São tantos os diálogos possíveis da responsabilidade civil com outros conceitos, categorias e institutos (da experiência jurídica atual) que qualquer escolha que fizermos será apenas isso: uma escolha. Podemos, por certo, escolher as conexões mais atuais e mais relevantes. É isso que tentamos fazer, construindo uma rede de conexões conceituais que possa ser útil ao leitor, na solução dos problemas contemporâneos relacionados à matéria.
A boa-fé objetiva é princípio fundamental do direito contratual contemporâneo (mas não só dele). É talvez um dos princípios normativos mais importantes do direito privado atual. Há relações, relevantes e profundas, entre a responsabilidade civil e a boa-fé. Falemos, inicialmente, embora de modo breve, sobre a boa-fé. Antes disso cabe lembrar que os princípios reunificam o direito privado, porém agora como um sistema aberto. São, seguramente, a fonte onde o intérprete vai buscar – mais do que nas regras jurídicas – a fonte de legitimidade de suas decisões. São, além disso, normas com a notável característica de incorporar, como camadas normativas, as mudanças sociais, juridicizando-as.
Nesse contexto, o direito do século XXI não pode se distanciar das legítimas expectativas sociais acerca do que é aceitável, legítimo, correto. A boa-fé objetiva, nesse contexto, desempenha funções fundamentais. O princípio normativo da boa-fé é dotado de incrível plasticidade, ele não é estático, é dinâmico. Adapta-se aos novos tempos conferindo um instrumental normativo para que o direito se aproxime da ética. Com a boa-fé objetiva, o direito passa a ter uma ferramenta ágil, flexível, arejada, para combater condutas desleais, ardilosas, ou mesmo pouco cooperativas.
Talvez possamos começar lembrando que “o direito contemporâneo se assenta no constante dever de as partes agirem com lealdade e boa-fé. Esse conceito também invade os elementos da responsabilidade civil”. Na verdade a boa-fé objetiva é um princípio cujas potencialidades são verdadeiramente inesgotáveis. A doutrina e a jurisprudência, com criatividade e talento, redescobrem, diariamente, as ricas funções que o princípio pode exercer nas relações civis, mas não só nelas. Podemos incluir não só as relações de consumo, mas o direito atual como um todo. Não por acaso, o CPC/2015 dispõe, art. 489, § 3º: “A decisão judicial deve ser interpretada a partir da conjugação de todos os seus elementos e em conformidade com o princípio da boa-fé”. Antes disso o CPC/2015 traz, já entre suas normas iniciais (e fundamentais), que “aquele que de qualquer forma participa do processo deve comportar-se de acordo com a boa-fé” (art. 5º). Estamos diante, por certo, de cláusula geral, que estabelece – dentre outros deveres – o dever de cooperação. Tão acentuado, hoje, é esse dever, que a doutrina que estuda o processo civil alude ao princípio da cooperação.
Podemos falar em funções relativas à boa-fé (não havendo, cremos, separação absoluta entre elas, antes um rico diálogo): função interpretativa, função corretiva, função limitativa de direitos subjetivos e função criadora ou integrativa (função supletiva de criar deveres acessórios anexos). Haverá violação positiva do contrato, se, eventualmente, tais direitos forem desconsiderados. A violação dos deveres anexos, também chamados instrumentais, laterais ou acessórios do contrato – tais como a cláusula geral da boa-fé objetiva, dever geral de lealdade e confiança – implica responsabilidade civil contratual (STJ, REsp 1.276.311). Lembremos que o fornecedor de serviços deverá observar a boa-fé objetiva, dentre cujas consequências está o dever de agir com transparência (CDC, art. 4º).
Muito dos novos fenômenos e funções do direito privado atual podem também ser traduzido pela teoria dos atos próprios. A teoria dos atos próprios, a rigor, postula que nemo potest venire contra factum proprium (ninguém pode agir em contradição com os próprios atos). Trata-se da proibição do comportamento contraditório. É mais uma das muitas manifestações da (cláusula geral) boa-fé objetiva. Aplicável, aliás, não só ao direito material, mas também processual. O STJ tem entendido, em sucessivas manifestações, que “o princípio da boa-fé objetiva proíbe que a parte assuma comportamentos contraditórios no desenvolvimento da relação processual, o que resulta na vedação do venire contra factum proprium, aplicável também ao direito processual” (STJ, AgRg no REsp 1.280.482).
Muitas das expressões da boa-fé objetiva se refletem em conceitos e institutos que perpassam a experiência jurídica atual. As Jornadas de Direito Civil, aliás, já assentaram no Enunciado n. 412: “As diversas hipóteses de exercício inadmissível de uma situação jurídica subjetiva, tais como supressio, tu quoque, surrectio e venire contra factum proprium, são concreções da boa-fé objetiva”.
