Já faz tempo que a música popular vem se preocupando com a fragilidade das moradias destinadas à população de baixa renda. Um trecho dizia: “esse barraco vai cair, eu não me canso de avisar, ele não tem alvenaria, não tem coluna para apoiar, ai eu não quero ver o dia dessa zorra desabar…”. Mas, de todo modo, como cantavam, de há muito, os Paralamas, “a esperança não vem do mar, nem das antenas de TV, a arte é de viver da fé, só não se sabe fé em quê”…
De fato, há um histórico hiato e esquecimento na proteção das moradias destinadas à população carente, realçando os disparates sociais e econômicos do nosso país.
Na terça-feira, foi editada a Lei n.13.465/17, convertendo em lei a MP 759/16, dispondo sobre regularização fundiária rural e urbana, inclusive disciplinando o direito real de laje (tenho convicção que, em melhor técnica linguística, a expressão mais adequada seria direito real à laje) e estabelecendo regras para o condomínio de lotes.
Confesso que tenho esperança de que a nova disciplina da matéria colabore para a concretização do direito constitucional à moradia (CF, art. 6º), protegendo, em especial, à população de baixa renda. Até porque a esperança, conforme a fina sensibilidade de ALBERT CAMUS, se caracteriza quando “no meio do inverno, se descobre um verão dentro de si mesmo”. Estão aquecidas as ideias de que poderemos emprestar tutela jurídica à moradia mais comum do povo carente do Brasil.
A conversão da MP em lei trouxe novidades importantes.
O direito real de laje (utilizando a terminologia legal) é reconhecido a quem utiliza a superfície de um imóvel tomada “em projeção vertical, como unidade imobiliária autônoma” (CC, art. 1.510-A, §1º), desde que esteja caracterizada uma “unidade distinta daquela originalmente construída sobre o solo” (CC, art. 1.510-A, caput). Ou seja, a laje precisa ter acesso autônomo e independente da unidade originária (unidade-base). É o claro exemplo do “puxadinho” do povo brasileiro. Imagine-se um pai que concede a um dos filhos a construção de um outro imóvel na laje do seu. Se a construção tem acesso autônomo, não se confundindo com o bem originário, estará protegido pelas regras da laje. Aliás, o titular do puxadinho terá, inclusive, escritura pública própria, a partir de uma matrícula aberta no Cartório, além de registro sobre a matrícula do imóvel sobreposto (art. 176, §9º, da Lei de Registros Públicos).
Com isso, o titular da laje pode, ilustrativamente, ofertá-la em garantia ou mesmo aliená-la, a título oneroso ou gratuito (CC, art. 1.510-A, §3º).
Advirta-se, porém, que, em se tratando de construção vinculada ao imóvel originário, como no exemplo do pai que, sobre o imóvel-base, constrói não apenas uma estrutura para o filho que vai casar, mas, também, ali mantém uma área de lazer (churrasqueira) ou serviço (lavanderia), ou constrói um acesso interno pelo próprio imóvel originário, não se tratará de direito real sobre a coisa alheia. Nessa hipótese, tratar-se-á de mera benfeitoria ou acessão em relação ao imóvel-base, a depender da finalidade, submetida à teoria da gravitação (já que o acessório segue o principal e ao seu titular pertence). Não haverá, nesse caso, registro imobiliário autônomo.
Em se tratando de laje autônoma e independente, haverá registro no cartório de imóveis (CC, art. 1.510, §3º), sem que isso importe em qualquer direito sobre a área já construída do bem original (CC, art. 1.510-A, §4º). Aliás, o titular da laje não pode, inclusive, prejudicar a segurança ou mesmo a linha arquitetônica ou estética do edifício (CC, art. 1.510-B).
O direito de laje, de todo modo, é acessório ao principal. É direito real sobre a coisa alheia – uma espécie de derivação do direito de superfície, como já antevia o art. 21 do Estatuto da Cidade. Tanto que o art. 1.510-E estabelece, como regra, que “a ruína da construção-base implica extinção do direito real de laje”.
