Como determina o Código de Trânsito Brasileiro, o veículo será identificado obrigatoriamente por caracteres gravados no chassi ou no monobloco, reproduzidos em outras partes, conforme dispuser o CONTRAN (art. 114). A gravação deve ser feita pelo fabricante ou montador, de modo a identificar o veículo, seu fabricante e as suas características, além do ano de fabricação, que não poderá ser alterado. E regravações, quando necessárias, dependem de prévia autorização da autoridade executiva de trânsito e somente serão processadas por estabelecimento por ela credenciado, mediante a comprovação de propriedade do veículo, mantida a mesma identificação anterior, inclusive o ano de fabricação. Não bastasse, o CTB impõe a identificação externa do veículo por meio de placas dianteira e traseira (art. 115).
A correta identificação de veículos é de extrema importância para a organização do trânsito. A fiscalização sobre o pagamento de tributos, por exemplo, só é possível se baseada nos caracteres identificadores do veículo. Da mesma forma, na imensa maioria dos casos só é possível atribuir com precisão a responsabilidade sobre infrações de trânsito se o veículo está devidamente identificado. Mesmo no campo da responsabilidade criminal, muitas vezes a investigação se inicia pela identificação do veículo envolvido nos fatos.
O próprio CTB dispõe sobre punições administrativas contra quem conduz veículos com sinais identificadores alterados: multa e apreensão do bem (art. 230, inc. I). Mas isso não é suficiente, tendo em vista que sanciona somente o indivíduo surpreendido conduzindo o veículo em condições irregulares. É necessário, portanto, a intervenção do Direito Penal para coibir e punir o próprio ato de adulteração, que, aliás, é com frequência cometido por organizações criminosas no mesmo contexto de infrações como furto, roubo e receptação.
Na redação conferida pela Lei 9.426/96, o art. 311 do Código Penal se referia especificamente ao veículo automotor, e tinha como condutas típicas os atos de adulterar ou remarcar número de chassi ou qualquer sinal identificador de veículo automotor. Mas a tipificação nesses moldes vinha se mostrando insuficiente.
A Lei 14.562/23 ampliou as condutas puníveis na adulteração de sinal identificador de veículo. A propósito, começou pelo nomem iuris, que não mais se refere a veículo automotor, porque foram inseridos no tipo penal veículos que não pertencem a essa categoria. Comparemos as redações do tipo penal:
Vemos que, no caput, há mais uma conduta típica: suprimir. Além disso, há menção expressa a mais caracteres identificadores que podem ser adulterados – monobloco, motor, placa de identificação – e, como adiantamos, a outros veículos além dos automotores: elétricos, híbridos, reboques, semirreboques ou suas combinações.
A norma atual sana a controvérsia relativa à tipificação de adulterações cometidas em reboques e semirreboques. De acordo com o inciso I do art. 96 do CTB, quanto à tração os veículos são classificados em (a) automotor, (b) elétrico, (c) de propulsão humana, (d) de tração animal, (e) reboque ou semirreboque. O Anexo I do mesmo Código, por sua vez, traz as seguintes definições:
“VEÍCULO AUTOMOTOR – todo veículo a motor de propulsão que circule por seus próprios meios, e que serve normalmente para o transporte viário de pessoas e coisas, ou para a tração viária de veículos utilizados para o transporte de pessoas e coisas. O termo compreende os veículos conectados a uma linha elétrica e que não circulam sobre trilhos (ônibus elétrico).
REBOQUE – veículo destinado a ser engatado atrás de um veículo automotor.
SEMI-REBOQUE – veículo de um ou mais eixos que se apóia na sua unidade tratora ou é a ela ligado por meio de articulação”.
Vê-se, portanto, que reboques e semirreboques não podem ser considerados veículos automotores, pois, por definição, não circulam por seus próprios meios, nem tampouco podem ser considerados equipamentos, tendo em vista que a legislação de trânsito os trata como veículos com características próprias. Em razão disso, a adulteração e a remarcação de sinal identificador dessa espécie de veículo não se subsumiam ao art. 311 do CP, que tratava expressa e unicamente do veículo automotor. O princípio da reserva legal e a vedação à analogia in malam partem impediam que se estendesse a incidência do tipo penal a objeto material que não se inseria estritamente na definição legal. Neste sentido decidiu o STJ:
“Da análise da classificação proposta na Lei n. 9.503/97, que instituiu o Código de Trânsito Brasileiro, infere-se que veículos automotores e veículos do tipo reboque ou semirreboque são considerados categorias distintas, inclusive pelo próprio conceito que lhes é atribuído, já que o primeiro é dotado da aptidão de circular por seus próprios meios, ausente no segundo. Tal constatação impede a adequação típica da conduta prevista no aludido dispositivo do Código Penal à que se atribui ao paciente na exordial acusatória em apreço, em respeito ao princípio da legalidade estrita, previsto no artigo 1º do Estatuto Repressor, na sua dimensão da taxatividade.” (RHC 98.058/MG, Rel. Min. Laurita Vez, j. 24/09/2019).
