A Lei nº 14.245, de 22 de novembro de 2021, apelidada desde logo como “Lei Mariana Ferrer”, surgiu depois da divulgação de imagens de uma audiência de instrução versando sobre crime de estupro em que a vítima, Mariana, teve sua intimidade inutilmente exposta pela defesa.
A lei em comento tem por objetivo central reprimir e prevenir a chamada “revitimização”, ou vitimização secundária.
Vale a pena recordar, nesse ponto, os graus de vitimização.
A vitimização primária é aquela que decorre direta e imediatamente da prática delitiva (ex.: a pessoa violentada na sua dignidade sexual).
A vitimização secundária – ou revitimização – é aquela provocada pelos agentes do Estado ou – segundo uma concepção mais ampla – pela própria sociedade, pela forma como se culpabiliza a vítima. Compreende “o sofrimento das vítimas e testemunhas causado pelas instituições “encarregadas de fazer justiça: policiais, juízes, peritos, criminólogos, funcionários de instituições penitenciárias etc”[1].
Nos crimes contra a dignidade sexual, a maioria das vítimas é de mulheres: em 2019 ocorreram 66.348 estupros, 1 estupro a cada 08 minutos, sendo 85.7% contra mulheres[2].
Nesses processos, não raramente se reproduzem afirmações machistas e questionamentos morais, potencializando o sofrimento das ofendidas. É a conhecida violência institucional.
Vera Regina Pereira de Andrade leciona que a violência institucional “reproduz a violência estrutural das relações sociais patriarcais e de opressão sexista” [3], assim, a vítima enfrenta na investigação e na Justiça o mesmo preconceito e a resistência que enfrenta na sociedade e nas relações pessoais.
Janaina Rigo Santin adverte que “o direito penal trata as mulheres da mesma forma como os homens as tratam… Assim, acaba-se, por força do costume, acusando a vítima e não o autor. Há uma seletividade de vítimas, somente sendo dignas de proteção as mulheres honestas. Ao invés de se julgar o autor do fato, julga-se a vítima, a qual sofre total interferência na sua intimidade, passando a ter sua vida, sua casa e sua família investigadas, com vistas a desvendar sua reputação a fim de comprovar se não contribuiu para o crime”[4]
Jussara Martins Cerveira de Oliveira, por sua vez, diz que nesse julgamento, “a idoneidade da vítima, a incerteza sobre seu depoimento pesam mais que a violência cometida” [5].
O Conselho Nacional de Justiça define a violência institucional contra as mulheres na Resolução 254, de 04 de setembro de 2018:
“Configura violência institucional contra as mulheres no exercício de funções públicas a ação ou omissão de qualquer órgão ou agente público que fragilize, de qualquer forma, o compromisso de proteção e preservação de direitos das mulheres”.
Temos, a par da definição do CNJ, uma legal, prevista no art. 4º, inc. IV, da Lei 13.431/17:
Art. 4º.
(…)
IV – violência institucional, entendida como a praticada por instituição pública ou conveniada, inclusive quando gerar revitimização.
Com a nova lei, repise-se, busca-se evitar exatamente esse cenário de revitimização durante a instrução criminal, justamente no momento em que a vítima e a as testemunhas são questionadas quanto ao crime, com um olhar mais incisivo direcionado aos crimes contra a dignidade sexual.
O cuidado exigido pela Lei 14.245/21 não é novidade entre os vitimologistas que, norteados por documentos internacionais, alertam para a necessidade se adotar providências para proteger eficazmente vítimas e testemunhas durante o processo.
A Resolução 40/34 da ONU prevê na Declaração dos Princípios Fundamentais de Justiça Relativos às Vítimas que:
“Art. 4. As vítimas devem ser tratadas com compaixão e respeito pela sua dignidade. Têm direito ao acesso às instâncias judiciárias e a uma rápida reparação do prejuízo por si sofrido, de acordo com o disposto na legislação nacional”.
Dentro desse espírito, a Lei 14.245/21 introduziu os artigos 400-A e 474-A no CPP, e o art. 81 na Lei 9099/95, amoldando a instrução nos ritos ordinário, do júri e sumaríssimo, com redação semelhante para os três dispositivos:
“Na audiência de instrução e julgamento, e, em especial, nas que apurem crimes contra a dignidade sexual, todas as partes e demais sujeitos processuais presentes no ato deverão zelar pela integridade física e psicológica da vítima, sob pena de responsabilização civil, penal e administrativa, cabendo ao juiz garantir o cumprimento do disposto neste artigo, vedadas:
I-a manifestação sobre circunstâncias ou elementos alheios aos fatos objeto de apuração nos autos;
II-a utilização de linguagem, de informações ou de material que ofendam a dignidade da vítima ou de testemunha”.
