado, se recusar a depor (art. 206, CPP), salvo quando não for possível, por outro modo, obter-se ou integrar-se a prova do fato e de suas circunstâncias, determina a proibição de depor às pessoas que em razão de função, ministério, ofício ou profissão, devam guardar segredo, salvo se, desobrigadas pela parte interessada, quiserem dar o seu testemunho (art. 207, CPP)
Os advogados, por regra especial prevista no Estatuto da OAB, possuem a prerrogativa de recusar-se a depor, ainda que desobrigados por seus patrocinados, sobre fato relacionado com pessoa de quem seja ou foi advogado, mesmo quando autorizado ou solicitado pelo constituinte, bem como sobre fato que constitua sigilo profissional (art. 7º, XIX da Lei 8.906/1994.
Com a edição da Lei 14.365/2022, estabelece o art. 7º, § 6º, I do Estatuto da OAB, a vedação de o advogado efetuar colaboração premiada contra quem seja ou tenha sido seu cliente, e a inobservância disso importará em processo disciplinar, que poderá culminar com a aplicação do disposto no inciso III do caput do art. 35 desta Lei, sem prejuízo das penas previstas no art. 154 do Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940 (Código Penal).
Portanto, o advogado não poderá ser colaborador e, com mais ênfase, delator, de quem tenha sido ou seja seu cliente, influenciando na dinâmica da Lei 12.850/2013 e nas demais hipóteses em que se admite o instituto da colaboração premiada (ex: lei de drogas, de lavagem de capitais). Em caso de descumprimento desta vedação, tem-se a produção de prova ilícita por derivação, sendo considerados ilícitos todos os elementos de prova ou provas obtidos em razão da colaboração premiada celebrada com inobservância à proibição prevista no Estatuto da OAB, uma vez que estará caracterizada a violação do direito à privacidade e intimidade do delatado sobre assuntos e fatos sobre os quais repousam expectativa de sigilo. Foram violadas, portanto, normas de direito material, o que atrai a incidência da disciplina da ilicitude probatória, e não da ilegitimidade, que se resolve no campo das nulidades quando não observadas normas de direito processual.
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Artigo atualizado em março de 2023 em razão do julgamento da ADI 7227, que considerou inconstitucionais os dispositivos que permitiram a advocacia em causa própria para ocupantes de cargos ou funções vinculados direta ou indiretamente a atividade policial de qualquer natureza militares de qualquer natureza, na ativa.