Agora não há mais dúvidas de que esses veículos são objeto material do crime, pois estão expressos no tipo, em estrita obediência ao princípio da reserva legal.
Há, por outro lado, outras questões não abrangidas pelas alterações promovidas no caput do art. 311. Uma delas é a seguinte: é criminosa a alteração de placa com fita adesiva?
Para uns, como não se trata de adulteração concreta e definitiva com objetivo de fraudar a propriedade, o licenciamento ou o registro do veículo, trata-se de mera infração administrativa. Para outros, há crime, tendo em vista que a placa de um veículo, ao lado de outros sinais de identificação, é um sinal identificador, ou melhor, como estabelece o CTB (art. 115), um sinal externo de identificação. O fato de se tratar de uma alteração precária não afasta a gravidade do ato, que pode prejudicar a identificação do veículo. Pois bem, a nova redação do tipo penal se refere simplesmente a adulterar, remarcar ou suprimir caracteres da placa de identificação, o que nos mantém na mesma dúvida: a adulteração, remarcação ou supressão não definitiva constitui o crime?
Apesar de permanecer a dúvida ante as disposições literais do tipo penal, devemos destacar que tanto o STF quanto o STJ vêm reconhecendo a tipicidade dessa conduta:
“A conduta de adulterar a placa de veículo automotor mediante a colocação de fita adesiva é típica, nos termos do art. 311 do CP (…) O recorrente reiterava alegação de falsidade grosseira, percebida a olho nu, ocorrida apenas na placa traseira, e reafirmava que a adulteração visaria a burlar o rodízio de carros existente na municipalidade, a constituir mera irregularidade administrativa. O Colegiado pontuou que o bem jurídico protegido pela norma penal teria sido atingido. Destacou-se que o tipo penal não exigiria elemento subjetivo especial ou alguma intenção específica. Asseverou-se que a conduta do paciente objetivara frustrar a fiscalização, ou seja, os meios legítimos de controle do trânsito. Concluiu-se que as placas automotivas seriam consideradas sinais identificadores externos do veículo, também obrigatórios conforme o art. 115 do Código de Trânsito Brasileiro” (STF – RHC 116.371/DF, rel. Min. Gilmar Mendes, DJe 22/08/2013).
“A jurisprudência deste Superior Tribunal de Justiça firmou-se que a norma contida no art. 311 do Código Penal busca resguardar autenticidade dos sinais identificadores dos veículos automotores, sendo, pois, típica a simples conduta de alterar, com fita adesiva, a placa do automóvel, ainda que não caracterizada a finalidade específica de fraudar a fé pública.” (STJ – AgRg no REsp 2.009.836/MG, Rel. Min. João Batista Moreira (Desembargador Convocado Do TRF1, j. 20/03/2023)
Outra controvérsia não resolvida: a simples substituição de placas de um veículo pelas de outro (sem adulterar ou remarcar número) configura o crime? Novamente: se o tipo penal se refere apenas a adulterar, remarcar ou suprimir caracteres da placa, não se tipifica expressamente a substituição. Mas, também nesse caso, a jurisprudência do STJ firmou a orientação de que o fato é típico:
“Este Superior Tribunal de Justiça já se manifestou no sentido de que o agente que substitui as placas originais de veículo automotor por placas de outro veículo enquadra-se na conduta prevista no art. 311 do Código Penal, tendo em vista a adulteração dos sinais identificadores” (REsp 1.722.894/RJ, Rel. Min. Jorge Mussi, j. 17/05/2018).
Deve-se ressaltar, no entanto, que não é criminosa a utilização de placas reservadas fornecidas pelo departamento de trânsito para instalação em veículos utilizados por agentes públicos, normalmente em razão da função por eles exercida (por exemplo, placas fornecidas para equipar uma viatura descaracterizada da Polícia Civil durante investigação, a fim de que não seja descoberta) (STF – HC 86.424/SP, Rel. para acórdão Min. Gilmar Mendes, DJ 27/10/2006).
A nosso ver, a retirada das placas para evitar a identificação em radares, por exemplo, também é criminosa, pois se insere no núcleo típico suprimir.
A Lei 14.562/23 também inseriu no caput um elemento normativo: a conduta é criminosa se praticada sem autorização do órgão competente. Embora esse elemento não existisse na redação anterior do tipo penal, é evidente que não se puniam alterações efetuadas com a autorização do órgão competente. De fato, se alguém promove a remarcação de chassi seguindo o procedimento determinado pelo departamento de trânsito, não há em sua conduta o propósito de lesionar a fé pública. Na falta de dolo, o fato é atípico.
