Basicamente existem duas razões pelas quais há uma tendência à substituição da clássica expressão “responsabilidade civil” por “direito de danos”: a primeira se traduz no fenômeno da pavimentação da objetivação da imputação de danos, paulatinamente construída pela eliminação dos tradicionais muros de contenção à obrigação de indenizar, quais sejam: a necessidade da verificação de um ato ilícito, da culpa e em casos extremos, do nexo causal, mediante presunções de causalidade que atribuem a responsabilidade a um pagador, seja ele o agente, o protagonista de uma atividade de risco inerente ou um segurador (contratual ou legal). Desta maneira, a atividade preponderante do julgador nas pretensões compensatórias consiste em avaliar se há um dano injustificado, ou seja, uma lesão a um interesse digno de proteção, mediante um balanceamento entre as razões do lesante e do lesado.
Todavia, chamamos a atenção para a segunda razão do deslocamento do eixo da responsabilidade civil para o fato jurídico lesivo: trata-se do sintoma da proliferação de danos. Vivenciamos um “big bang” de interesses merecedores de tutela, com uma fartura de novas etiquetas, sendo a maior parte objeto de importação jurídica, sem a necessária reflexão sobre a adequação do transplante ao ordenamento jurídico brasileiro. É evidente que a fórmula binária adotada pela CF/88 (art. 5., V) é insuficiente para abraçar o perímetro da responsabilidade civil em 2020. Há 32 anos, o carimbo constitucional da dicotomia dano material/moral representou a consolidação de um avanço civilizacional perante a clássica objeção à indenizabilidade de lesões a situações existenciais, um vigoroso passo em direção à personalização do direito privado e a mais ampla tutela diante de vulnerações a direitos fundamentais. Nada obstante, é hora de avançar.
Com efeito, o dano patrimonial transcendeu o esquema bifurcado dano emergente/lucro cessante, sendo abordado com maior rigor técnico. Lado outro, servirmo-nos dessas linhas para a elaboração de uma tipologia mínima do dano extrapatrimonial, partindo da premissa de que, mesmo na realidade de nosso sistema jurídico aberto – com espeque na cláusula geral do art. 186 do CC – já não é mais possível sustentar a sinonímia de dano moral e extrapatrimonial. A experiência revela que o princípio da reparação integral é ultrajado, diante da consideração genérica do dano moral em uma heterogeneidade de situações, sem o menor cuidado com a especificação sobre quais danos extrapatrimoniais são objeto de decisão. Ademais, a simples invocação de expressões genéricas sem que se outorgue apropriados contornos e argumente-se por quais motivos o seu emprego é pertinente no caso concreto não constitui razão válida para fundamentar uma sentença (art. 489, CPC).
Para superar a abordagem tradicional do direito brasileiro pela qual dano moral e dano extrapatrimonial se equivalem – tal como dois lados de um mesmo quadrado -, doravante, para o direito civil pátrio sustento a existência de um gênero, o “dano extrapatrimonial”, dividido em 4 espécies, quais sejam: dano à imagem; dano estético; dano existencial e dano moral. Não se trata obviamente de uma classificação exaustiva, pois diferentes rótulos fatalmente se estabelecerão ao longo de tempo, todavia cremos que o “Zeitgeist” aponta para uma classificação quadripartite do dano extrapatrimonial, definindo-se este, em sentido amplo, como uma lesão a um interesse existencial concretamente merecedor de tutela. Esta abrangência conceitual propicia três vantagens: a) abre ao magistrado espaço para a ponderação de bens conforme as peculiaridades de cada lide permitindo que a fundamentação constitua a resposta judicial à argumentação formulada pelas partes em torno das razões existentes para julgar em um ou outro sentido; b) permite que a doutrina conceba critérios objetivos para orientação judicial face às inevitáveis tensões entre direitos fundamentais; c) oxigena a cláusula geral do artigo 186 do Código Civil, tornando-a permeável aos influxos de consistentes argumentos que densificam normas constitucionais, tais como a indenização por omissão de cuidado nas relações familiares (art. 226, CF) e o dano derivado do direito ao esquecimento na sociedade de informação (Art. 220. § 1, CF).
