O lugar mais perigoso para mulheres, crianças, adolescentes e demais pessoas vulneráveis não é a rua deserta, mas a sua própria casa. Esse local, considerado pela Constituição Federal como asilo inviolável, é palco constante das maiores e mais severas violações, praticadas em regra por pessoas que têm a confiança das vítimas ou têm algum poder sobre elas.
Os números no Brasil trazem um triste retrato dessa violência no ambiente doméstico e familiar: 50.962 mulheres agredidas por dia em 2022, o que equivale a um estádio de futebol repleto de vítimas, sendo que 53% dos casos ocorreram dentro de casa, em 58% dos casos os agressores eram cônjuges, companheiros, namorados atuais ou pretéritos e 8,4% genitores (Fórum Brasileiro de Segurança Pública, Visível e Invisível 4ª ed). No mesmo ano, ocorreram 74.930 casos de estupro, sendo 68,3% na residência da vítima, figurando em 61,4% vítimas crianças e adolescentes de até 13 anos, dentre as quais 88,7% do sexo feminino (Fórum Brasileiro de Segurança Pública. Segurança em Números 2023).
A Constituição Federal prevê que a lei criará mecanismos para coibir a violência no âmbito da família (art. 226, §8º) e, ao mesmo tempo, prevê a prioridade absoluta da criança, adolescente e jovem como forma de evitar qualquer forma de violência (art. 227 CF). Nesse contexto, a prevenção e a repressão da violência tem uma disciplina especial.
Dentro desse espírito, a Lei 14.713, de 30 de outubro de 2023, altera os Códigos Civil e de Processo Civil para prever que o risco de violência doméstica e familiar configura causa impeditiva para a guarda compartilhada e impõe ao juiz o dever de verificar essa situação. Em síntese, são duas alterações:
– Código Civil: alteração do art. 1584, §2º (destacada):
§ 2º Quando não houver acordo entre a mãe e o pai quanto à guarda do filho, encontrando-se ambos os genitores aptos a exercer o poder familiar, será aplicada a guarda compartilhada, salvo se um dos genitores declarar ao magistrado que não deseja a guarda da criança ou do adolescente ou quando houver elementos que evidenciem a probabilidade de risco de violência doméstica ou familiar”
– Código de Processo Civil – art. 699 – A (novo):
“Art. 699-A. Nas ações de guarda, antes de iniciada a audiência de mediação e conciliação de que trata o art. 695 deste Código, o juiz indagará às partes e ao Ministério Público se há risco de violência doméstica ou familiar, fixando o prazo de 5 (cinco) dias para a apresentação de prova ou de indícios pertinentes.”
O legislador, ao alterar o Código Civil, criou uma exceção para a regra da guarda compartilhada, mais precisamente quando presente a probabilidade de risco de violência doméstica e familiar. Fala-se em “probabilidade de risco”, o que significa ser dispensável a efetiva ocorrência da violência ou mesmo a certeza do seu risco. Deve ser provável, revelando alta chance de acontecer ou ser real, embora não seja garantido. A probabilidade de que algo ocorra é maior do que a probabilidade de que não ocorra. É a avaliação da chance de um evento ter realmente acontecido ou que pode acontecer com base nas evidências apresentadas. A probabilidade aqui é legal, portanto, subjetiva e baseada na persuasão.
A nova disposição tem como objeto não qualquer violência, mas aquela que, em conformidade com a Constituição Federal, documentos internacionais e legislação ordinária, protege pessoas que estão em situação de vulnerabilidade presumida pela norma no contexto íntimo: mulher, criança, adolescente, pessoa idosa, pessoa com deficiência e enfermo.