Há ainda novidades importantes no § 2º do art. 311, que teve dispositivos incluídos pela Lei 14.562/23. Incorre nas mesmas penas do caput:
I – o funcionário público que contribui para o licenciamento ou registro do veículo remarcado ou adulterado, fornecendo indevidamente material ou informação oficial: esta conduta era a única tipificada no § 2º antes da alteração legal. Cuida-se de crime próprio, que só pode ser praticado por funcionário público (assim definido no art. 327 do CP). O dolo, no caso, é a vontade consciente de contribuir para o licenciamento ou registro do veículo adulterado ou remarcado. Não se exige finalidade especial.
II – aquele que adquire, recebe, transporta, oculta, mantém em depósito, fabrica, fornece, a título oneroso ou gratuito, possui ou guarda maquinismo, aparelho, instrumento ou objeto especialmente destinado à falsificação e/ou adulteração de que trata o caput: tipifica-se neste inciso um crime de petrechos para a adulteração de sinal identificador de veículo, semelhantemente ao art. 291 do CP. O tipo relaciona os seguintes objetos materiais do crime: maquinismo: conjunto de peças que integram e fazem com que funcione o aparelho mecânico destinado à adulteração; aparelho: conjunto de peças ou utensílios organizados para adulterar sinais identificadores; instrumento: todo objeto que serve de ajuda à prática da adulteração; objeto especialmente destinado à adulteração, caso em que se mostra imprescindível a sua especial destinação.
A prova de que os petrechos podem ser destinados à adulteração depende de perícia. Subsiste o crime ainda que se conclua ser o objeto capaz de realizar apenas em parte o seu propósito.
Se o agente é surpreendido com os petrechos, e se constata que ele já promoveu a adulteração, o crime equiparado é absorvido pelo disposto no caput.
III – aquele que adquire, recebe, transporta, conduz, oculta, mantém em depósito, desmonta, monta, remonta, vende, expõe à venda, ou de qualquer forma utiliza, em proveito próprio ou alheio, veículo automotor, elétrico, híbrido, de reboque, semirreboque ou suas combinações ou partes, com número de chassi ou monobloco, placa de identificação ou qualquer sinal identificador veicular que devesse saber estar adulterado ou remarcado: o inciso III tipifica uma espécie de receptação, e com isso resolve uma antiga controvérsia: discutia-se qual crime praticava quem, por exemplo, adquirisse veículo ciente de que seu sinal de identificação havia sido adulterado. Para alguns, havia crime de receptação (art. 180 do CP); para outros, o fato era atípico. Com a Lei 14.562/23, a discussão está superada.
Note-se que o inciso III menciona a ciência a respeito da adulteração e da remarcação, mas não da supressão de sinal identificador. A depender das circunstâncias, essa omissão legal pode tornar o fato atípico. Conduzir um veículo cujas placas tenham sido suprimidas para evitar a identificação em um radar, por exemplo, não pode ser considerado crime, a não ser que o próprio condutor tenha praticado a supressão, caso em que sua conduta se subsume ao caput.
No que concerne ao elemento subjetivo, temos aqui um exemplo de falta de acuidade do legislador. Com efeito, a voluntariedade do tipo se estrutura na prática de uma das condutas sobre veículo cujo elemento identificador o agente “devesse saber estar adulterado ou remarcado”. Trata-se da mesma estrutura utilizada na receptação qualificada do art. 180, § 1º (e na receptação de animal do art. 180-A), que, todos sabem, é objeto de infindável debate doutrinário: “deve saber” indica que o crime admite apenas o dolo eventual, ou também o dolo direto?
Prevalece a orientação de que “sabe” está contido em “deve saber”, pois, se o legislador pretende punir mais severamente o agente que deveria ter conhecimento da origem criminosa do bem, é óbvia sua intenção em punir também aquele que tem conhecimento direto sobre a proveniência da coisa.
De acordo com o § 3º, qualifica-se o crime se as condutas dos incisos II e III do § 2º são cometidas no exercício de atividade comercial ou industrial. E, como dispõe o § 4º, equipara-se a atividade comercial, para esse efeito, qualquer forma de comércio irregular ou clandestino, inclusive aquele exercido em residência.
Tanto o § 3º quanto o § 4º são inspirados no tipo penal da receptação, qualificada quando alguém comete o crime no exercício de atividade comercial ou industrial, ainda que o faça em comércio irregular ou clandestino, inclusive exercido em residência (art. 180, §§ 1º e 2º).
A forma qualificada é um crime próprio, que somente pode ser praticado por quem exerce atividade comercial ou industrial (razão do rigorismo da pena).