O dano estético não apenas se consolida como uma figura autônoma aos danos moral e patrimonial (Súmula 387/STJ), como também recebe uma atualização de conteúdo. Se em uma primeira fase era reduzido ao “enfeamento” da vítima em razão de cicatrizes e lesões provocadas por um evento lesivo, consolidou-se a partir da decisão do caso Lars Grael (AG Nº 638.763/RJ), em 2007, a abordagem do dano estético como uma transformação morfológica da vítima (no caso, a perna decepada do iatista), cuja indenização independe da verba de dano moral justificada pelo evidente abalo psíquico decorrente do grave dano à integridade física. Em uma perspectiva mais atual, o dano estético adquire um relevo funcional, percebido como um significativo desequilíbrio corporal infligido à pessoa. A perda de um baço, a cegueira e a surdez não representam um “enfeamento” ou mesmo uma alteração fisionômica, porém repercutem na funcionalidade do organismo, justificando uma compensação que ultrapassa o dano moral, aproximando o dano estético de um dano à saúde ou de um dano corporal.
A Constituição Federal já conferia autonomia do dano à imagem perante o dano material e o dano moral. Contudo, parece-nos adequado classificar o dano à imagem como uma espécie de dano extrapatrimonial, que eventualmente repercutirá em termos econômicos (Súmula 403/STJ), sem que a projeção econômica da indevida utilização da imagem – seja pelo ressarcimento de danos ou restituição de ganhos ilícitos – desvirtue a sua essência. De fato, tratando-se de tutela de bem específico da personalidade, a captação não autorizada da imagem alheia é suficiente para desencadear o dano, independente de qualquer lesão à honra ou à vida privada da vítima. O precedente Maitê Proença (REsp 764735/RJ), evidencia a autossuficiência do dano imagem, pois a inconsentida publicação de fotos de sua nudez por veículo de imprensa representa um dano de “per si”, a par da cumulação com uma condenação ao dano moral, caso houvesse comprovado abalo a sua credibilidade ou a imagem fosse captada em um contexto intimo.
Em termos de positivação, o dano existencial é o mais recente membro da prole do dano extrapatrimonial. A reforma trabalhista (Lei n.13.467/17) trouxe o art. 223-B, explicitamente outorgando ao dano extrapatrimonial a condição de gênero, tendo como espécies o dano moral e o existencial. Este pode ser conceituado como uma modificação prejudicial relevante na vida de uma pessoa decorrente de um fato danoso. Basta imaginarmos um choque elétrico sofrido por operário de cabo com consequências graves e irreversíveis em seu cotidiano: dificuldades para se alimentar, vestir e realizar tarefas comezinhas da vida. Atrevo-me a dizer que a distinção entre o dano moral e o dano existencial é mais árdua que comparativamente ao dano à imagem e ao dano estético. Com relação a essas figuras, a dessemelhança é qualitativa: o dano moral opera por exclusão, impondo-se sempre que a lesão a um interesse existencial concretamente merecedor de tutela não ocorra nos territórios da indevida captação da imagem ou da funcionalidade orgânica. Assim, ofensas à reputação, privacidade e integridade psíquica ainda se inserem nas lindes do dano moral em sentido estrito. Nada obstante, a distinção entre o dano moral e o dano existencial é quantitativa: o dano moral resulta de uma violação à personalidade cujas consequências deletérias se circunscrevem ao evento; em contrapartida o dano existencial encontra a sua medida na permanência da eficácia danosa sobre a operosidade, dinamismo e qualidade de uma vida. Sob o viés dogmático, pode-se discutir a aplicabilidade do dies a quo do prazo prescricional trienal do código civil para as hipóteses de danos existenciais. Em termos pragmáticos, a distinção encontrará eco na desejável proporcionalização de montantes indenizatórios, justificando condenações em valores mais significativos nos casos de danos existenciais em cotejo com as hipóteses de incidência do dano moral, eliminando-se o indevido recurso à hipertrofia do dano moral pela via da adição de critérios punitivos (v.g. grau de culpa do ofensor, a sua capacidade econômica e/ou reiteração na prática de ilícitos daquela natureza) como forma de ampliação do montante compensatório, que deve sempre se limitar a perspectiva de reequilíbrio patrimonial da vítima à situação mais próxima ao estado pré-ilícito. Ademais, a demarcação das fronteiras da figura do dano existencial é pedagógica, realçando a impropriedade da aplicação da teoria da perda de uma chance para além do domínio das relações patrimoniais.