Em síntese, estabelece-se:
. prova vedada: há exclusão do objeto da prova de dados alheios aos fatos dos autos; conteúdo ou linguagem que ofendam a dignidade da vítima ou testemunha;
. sujeitos processuais: a lei impõe deveres para as partes e sujeitos processuais, principais ou secundários.
. limitação processual: as partes não podem usar essa prova como argumento jurídico ou de autoridade.
. consequências extraprocessuais: penais, civis e administrativas.
Embora se mencione prioritariamente os crimes contra a dignidade sexual, a lei cria uma NORMA PARADIGMA, um procedimento padrão que deve ser seguido sempre: vítima ou testemunha, em qualquer tipo de crime, deve ter seus direitos preservados. Esse modelo se aplica a toda a persecução penal, e não somente na fase do processo[6].
No que tange ao conteúdo vedado, o inciso I dos artigos 400-A e 474-A no CPP, e o art. 81 na Lei 9099/95, menciona o legislador, de forma genérica, circunstâncias ou elementos “alheios aos fatos objeto de apuração nos autos”. Esse inciso só tem sentido se interpretado em conjunto com o “caput”, ou seja, não pode haver referência a dados que importem em ofensa à dignidade ou exponham abusivamente a integridade da vítima e testemunhas.
Não se trata apenas de provas desnecessárias sob o aspecto processual, mas de provas invasivas, desrespeitosas, que importem em desnecessária exposição da vida privada.
De se notar, outrossim, que quando se trata de violência em contexto doméstico e familiar é necessário avaliar fatos que vão além do crime apurado nos autos, tais como os fatores de risco mencionados no Formulário Nacional de Risco aprovado pela Resolução 05 do CNJ e CNMP.
Nesse formulário, há quatro blocos de indagação:
- HISTÓRICO DA VIOLÊNCIA
- SOBRE O AGRESSOR
- SOBRE A VÍTIMA
- Observações do profissional
O inciso II trata de provas relacionadas ao objeto de prova dos autos, mas, mesmo nesse caso, há limites na sua produção: não se admitem excesso de linguagem, informações ou qualquer material ofensivo às vítimas ou testemunhas. Assim, não podem ser usados termos que causem inegável constrangimento, fotografias de redes sociais para fazer julgamentos quanto à honra, especulações quanto a namoros ou relacionamentos anteriores da vítima, dentre outras provas.
Surge uma LIMITAÇÃO PROCESSUAL quanto ao conteúdo que poderá ser abordado pelas partes no processo como argumento jurídico ou de autoridade. O desrespeito merece pronta intervenção do juiz, que determinará o “riscamento” das expressões escritas, permitindo extrair certidão da “expressão indigna” para a tomada das medidas cíveis, penais e/ou administrativas cabíveis. O “riscamento” tem cabimento também no processo digital, pois existem meios eletrônicos que permitem a exclusão computadorizada apenas do trecho que contém as palavras. E se a ofensa for praticada em ato oral, o juiz advertirá o ofensor, sob pena de, em se repetindo, ter cassada a palavra.
O legislador, como se percebe, optou por não estabelecer uma sanção processual – ilicitude ou nulidade – para o descumprimento dessa vedação. Isso não impede, de acordo com o caso concreto, a depender do grau de violação aos direitos fundamentais da vítima e/ou testemunha, rotular a prova produzida pela vítima ou testemunha como imprestável.
Trata-se de NORMA PROCESSUAL DE GARANTIA, de reforço, que tem por finalidade assegurar expressamente o respeito à intimidade e vida privada das vítimas e testemunhas durante a instrução criminal. Ao mesmo tempo em que cria um DEVER JURÍDICO para o juiz[7], constrói o legislador um dever de zelo (de atenção) para os demais atores do processo. Mas quem são os sujeitos processuais na “mira” dessa norma?
No processo penal, tradicionalmente, mencionam-se como sujeitos processuais principais: Juiz, MP e réu com seu Defensor. Como partes: MP, réu e Defensor. Aparentemente, o legislador incluiu Ministério Público, réu e Defensor no conceito de partes (sujeitos processuais principais) e os demais como sujeitos processuais, Juiz (sujeito processual principal), órgãos auxiliares, peritos (sujeitos processuais secundários).