No que se refere a criança e adolescente, o ato de violência pode ter sido direcionado diretamente à vítima, como ocorre nos casos de lesão, maus-tratos e tortura, ou contra alguém de sua família, como a genitora. Vale lembrar que no art. 4º, II, “c”, da Lei de Depoimento Especial (Lei 13.431/17) consta expressamente que configura violência psicológica “qualquer conduta que exponha a criança ou o adolescente, direta ou indiretamente, a crime violento contra membro de sua família ou de sua rede de apoio, independentemente do ambiente em que cometido, particularmente quando isto a torna testemunha”.
Não é incomum que homens violentos pratiquem a agressão contra os filhos como forma de atingir a ex-parceira. Trata-se da chamada violência vicária, amplamente noticiada em outros países, mas que no Brasil, por ora, não encontra uma clara definição legal ou doutrinária. No México, em 2022, a Lei de Acesso das Mulheres a uma Vida Livre de Violência foi alterada para se incluir especificamente a violência vicária como uma das formas de violência contra mulheres, assim definida:
Art. 8, Ter: A violência vicária é o ato ou omissão que gera afetação ou dano físico, psicológico, emocional, patrimonial ou de qualquer outra índole a um descendente, ascendente, ou dependente econômico da vítima, cometido por parte de quem mantenha ou tenha mantido uma relação afetiva ou sentimental com a mesma, e cujo objetivo seja causar um dano emocional, psicológico, patrimonial ou de outra índole à vítima; e que se expressa exemplificativamente por condutas como ameaças verbais, rapto de filhas e filhos, imputação falsa de atos criminosos, demora processual injustificada ou qualquer outra situação que seja utilizada para prejudicar a mulher.[1] (grifo nosso).
Diante desse quadro, a interpretação da nova Lei 14.713/2023 deve ser adotada com toda a cautela, pois no Brasil, além de não haver a previsão de violência vicária, há a Lei de Alienação Parental que tem fundamento na teoria misógina de Richard Gardner, usada, não raras vezes, como instrumento para silenciar mulheres que noticiam violências sofridas por elas ou seus filhos. Esse seu uso desvirtuado não passou despercebido. O Protocolo para Julgamento com Perspectiva de Gênero, de observância obrigatória por parte do Poder Judiciário, nos exatos termos da Resolução nº 492 do CNJ, alerta que a referida lei (alienação parental) tem sido manejada como uma estratégia por parte de abusadores[2]:
CNJ- d.1. Alienação parental
Em relação à guarda das filhas e dos filhos, a alegação de alienação parental tem sido estratégia bastante utilizada por parte de homens que cometeram agressões e abusos contra suas ex-companheiras e filhos(as), para enfraquecer denúncias de violências e buscar a reaproximação ou até a guarda unilateral da criança ou do adolescente.
A ONU também emitiu carta ao Brasil solicitando ao Governo a revogação da lei, na qual consta que “os tribunais de família rejeitam regularmente as alegações de abuso sexual das crianças apresentadas pelas mães contra os seus pais ou padrastos, desacreditando e punindo as mães, incluindo através da perda dos direitos de custódia dos seus filhos” e “as consequências perturbadoras para as mães, muitas das quais não tendo outra opção senão permanecer em silêncio relativamente ao abuso dos seus filhos pelo seu parceiro ou antigo parceiro, face ao medo de serem acusadas de alienação parental e de perderem direitos de custódia”[3].
No que tange às mulheres em situação de violência nos contextos afetivo, doméstico e familiar, a presunção (ainda que relativa) de vulnerabilidade decorre da própria Lei Maria da Penha e foi reafirmada pelos Tribunais Superiores em importantes julgamentos. O Supremo Tribunal Federal reconheceu a constitucionalidade da Lei Maria da Penha (que tem incidência também nas Varas de Família) em ações de controle concentrado de constitucionalidade (ADC 19 e ADI 4.424). Por sua vez, o STJ conheceu a existência de dano presumido (“in re ipsa”) contra a mulher, salientando que “não se mostra razoável, a esse fim, a exigência de instrução probatória acerca do dano psíquico, do grau de humilhação, da diminuição da autoestima etc., se a própria conduta criminosa empregada pelo agressor já está imbuída de desonra, descrédito e menosprezo à dignidade e ao valor da mulher como pessoa”(REsp 1643051/MS)[4].
