A dependência econômica de mulheres em situação de violência é um fator de vulnerabilidade e relevante fator de risco de morte. Homens agressores, em regra, isolam suas parceiras e, quando não as impedem de trabalhar, controlam as finanças da família.
Muitas mulheres permanecem em relações abusivas porque não têm condições econômicas de subsistência própria e de seus filhos.
Na Pesquisa Visível e Invisível 3ª edição constatou-se que, no período da pandemia, houve 50% de agravamento da violência para mulheres que estavam em relações abusivas e a ausência de autonomia financeira foi o principal fator de vulnerabilidade indicado[1].
No Formulário Nacional de Avaliação de Risco (FONAR) há questionamentos específicos quanto à dependência econômica da vítima em relação ao agressor e necessidade de abrigamento (Bloco IV), justamente porque a mulher pode necessitar de socorro imediato em local seguro ou apoio econômico para sair da relação violenta.
A Lei Maria da Penha traz um conceito amplo de violência patrimonial com referência expressa à privação de recursos necessários à subsistência, nos seguintes termos:
Art. 7º, IV – violência patrimonial, entendida como qualquer conduta que configure retenção, subtração, destruição parcial ou total de seus objetos, instrumentos de trabalho, documentos pessoais, bens, valores e direitos ou recursos econômicos, incluindo os destinados a satisfazer suas necessidades; (grifo nosso)
Há, ainda, as medidas protetivas de caráter patrimonial previstas no artigo 24: restituição de bens indevidamente subtraídos pelo agressor à ofendida; proibição temporária para a celebração de atos e contratos de compra, venda e locação de propriedade em comum, salvo expressa autorização judicial; suspensão das procurações conferidas pela ofendida ao agressor; prestação de caução provisória, mediante depósito judicial, por perdas e danos materiais decorrentes da prática de violência doméstica e familiar contra a ofendida[2].
Apesar dessas previsões, raramente as medidas patrimoniais são concedidas. Seja por ausência de elementos suficientes, seja em razão da complexidade da causa, seja porque a questão já está sendo discutida no juízo cível.
Assim, no momento em que a mulher em situação de violência opta por romper a relação, muitas vezes não tem nenhum lugar para ir. A situação se agrava quando se trata de mulheres que não contam com nenhum tipo de apoio familiar ou vivem em exclusão social.
Sair de casa pode significar viver, mas, para isso, a mulher deve ter abrigo, um lugar para ir. Um começo seria um abrigo. Contudo, a escassez de casas-abrigo no Brasil escancara a deficiência do sistema de proteção projetado pela Lei Maria da Penha. Estudo realizado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), em 2018, somente em 2,4% dos municípios brasileiros estavam equipados com casas-abrigo, sendo 134 administradas pelos próprios municípios, e 43 pelos estados.
As dificuldades de implantação e existência das casas-abrigo atreladas a questão orçamentária e garantia de sigilo e segurança, determinaram a inserção de outras políticas alternativas a esta demanda. O auxílio aluguel aparece como mais uma.
A Lei 14.674/23 criou uma nova medida protetiva de urgência para a vítima, inserindo-a no artigo 23:
Art. 23 – Poderá o juiz, quando necessário, sem prejuízo de outras medidas:
VI – conceder à ofendida auxílio-aluguel, com valor fixado em função de sua situação de vulnerabilidade social e econômica, por período não superior a 6 (seis) meses.”
O benefício auxílio-aluguel foi alçado à categoria de medida protetiva de urgência e, portanto, segue a normativa prevista na Lei Maria da Penha. É o estado brasileiro cumprindo seu papel e seus deveres assumidos no âmbito internacional. Analisando a jurisprudência da Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), percebemos decisões várias reconhecendo, em especial nesse tipo de violência, os seguintes deveres do Estado (dentre outros):
a) dever de prevenir e sancionar. A CIDH enfatiza o dever dos Estados de prevenir, investigar e sancionar atos de violência doméstica. Isso inclui a obrigação de adotar medidas legislativas e administrativas eficazes para evitar a impunidade de agressores e a continuidade das agressões.
b) dever de proteger. Os Estados têm a obrigação de tomar medidas para proteger as vítimas de violência doméstica. Isso pode envolver a emissão de ordens de restrição, o fornecimento de abrigos seguros e o treinamento de pessoal de aplicação da lei.
c) dever de assistir. Além de proteger, os Estados também devem oferecer assistência adequada às vítimas de violência doméstica. Isso pode incluir serviços de apoio psicológico, orientação jurídica, cuidados médicos e programas de reintegração social.
d) dever de não discriminação. A CIDH destaca sempre a importância de tratar todas as vítimas de violência doméstica com igualdade, independentemente de gênero, orientação sexual, raça, etnia ou qualquer outra característica pessoal. A discriminação contra as vítimas é inaceitável.
Com as alterações introduzidas pela Lei 14.550/2023, pode ser deferido o auxílio aluguel mesmo que a vítima não registre BO, a violência não precisa estar tipificada e não há necessidade de que tenha sido instaurado inquérito ou processo criminal para que a vítima tenha direito ao benefício. Constatada a situação de violência, nos autos da medida protetiva de urgência, a autoridade determinará a inclusão da vítima em programa que lhe assegure pagamento.