Outrossim, singrando os mesmos mares, por evidente, o titular da laje somente pode conceder a sobrelaje (direito real de laje sucessivo) a um terceiro com expressa aquiescência do titular do imóvel originário e dos demais titulares de laje, se for o caso, além do aval do Poder Público, respeitadas as posturas e regras de construção (CC, art. 1.510-A, §6º).
Significativa novidade da lei que converteu a MP 759, acolhendo as críticas que fazíamos desde o final de 2016, foi o reconhecimento do direito de preferência recíproco entre os titulares do imóvel-base e da laje (CC, art. 1.510-D). Ahora, si, seria dito em língua espanhola!
Por óbvio, se um dos titulares (do imóvel sobreposto ou do puxadinho) pretende alienar onerosamente a sua unidade, ele precisará ofertar, primeiro, ao outro (notificação, judicial ou extrajudicial, com prazo mínimo de 30 dias, salvo disposição contrária), permitindo, assim, a aquisição da plenitudade da propriedade – e, naturalmente, essa regra não se aplica à alienação gratuita, por se tratar de mera liberalidade. Havendo mais de uma laje, a preferência será do titular da laje mais próxima da unidade sobreposta (CC, art. 1.510-D, §2º), para atender à racionalidade da norma.
Como corolário dessa norma-regra haverá uma repercussão processual. Caso o titular de um dos direitos reais esteja sofrendo penhora da sua unidade, o outro precisará ser cientificado para, querendo, exercer a preferência e pagar a dívida, adquirindo o bem. Cuida-se de consectário imperativo no campo processual (nova redação do art. 799 do novo CPC).
Outrossim, há uma incidência do velho ditado de que “quem tem o bônus, assume o ônus”. Isso porque na medida em que o titular da laje passa a ter direito real sobre ela (à laje, insisto!), responderá, consequentemente, pelas obrigações fiscais dela decorrentes (CC, art. 1.510-A, §2º). Não poderia ser diferente. No ponto, inclusive, já antevejo que os titulares de imóveis sobrepostos, muito provavelmente, formularão pedidos ao Poder Público para recálculo de seus tributos incidentes sobre o imóvel (IPTU, ITR, por exemplo), com vistas a que se reconheça a parte que caberá ao titular da laje. Mas, não é só. O titular da laje também deve contribuir, proporcionalmente, com as despesas comuns de conservação e serviços (CC, art. 1.510-C). Aqui, incidem as regras relativas à taxa de condomínio e, assim, tratar-se-á de obrigação propter rem, admitida, inclusive, a penhora do bem de família para adimplemento da despesa, como já se posicionou o STF, no julgamento do RE 439.003/SP, rel. Min. Eros Grau.
De todo modo, a constituição do direito de laje em favor de terceiros depende da vontade do titular do imóvel originário, como ressalta o caput do art. 1.510-A: “o proprietário de uma construção-base poderá ceder a superfície”. Todavia, não se ignore que, de há muito, inúmeros brasileiros já estão a exercer direito de laje sobre imóveis alheios. Para estes casos, é absolutamente possível o usucapião da laje: não se trata de aquisição originária da unidade originária, mas, tão só, do direito real à laje, provados os requisitos gerais para o usucapião – aliás, por falar em usucapião, o art. 216-A da Lei de Registros Públicos (que permite o usucapião em cartório) teve – finalmente!!! – a sua redação melhorada e adequada, interpretando-se o silêncio dos confinantes e demais interessados como concordância para que o notário ou registrador lavre a escritura pública, e não mais como discordância. A lógica prevaleceu!
Seguramente, o direito de laje exigirá adequações no âmbito registral, fundiário e processual. Isso é certo e incontroverso! Espero, entretanto, que essas novidades consigam servir para a proteção das pessoas que sempre tiveram a arte de viver na fé, sem muito sabem em quê…