Marco Antonio de Barros esclarece[8]:
“São sujeitos principais: o órgão da acusação; o réu e o seu defensor; e o juiz. Não pode haver formação da relação jurídica processual sem a intervenção desses sujeitos. De outro vértice, incluem-se no rol de sujeitos processuais secundários: a testemunha, o perito e os órgãos auxiliares da Justiça”.
Trata-se de previsão muito relevante. Sujeitos processuais e pessoas que atuam no Sistema de Justiça estão inseridos na sociedade e podem agir segundo estereótipos, como consta da recomendação 35 do Comitê CEDAW da ONU[9]:
“Em todas as áreas do direito, os estereótipos comprometem a imparcialidade e integridade do sistema de justiça, que podem, por sua vez, levar à denegação da justiça, incluindo a revitimização de denunciantes. Juízes, magistrados e árbitros não são os únicos atores no sistema de justiça que aplicam, reforçam e perpetuam estereótipos. Promotores, agentes encarregados de fazer cumprir a lei e outros atores permitem, com frequência, que estereótipos influenciem investigações e julgamentos, especialmente nos casos de violência baseada no gênero, com estereótipos, debilitando as declarações da vítima/sobrevivente e simultaneamente apoiando a defesa apresentada pelo suposto perpetrador. Os estereótipos, portanto, permeiam ambas as fases de investigação e processo, moldando o julgamento final”.
Feita essa análise, em sede de encerramento deste estudo embrionário da nova Lei, vamos discutir a responsabilização penal daqueles que violam seus deveres.
A Lei 14.245/21 resolveu alterar somente o crime do art. 344 do CP, nele incluindo parágrafo único, majorando a pena de 1/3 até a 1/2 se o processo em que ocorrer a coação envolver delito contra a dignidade sexual:
Coação no curso do processo
Art. 344 – Usar de violência ou grave ameaça, com o fim de favorecer interesse próprio ou alheio, contra autoridade, parte, ou qualquer outra pessoa que funciona ou é chamada a intervir em processo judicial, policial ou administrativo, ou em juízo arbitral:
Pena – reclusão, de um a quatro anos, e multa, além da pena correspondente à violência.
Parágrafo único. A pena aumenta-se de 1/3 (um terço) até a metade se o processo envolver crime contra a dignidade sexual. (Incluído pela Lei nº 14.245, de 2021)
Ora, se essa mudança se inspirou no triste episódio mencionado no introito deste estudo (audiência de instrução versando sobre crime de estupro em que a vítima, Mariana, teve sua intimidade inutilmente exposta pela defesa), somos obrigados a reconhecer a pouca utilidade do novel parágrafo. É que, na prática, o constrangimento que se busca prevenir e punir, em regra, não ocorre com violência ou grave ameaça, pressuposto do crime de coação no curso do processo. Ocorre mediante outros meios, como humilhação, manipulação, chantagem e ridicularização.
Portanto, quando se discute a responsabilidade penal dos sujeitos processuais por ações ou omissões ocorridas na audiência de instrução e julgamento, e, em especial, nas que apurem crimes contra a dignidade sexual de vítima mulher, enxerga-se, com mais ênfase, o delito do art. 147-B do CP (violência psicológica). Claro que não descartamos outras infrações penais, a depender do caso concreto e das condições pessoais da vítima, como calúnia, difamação e injúria.
No caso de constrangimento cometido por agente público, pode-se cogitar, ainda, do crime do art. 33, caput, da Lei de Abuso de Autoridade:
Art. 33. Exigir informação ou cumprimento de obrigação, inclusive o dever de fazer ou de não fazer, sem expresso amparo legal:
Pena – detenção, de 6 (seis) meses a 2 (dois) anos, e multa.
A Constituição Federal, dentre outros direitos, garante ao homem não ser compelido a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei (art. 5º, II). Dentro desse espírito, a Lei 13.869/2019, no art. 33, abriga essa liberdade da formação e atuação da vontade, da autodeterminação, de fazer ou não fazer alguém aquilo que deliberar.
A Administração Pública, quando persegue informação do cidadão ou o cumprimento de obrigação, deve agir com respaldo legal, tomando-se, obviamente, a expressão “legal” no sentido amplo, abrangendo todas as espécies normativas do art. 59 da CF/1988.
Exigência sem amparo normativo pode configurar o crime de abuso, desde que o agente tenha a finalidade específica de prejudicar outrem ou beneficiar a si mesmo ou a terceiro, ou, ainda, por mero capricho ou satisfação pessoal (art. 1º, Lei 13.869/29). Trata-se de forma qualificada e especial de constrangimento ilegal.