Além da alteração relacionada à guarda compartilhada, a nova lei alterou o procedimento previsto para as ações de guarda. Agora, consta expressamente do CPC que antes da audiência de conciliação ou mediação, a autoridade judiciária deverá indagar as partes e ao Ministério Público “se há risco de violência doméstica ou familiar, fixando o prazo de 05 dias para a apresentação de prova ou de indícios pertinentes”.
Trata-se de norma processual de incidência imediata e observância obrigatória, em que se adotam as expressões “o juiz indagará”, ou seja, não há margem de liberdade para que a autoridade judiciária omita tal verificação do risco. O questionamento passa a ser regra e, inclusive, adotado em outros momentos processuais caso exista ou surja a notícia de violência.
Há muito se questiona a obrigatoriedade da audiência de conciliação nas situações de violência contra mulheres. Thimotie Aragon Heemann refere que o art. 695 CPC deve ser submetido ao controle de convencionalidade, pois impor às mulheres a participação nessa audiência significa “a concessão por parte do Estado-juiz de espaço institucional apto à geminação de situações traumatizantes e que violam o direito à integridade física e psicológica de mulheres vítimas de violência doméstica”[5].
O risco de violência doméstica e familiar pode ser aferido de várias formas, tais como:
. Formulário Nacional de Avaliação de Risco (FONAR)
. existência de investigação ou processo em andamento por violências praticadas contra pessoas vulneráveis (mulheres em situação de violência, crianças ou adolescentes, pessoas com deficiência, idosos);
. existência de decisão concedendo medidas protetivas com base na Lei Maria da Penha, Lei Henry Borel ou outro estatuto protetivo;
. relatório da rede de atendimento, Conselho Tutelar ou outro órgão noticiando situação de risco de violência.
De se notar que a providência deve ser adotada antes de se tentar a conciliação das partes, evitando ato judicial que possa importar em agravamento da situação de perigo.
A prova será pré-constituída e pode consistir em evidência direta ou indireta (“indícios”), cujo valor será aferido pela autoridade no caso concreto. A definição de indícios vem tratada no art. 239 do CPP. De acordo com Vincenzo Manzini, citado por Magalhães Noronha, ensina que “o indício é uma circunstância certa, da qual se pode tirar, por indução lógica, uma conclusão acerca da subsistência ou insubsistência de um fato a provar” (Curso de direito processual penal, 1983, p. 130). Lapidar, nesse aspecto, o ensinamento de Mittermayer, para quem “um indício é um fato em relação tão precisa com um outro fato que de um o juiz chega ao outro por uma conclusão toda natural. É, pois, preciso que haja na causa dois fatos, um verificado, outro não estabelecido, e que se trata de demonstrar, raciocinando do conhecido para o desconhecido” (Tratado da prova em matéria criminal, 1996, p. 323).
Trata-se, outrossim, de uma prova indireta ou crítica, pois depende de um raciocínio lógico, formulado pelo intérprete, para que se chegue a alguma conclusão. Nisso difere da chamada prova direta ou histórica, na qual o Juiz tem o fato diante de si, revelado por uma testemunha, por uma perícia ou através da confissão do réu, cabendo-lhe, apenas, a análise quanto à credibilidade de tal prova, sem que necessite recorrer a nenhuma construção lógica.
Depende, portanto, de um silogismo, isto é, partindo-se do geral chega-se ao particular (daí a crítica da doutrina quanto à expressão indução utilizada pelo legislador, quando o mais adequado seria dedução).