Alguns poderiam acrescentar à descendência direta do dano extrapatrimonial as figuras do dano ao projeto de vida e o dano à vida em relação. Prefiro um pouco mais de cautela com o manejo destes auspiciosos modelos jurídicos. Parece-me que, nas vicissitudes do ordenamento brasileiro, tanto uma como a outra figura se acomodam como espécies de dano existencial e, via de consequência, descendem em segundo grau do dano extrapatrimonial. O dano ao projeto de vida concerne às opções e possibilidades de realização pessoal frustradas face a um dano de envergadura. Eloquente exemplo é o fenômeno da “desterritorialização” consequente do Distrito de Bento Rodrigues/MG, devastado pelo desastre ecológico promovido pela Vale do Rio Doce. Cada morador daquele local não sofreu apenas um dano moral, em verdades as suas vidas foram profundamente impactadas não apenas para o passado (nas memórias), mas a perda de referências representou um abrupto corte em trajetórias existenciais, que serão ressignificadas. Lado outro, o dano à vida em relação é a projeção do dano existencial na primeira pessoa do plural. Ilustrativamente, a alienação parental é um comportamento antijurídico (art. 6., Lei n. 12.318/10) que desqualifica a figura de um dos genitores perante o filho, e, portanto, qualificado como dano moral (seja ao genitor alienado como ao filho). Entretanto, a reiteração da atividade ilícita ao longo dos anos pode resultar em uma síndrome de alienação parental. Mais do que um dano psíquico ao filho, tem-se aqui um dano à vida em relação, na medida em que resta frustrado o projeto de parentalidade. Enfim, os modelos do dano ao projeto de vida (“myself”) e o dano à vida em relação (“ourselves”) não exaurem as hipóteses de danos existenciais, mas simplificam sobremaneira o percurso argumentativo de inúmeras decisões sobre o tema.
Nossa sugestão quanto a uma tipologia aberta do dano extrapatrimonial é apenas uma tentativa de mapear uma zona inóspita da responsabilidade civil brasileira, justificavelmente infensa à rigidez do “numerus clausus” (problema enfrentado pelo direito italiano), sem que isto impeça a doutrina de encontrar elementos comuns entre as inesgotáveis manifestações da subjetividade humana, para o delineamento de categorias capazes de oferecer um grau maior de previsibilidade às decisões judiciais. O objetivo de se erigir uma taxonomia é o de viabilizar, na medida do possível, uma reparação integral, evitando-se a transformação da amplitude da expressão “dano moral” em uma “guerra de etiquetas”, a ponto de o dano extrapatrimonial ser qualquer coisa e qualquer coisa ser nada… ou melhor, como lembra Guimarães Rosa, ”sussurro sem som onde a gente se lembra do que nunca soube”.
Nelson Rosenvald é Presidente do IBERC. Pós-Doutor em Direito civil pela Universidade Roma-Tre e Pós-Doutor em Direito Societário pela Universidade de Coimbra. Doutor e Mestre pela PUC/SP. Procurador de Justiça do MP/MG e Professor do Doutorado e Mestrado do IDP/DF.