Parece também possível o crime de prevaricação cometido pelo servidor público.
Prevaricação
Art. 319 – Retardar ou deixar de praticar, indevidamente, ato de ofício, ou praticá-lo contra disposição expressa de lei, para satisfazer interesse ou sentimento pessoal:
Pena – detenção, de três meses a um ano, e multa.
A prevaricação “consiste essencialmente no fato de espontaneamente o funcionário se desgarrar do sentido de finalidade pública que deve ser a de toda a sua vida funcional, para, no caso, em vez disto, ter a sua ação norteada para o que se lhe afigure o seu interesse ou lhe pareça condizente com sentimento seu, pessoal.”[10].
Três são as formas de praticar o crime em estudo: retardando (atrasar, procrastinar) ato de ofício; deixando de praticá-lo (omissão); e, por fim, praticando-o de forma ilegal. Em qualquer caso, porém, é necessário que o ato retardado, omitido ou praticado se revele contra disposição expressa de lei, norma penal em branco, cujo complemento está nos artigos 400-A e 474-A do CPP, e o art. 81 da Lei 9099/95.
É necessário, ainda, que o funcionário tenha atribuição para a prática do ato, vez que, se o ato praticado, omitido ou retardado não era da sua competência, não se pode considerar violação ao dever funcional.
O crime é punido a título de dolo, consistente na vontade consciente de retardar, omitir ou praticar ilegalmente ato de ofício, acrescido do intuito de satisfazer interesse ou sentimento pessoal (elemento subjetivo do tipo), colocando o seu interesse particular acima do interesse público.
Em apertada síntese, são estas as nossas primeiras impressões sobre uma lei que tem, sim, falhas, algumas aqui delineadas, mas nasce com uma missão importante: reforçar o papel da vítima no processo penal contemporâneo.
NOTAS
[1] Beristain, Antonio. Nova criminologia à luz do direito penal e da vitimologia. Brasília: UNB, 2000. p. 105.
[2] FÓRUM BRASILEIRO DE SEGURANÇA PÚBLICA. Anuário Brasileiro de Segurança Pública 2020 (Infográfico). Disponível em: https://forumseguranca.org.br/wp-content/uploads/2021/02/infografico-2020-final-100221.pdf. Acesso em: 21 nov 2021.
[3] Andrade, Vera Regina Pereira de. Violência sexual e sistema penal: proteção ou duplicação da vitimação feminina? Sequência, Estudos jurídicos e políticos, publicação semestral, Florianópolis, Universidade Federal de Santa Catarina, n. 33, p. 107.
[4] Santin, Janaína Rigo; Campana, Josiele Bona; Guazzelli, Maristela Piva. Op.cit., p. 83
[5] Oliveira, Jussara Martins Cerveira de. A negação dos direitos humanos da mulher: violência de gênero. Revista Jurídica Unigran, Dourados, v. 05, n. 09, p. 43, jan.-jun. 2003.
[6] Basta recordar que a Lei Maria da Penha, no art. 10-A, incluído pela Lei 13.505/17, anuncia ser direito da mulher em situação de violência doméstica e familiar o atendimento policial e pericial especializado, ininterrupto e prestado por servidores – preferencialmente do sexo feminino – previamente capacitados. A sua inquirição, quando vítima ou testemunha de crimes dessa natureza, obedecerá às seguintes diretrizes: I – salvaguarda da integridade física, psíquica e emocional da depoente, considerada a sua condição peculiar de pessoa em situação de violência doméstica e familiar; II – garantia de que, em nenhuma hipótese, a mulher em situação de violência doméstica e familiar, familiares e testemunhas terão contato direto com investigados ou suspeitos e pessoas a eles relacionadas; III – não revitimização da depoente, evitando sucessivas inquirições sobre o mesmo fato nos âmbitos criminal, cível e administrativo, bem como questionamentos sobre a vida privada.
[7] A norma demanda uma atuação diferenciada do Poder Judiciário, mais diligente e proativo, de modo a promover o pronto e efetivo amparo não somente do acusado de um processo-crime, mas também (e com o mesmo grau de preocupação) da vítima, notadamente de crimes contra a dignidade sexual.
[8] Barros, Marco Antonio. Processo Penal: Da investigação até a sentença. Curitiba: Juruá, 2019, p.186.
[9] COMITÊ CEDAW ONU. Recomendação Geral nº 35: Acesso das mulheres à Justiça, C – 26-27.
[10] Drumond, Magalhães. Comentários ao Código Penal, v. 9, p. 302.
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