Informativo: 681 do STJ – Direito Penal
Resumo: A irmã de vítima do crime de estupro de vulnerável responde por conduta omissiva imprópria se assume o papel de garantidora.
Comentários:
O crime omissivo pode ser definido como a não realização de determinada conduta valiosa (comportamento ideal) a que o agente estava juridicamente obrigado e que lhe era possível concretizar.
A omissão pode ser própria ou imprópria. No crime omissivo próprio (puro) ocorre o descumprimento de norma imperativa, que determina a atuação do agente. Existe um dever genérico de agir que não é observado pelo destinatário da norma. Esse dever é dirigido a todos indistintamente (dever de solidariedade). A conduta omissiva própria está descrita no próprio tipo penal incriminador, e, para que se configure, basta a sua desobediência, sendo, em princípio, irrelevante a ocorrência de resultado naturalístico, que no entanto pode servir para a fixação da pena ou pode mesmo caracterizar uma majorante ou uma qualificadora (ex.: art. 135 do CP).
No crime omissivo impróprio (impuro ou comissivo por omissão) não basta a simples abstenção de comportamento. Adota-se aqui a teoria normativa, em que o não fazer será penalmente relevante apenas quando o omitente for obrigado a agir para impedir a ocorrência do resultado (relevância da omissão). Mais do que um dever genérico de agir, aqui o omitente tem o dever jurídico de evitar a produção do evento.
Se nos crimes omissivos próprios a norma mandamental decorre do próprio tipo penal, na omissão imprópria ela decorre de cláusula geral prevista no art. 13, § 2º, do Código Penal, dispositivo que estabelece as hipóteses em que alguém tem o dever jurídico de atuar para impedir o resultado. É esse dever que faz da abstenção um comportamento relevante para o Direito Penal. E, ao contrário do crime omissivo próprio, nas hipóteses de omissão impura o tipo penal infringido pelo omitente descreve conduta comissiva.
Segundo dispõe o art. 13, § 2º, do CP, o dever de agir incumbe a quem:
(A) Tenha por lei obrigação de cuidado, proteção ou vigilância: a lei de que se trata aqui pode ser de natureza não penal, como o art. 1.634 do Código Civil, que disciplina o exercício do poder familiar, obrigando os pais em relação à criação e educação dos filhos.
(B) De outra forma, assumiu a responsabilidade de impedir o resultado: a regra incide nas situações em que o dever não decorre da lei, mas da assunção voluntária do encargo de zelar pelo bem jurídico tutelado. A posição de garantidor pode nascer tanto das relações contratuais (ex.: professor fazendo excursão com alunos) como das relações da vida cotidiana (ex.: convidado assume a responsabilidade de levar outro, embriagado, para casa, após uma festa).
(C) Quem, com seu comportamento anterior, criou o risco da ocorrência do resultado: trata-se da obrigação de evitar o resultado quando, no âmbito social, o agente produz o perigo, devendo, portanto, se empenhar para que o resultado danoso não ocorra. É irrelevante que a atuação perigosa causadora do resultado seja lícita ou ilícita, culposa ou dolosa, punível ou não punível, devendo sempre o agente responder pela sua produção caso incida uma das hipóteses legais (Francisco de Assis Toledo, citando posicionamento de Maurach, Princípios Básicos de Direito Penal. 5ª ed. São Paulo: Saraiva. 1994, p. 118).
São lamentavelmente comuns as situações em que crimes de estupro de vulnerável ocorrem com o conhecimento de familiares que muitas vezes se omitem por diversas razões e possibilitam que os abusos se perpetuem. Se, por exemplo, uma mulher, sabendo que seu marido abusa sexualmente do filho do casal, nada faz para proteger a criança, deve ser responsabilizada por estupro de vulnerável na forma de omissão imprópria com fundamento na alínea a, acima, pois tem obrigação de cuidado em relação ao filho.
Recentemente, o STJ julgou habeas corpus no qual se discutia a possibilidade de a irmã de uma criança ser punida com base na regra da omissão imprópria. O tribunal assentou que não é possível estender as disposições da alínea a aos irmãos, que não têm as mesmas obrigações dos pais. Nada impede, contudo, que a responsabilidade penal seja fundada nas alíneas b e c. No caso julgado, a irmã de duas crianças havia assumido a responsabilidade de cuidado, mas se omitiu durante anos diante de abusos cometidos por seu marido:
“Trata-se de denúncia pela prática do delito de estupro de vulnerável na forma omissiva imprópria, tendo por vítimas as irmãs menores da denunciada e como autor da conduta comissiva seu marido.
Os crimes omissos impróprios, de acordo com a doutrina, são aqueles que “(…) envolvem um não fazer, que implica a falta do dever legal de agir, contribuindo, pois, para causar o resultado. Não têm tipos específicos, gerando uma tipicidade por extensão. Para que alguém responda por um delito omissivo impróprio é preciso que tenha o dever de agir, imposto por lei, deixando de atuar, dolosa ou culposamente, auxiliando na produção do resultado.”
Quando se fala em “dever legal de agir” e em assunção do papel de “garantidor”, o Código Penal, no art. 13, § 2º, apresenta três hipóteses taxativas para caracterizar tal incumbência ao agente.
Na primeira perspectiva, na alínea “a”, tem-se a figura do garantidor legal stricto sensu, aquele que tem por lei o dever de proteção, vigilância e cuidado, hipótese comumente aplicada entre os pais e os seus filhos menores de idade, no exercício de seu poder familiar. Nesse ponto, é clara a impossibilidade de extensão das obrigações paternas aos irmãos. Afinal, muito embora haja vínculo familiar e até presumidamente uma relação afetiva entre irmãos, o mero parentesco não torna penalmente responsável um irmão para com o outro, salvo, evidentemente, os casos de transferência de guarda ou tutela.
A lei, ainda, expressamente prevê a assunção da figura de “garantidor” pelo agente, nas alíneas “b” e “c”, quais sejam: o da pessoa que de outra forma assumiu a responsabilidade de impedir o resultado, e daquele que criou o risco da ocorrência do resultado a partir de seu comportamento anterior.
Assim, muito embora uma irmã mais velha não possa ser enquadrada na alínea “a” do art. 13, § 2º, do CP, pois o mero parentesco não torna penalmente responsável um irmão para com o outro, caso caracterizada situação fática de assunção da figura do “garantidor” pela irmã, nos termos previstos nas duas alíneas seguintes do referido artigo (“b” e “c”), não há falar em atipicidade de sua conduta. Hipótese em que a acusada omitiu-se quanto aos abusos sexuais em tese praticados pelo seu marido na residência do casal contra suas irmãs menores durante anos. Assunção de responsabilidade ao levar as crianças para sua casa sem a companhia da genitora e criação de riscos ao não denunciar o agressor, mesmo ciente de suas condutas, bem como ao continuar deixando as meninas sozinhas em casa” (HC 603.195/PR, Rel. Min. Ribeiro Dantas, j. 06/10/2020).
Para se aprofundar, recomendamos:
Livro: Manual de Direito Penal (parte geral)
Livro: Manual de Direito Penal (parte especial)
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