Tem sido recorrente dizer que o mundo vem passando por grandes transformações nas décadas mais recentes, especialmente em razão do desenvolvimento avassalador da tecnologia, e que estas impactam todas as esferas da vida.
Não seria diferente no que diz respeito à atividade jurisdicional prestada pelo Poder Judiciário, igualmente impactada pelas crescentes inovações tecnológicas.
No universo das relações de trabalho costumam-se identificar algumas fases notórias em relação aos modelos de organização do trabalho.
Ao longo da maior parte do século XX prevaleceu o modelo de trabalho fordista (relativo a Henry Ford), caracterizado como um trabalho realizado em grandes parques industriais, envolvendo milhares de pessoas, geralmente desenvolvendo trabalhos repetitivos em escala e proporção de grande produtividade.
No começo do século XXI, o cenário laboral se modifica bastante, justamente por conta das novas tecnologias da informação e comunicação. O trabalho industrial cede espaço e importância a diversas outras formas de ocupação, sobretudo os crescentes trabalhos desenvolvidos por plataformas digitais, onde a influência da robotização, da IA (Inteligência Artificial) e da ampla utilização de algoritmos, com redução da proporção de intervenção humana, são os pontos marcantes.
Esse movimento de transformação da organização das relações de trabalho parece ter alcançado também a atividade judicial, com as devidas ressalvas que a comparação exige.
Nos anos 1990 e 2000, até um pouco adiante, era comum encontrar no ambiente judiciário uma forma de racionalidade do trabalho eminentemente fordista, com reprodução em larga escala de decisões judiciais iguais ou muito similares (em matéria tributária, previdenciária, sobre FGTS, entre outras), perpetradas em acórdãos ou, mais adiante, em decisões monocráticas dos relatores e relatoras nos Tribunais do país.
Esse modelo redundou, em 2015, na estrutura do atual Código de Processo Civil, pautado fortemente na ideia de precedentes vinculantes, conforme previsão dos artigos 927e 928 (para maior aprofundamento do tema, vide nosso MANUAL DOS RECURSOS CÍVEIS, 10ª edição, Salvador: Juspodivm, 2025).
O modelo judicial atual, passados 10 anos da vigência do CPC e observada nova onda de inovações tecnológicas, agora evidenciada pela utilização massiva de IA, parece ter ido além do modelo judicial fordista indicado como prevalecente em período anterior.
Tenho sentido que caminhamos para um modelo plataformizado de prestação da atividade jurisdicional, onde a perspectiva (necessária) de racionalidade e eficiência acaba sobrepujando elementos importantes que são derivados do princípio do devido processo legal.
Parece estar em curso um modelo de prestação judicial com mínima intervenção do humano, a ser estruturado em fluxos robotizados prontos e inalteráveis mediante petição fundamentada em argumentos jurídicos. Nesse formato, geralmente ocorre a invisibilidade dos aspectos mais relevantes do caso concreto e, mais ainda, da vida humana envolvida naquela ação judicial.
Nada muito distante do que qualquer consumidor padece quando entra em contato com algum chatbot gerido por IA: rara comunicação com algum funcionário e nem sempre há efetiva solução para as falhas na prestação de serviço.
Este cenário de “Justiça 4.0” pode ser ilustrado com alguns exemplos recentes. Pode-se mencionar a Resolução CNJ 591/2024 (assim como a Resolução 3/2025, do STJ), que preconizam que as sustentações orais nos julgamentos virtuais assíncronos serão realizadas através de vídeos gravados remetidos ao sistema informatizado.
Da mesma forma a recente Recomendação 1/2025, do CJF – Conselho da Justiça Federal, que propõe a realização da chamada audiência de instrução concentrada em determinadas ações judiciais. Nesse procedimento, estabelecido no formato de fluxo processual, a oitiva de testemunhas e do depoimento pessoal da parte autora não ocorrerão ao vivo, sob condução do magistrado, mas serão gravados em vídeo pelo advogado responsável pela causa, e inseridos no processo eletrônico.
Este modelo de “audiência pré-gravada” me causa certa estranheza, devido ao distanciamento entre o magistrado condutor do processo e aquela prova produzida em formato de audiência digital. Vislumbra-se também certa minimização do princípio da identidade física do juízo.
Não somos absolutamente contra a utilização de tecnologia no âmbito judicial, especialmente quando esta pode ser uma ferramenta interessante para aprimorar a prestação jurisdicional.
Todavia, esses exemplos recentes preocupam por apontar um modelo judicial estruturado em fluxos fixos, imodificáveis e ininterruptos, ainda que o caso concreto apresente pontos de relevância e urgência que mereçam tratamento diferenciado.