Essa medida protetiva pode deferida por Vara de Violência Doméstica ou por qualquer Juízo. Após a alteração do artigo 19 pela Lei 14.550/2023, as medidas protetivas não estão mais restritas aos âmbitos afetivo, doméstico e familiar e basta que exista uma situação de risco para que a proteção seja determinada. Assim, havendo violência contra a mulher motivada por gênero, qualquer autoridade judiciária poderá determinar o pagamento do auxílio-aluguel à vítima e seus dependentes. O retorno da mulher junto ao convívio do agressor deverá ser comunicado imediatamente, constituindo motivo para a revogação ou suspensão do benefício. Por cautela, se a comunicação não partir da mulher vítima, como já ocorre em relação às demais medidas, e seguindo entendimento do STJ, a vítima deve ser ouvida previamente à revogação. Até porque é possível que o autor tenha invadido sua residência e esteja ela em situação de risco. Nesse caso, o beneficio poderá ser mantido e o autor afastado.
Não se trata de um benefício algo novo. Em vários Municípios e Estados já havia leis instituindo o pagamento de auxilio-aluguel ou auxilio-hospedagem para mulheres em situação de violência. Em São Paulo, por exemplo, o benefício auxílio aluguel foi instituído no Município de São Paulo pela Lei 17.320/2020 e no Estado de São Paulo pela Lei 17.626/2023. Na cidade de São Paulo, a lei foi regulamentada pelo Decreto 60.111/2021 e Portaria 028/SMDHC/2021 e o benefício já está sendo pago.
Há aspectos positivos e negativos na nova lei.
Quanto aos aspectos positivos, o fato de o auxílio-aluguel constar da Lei Maria da Penha faz com que exista uniformidade e obrigatoriedade no atendimento às vítimas, que não dependem mais de uma normativa local.
A lei prevê o pagamento de um valor proporcional, ou seja, não se trata de um valor fixo, como tem acontecido em muitos locais onde o benefício já foi implementado. E esse valor será fixado de acordo com a vulnerabilidade econômica e social da vítima.
Esse critério mais amplo leva em conta aspectos como moradia, exclusão social, escolaridade, dificuldade de acesso a direitos. Trata-se, assim, de uma importante previsão que vai além da análise da situação financeira.
Mas a nova lei não é isenta de críticas.
Está previsto um prazo máximo de 06 meses, que é manifestamente insuficiente para que uma mulher recomece sua vida de uma forma digna. Após um relacionamento de violência e submissão, é praticamente impossível que alguém consiga se recuperar psicológica e economicamente em prazo tão exíguo. Em São Paulo, por exemplo, há previsão do benefício por 12 meses, prorrogáveis por igual período (que coincide com o período de “luto” pós vida de violência, variável de 01 a 02 anos em média).
A necessidade de judicialização como via única para o benefício também é algo que pode dificultar o acesso das mulheres. Muitas vítimas de violência não buscam a Justiça por motivos vários, seja medo, desconfiança, receio de exposição, descrença etc., e condicionar o benefício a uma decisão judicial pode ser um fator se não impeditivo, no mínimo complicador. Esse questionamento já existiu no Município de São Paulo e acabou superado.
A Lei Municipal 17.320/2020 condicionava o auxílio aluguel ao deferimento de medidas protetivas. Após intensa mobilização dos movimentos sociais e serviços, foi publicada a Lei 17.579/2021, que passou a prever duas possibilidades para recebimento: medidas protetivas ou encaminhamento pela rede de serviços. Assim, consta do art. 2º, I, da Lei Municipal, que o auxílio aluguel para mulheres em situação de violência será concedido com “pedido encaminhado, por meio de parecer técnico, pelas equipes municipais de atendimento socioassistencial, ou, alternativamente, medida protetiva de urgência” (grifo nosso).
O auxílio-aluguel será custeado por estados e municípios por meio do Sistema Único de Assistência Social (SUAS). Para tanto, a depende de regulamentação quanto a critérios, valores e outros aspectos. De qualquer modo, sopesadas as críticas, é uma importante evolução.
Em regra, mulheres morrem dentro de casa, nas mãos de seus parceiros. Uma casa segura, assim, pode significar não só um recomeço, mas a possibilidade de vida. O auxílio-aluguel faz parte desse recomeço.
Contudo, se aparecer como medida isolada, não resolve. Num cenário ideal (padrão ouro) de atendimento, a mulher beneficiada deverá ser acompanhada por equipe técnica capaz de assegurar sua a integração às ações da rede de enfrentamento à violência doméstica.
[1] FORUM BRASILEIRO DE SEGURANÇA PÚBLICA. Visível e Invisível. 3ª ed. Disponível em: file:///C:/Users/Val%C3%A9ria/Desktop/2023/1.%20ESTATISTICAS/infografico-visivel-e-invisivel-3ed-2021-v3-3.pdf. Acesso em: 13 set. 2023.
[2] Vale lembrar que os Estados Unidos têm programas federais e estaduais que oferecem assistência a vítimas de violência doméstica, que pode incluir ajuda com moradia, como subsídios de aluguel. O Reino Unido possui programas de apoio a vítimas de violência doméstica que podem incluir ajuda com moradia, como realocação para casas seguras. O Canadá oferece programas provinciais e territoriais de apoio a vítimas de violência que podem incluir assistência para encontrar moradia segura. A Austrália tem programas de assistência a vítimas de violência que podem incluir apoio financeiro para encontrar moradia segura. A Índia implementou o esquema “One Stop Centre” (OSC) em várias cidades, que oferece abrigo temporário e apoio às vítimas de violência doméstica. A França oferece alojamento de emergência e proteção a mulheres vítimas de violência doméstica por meio de organizações governamentais e não governamentais.