É sabido que nosso legislador adotou o sistema do livre convencimento quanto à apreciação da prova, de modo que rejeitou qualquer espécie de hierarquia, conforme se observa da simples leitura do art. 157 do CPP, bem como da Exposição de Motivos do Código (item VII). Por conta disso, tem a prova indiciária, indiscutivelmente, valor, senão idêntico, ao menos semelhante ao conferido a qualquer uma outra prova. Daí observar Frederico Marques que “pelos indícios ou pela prova direta chega-se, de igual modo, à declaração e afirmativa da existência de um fato ou acontecimento histórico relevante para a ordem jurídico-penal. O que os distingue fundamentalmente é o modo ou forma de revelarem esse fato ou acontecimento; enquanto na prova histórica há a revelação direta do factum probandum, nos indícios essa representação é indireta e só adquire corpo através de construção lógico-crítica” (Manual de Direito Processo Civil. 5ª. ed. São Paulo: Saraiva, 1977, p. 345). Na mesma esteira é o ensinamento trazido por Espínola Filho, ao ressaltar que “os indícios e circunstâncias quando bem concatenados, não abalados nem desfeitos por outros indícios ou outras circunstâncias geram no espírito do julgador a certeza (certeza, não absoluta, que esta só existe no terreno das abstrações), a convicção segura e fundada do fato ‘probando’. A prova indiciária por ser de difícil apuração, para a qual terá o julgador de fazer uma operação de lógica, cuidadosa, deduzindo e raciocinando de fatos e circunstâncias conhecidas para chegar à afirmação ou à negação de certo resultado, que é o fato desconhecido – é das melhores provas que a lei investe o julgador” (Código de Processo Penal brasileiro anotado’, vol. II, 5ª. ed, p. 178).
Trata-se, em suma, de importante alteração legislativa, que traz um novo olhar para os processos em que muitas vezes a disputa pela guarda de filhos e filhas figura oculta uma grave violência e coloca em risco pessoas que deveriam ser protegidas. Que a lei seja aplicada – e bem compreendida – para não se transformar em um instrumento de violação – ao invés de preservação – de direitos.
[1] Artículo 8 Ter. La Violencia Vicaria es el acto u omisión que genera afectación o daño físico, psicológico, emocional, patrimonial o de cualquier otra índole a un descendiente, ascendiente o dependiente económico de la víctima, cometido por parte de quien mantenga o mantuvo una relación afectiva o sentimental con la misma, y cuyo objeto sea el causar un menoscabo emocional, psicológico, patrimonial o de otra índole hacia la víctima; y que se expresa de manera enunciativa, más no limitativa, a través de conductas tales como las amenazas verbales, el aleccionamiento, la sustracción de sus hijas e hijos, la imputación de hechos delictuosos falsos en donde se demuestre la dilación procesal injustificada, o cualquier otra que sea utilizada para dañar a la mujer.
[2] CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA. Protocolo para julgamento com perspectiva de gênero 2021. Brasília: Enfam, 2021, p. 96.
[3]NAÇÕES UNIDAS. Brasil: Peritos da ONU apelam ao novo governo para combater a violência contra as mulheres e meninas e revogar a lei da alienação parental. Disponível em: https://acnudh.org/pt-br/brasil-peritos-da-onu-apelam-ao-novo-governo-para-combater-a-violencia-contra-as-mulheres-e-meninas-e-revogar-a-lei-da-alienacao-parental/. Acesso em: 05 out. 2023.
[4] STJ – REsp: 1643051 MS 2016/0325967-4, Relator: Ministro ROGERIO SCHIETTI CRUZ, Data de Julgamento: 28/02/2018, S3 – TERCEIRA SEÇÃO, Data de Publicação: DJe 08/03/2018 RJTJRS vol. 309 p. 235 RMPRJ vol. 71 p. 463.
[5] HEEMANN, Thimotie Aragon. Violência doméstica: ações de família e dispensa da audiência de conciliação. Disponível em : https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/direito-dos-grupos-vulneraveis/violencia-domestica-acoes-de-familia-e-dispensa-da-audiencia-de-conciliacao-16102023. Acesso em: 31 out 2023.