São muitas, quase infinitas, as possibilidades de leitura desse princípio. Lembremos, por exemplo, da responsabilidade civil médica. O paciente, diante do médico, está em posição de vulnerabilidade. Não conhece, em regra, os meandros do tratamento, não sabe como agir nem o que esperar. Sem mencionar que a doença e a dor fragilizam, por si só, o ser humano, deixando-o em posição sensível. A boa-fé objetiva deve iluminar fortemente essa relação, impondo ao profissional de saúde um dever de agir com lealdade, zelo e cooperação, abstendo-se de condutas que possam frustrar as legítimas expectativas do paciente, ainda que subjetivamente desconhecidas no momento do dano (por exemplo, a legítima expectativa que o direito protege, no caso, é a de receber o melhor tratamento possível à luz da ciência contemporânea. Se o médico sonega um tratamento, por uma razão qualquer, o dano se caracteriza, ainda que o paciente desconhecesse aquela possibilidade).
Poucos bens são tão preciosos quanto a saúde. Costuma-se dizer, com muita verdade, que só a valorizamos adequadamente quando, por uma razão qualquer, a perdemos, ainda que temporariamente. A responsabilidade civil sempre se ocupou, através dos séculos, com os danos relacionados à ação ou omissão de alguém diante da saúde alheia, com danos mais ou menos graves. Vivemos, hoje, no Estado dos direitos fundamentais, e a saúde dos cidadãos ganha progressivamente importância, não só na formulação genérica de políticas públicas, mas também na solução concreta dos casos em que houve dano.
Hoje, diante do princípio da proteção, próprio da responsabilidade civil do Estado do século XXI, cabe uma postura mais ativa, menos absenteísta, do Estado em relação à saúde dos seus cidadãos. Isso se aplica não apenas quando o Estado, por seus serviços públicos de saúde, presta atendimento. Mas também diante dos abusos nos poderes privados, como cada vez mais se vê por parte dos planos de saúde, cuja atuação vem sendo objeto de progressivas e reiteradas reclamações de seus usuários. O Estado não pode se omitir diante dessas circunstâncias. Nesse contexto, nossa (jovem) democracia constitucional precisa refletir sobre os deveres de proteção dos cidadãos, a cargo do Estado. A proteção dos direitos fundamentais, inclusive contra agressões não estatais, não pode permanecer em nível retórico. É preciso que estejamos atentos para evitar a reprodução de um velho vício: muita retórica e pouca efetividade. É inegável que certas orientações jurisprudenciais não conferem nenhuma eficácia concreta ao discurso da solidariedade. Não se trata de formular uma orientação fundamentalista do dever do Estado indenizar, mas apenas de reconhecer que estão sendo redefinidos os espaços em relação aos quais a omissão estatal é legítima.
Vivemos no Estado dos direitos fundamentais e essa constatação deverá iluminar todos os setores do direito civil (os diálogos devem existir no direito de família, contratos, sucessões etc). Na responsabilidade civil, por exemplo, o princípio da solidariedade social autoriza novas leituras do nexo causal (o nexo causal não é matemático, naturalístico, mas sim imputacional, valorativo). A noção de risco penetra na dimensão jurídica e o que era fortuito externo passa a ser, em muitas situações, fortuito interno (isto é, passa a ser um risco que responsabiliza o responsável pela atividade, ainda que o dano tenha sido praticado por terceiro. É o que ocorre, hoje, por exemplo, com as fraudes bancárias, em relação aos clientes).
Registre-se, em linha de princípio, que podemos nos valer, como critério interpretativo para avaliação da conduta médica, do dever de tutela do melhor interesse do paciente. Trata-se de vetor hermenêutico em favor da integridade física e psíquica do paciente. Trata-se, dizemos nós, do princípio da boa-fé objetiva, particularizado na conduta médica. Não agir apenas à luz das próprias conveniências (deixar para o mês que vem algo que deveria ser feito agora porque está com viagem marcada), ou interesses econômicos (resolver, entre dois pacientes, por internar aquele que lhe traz maior proveito financeiro).
Outro ponto da maior relevância, conectado à boa-fé objetiva, é que os deveres de cuidado não dependem de um contrato para existir. Podem nascer antes do contrato e podem se estender para depois dele (post contractum finitum). Sem falar que o contrato pode nem existir, como ocorre nos atendimentos – sejam de urgência ou não – na rede pública. Depois da cirurgia, a ausência do acompanhamento médico (ou o acompanhamento deficiente) pode ser extremamente danosa ao paciente. Sobretudo se não tiver havido, de forma clara e minudente, a informação sobre como o paciente deverá agir. A prova de que a informação foi dada, e compreensivelmente dada, incumbe ao médico. Também incumbe ao médico a prova do consentimento informado do paciente, naquelas hipóteses em que o consentimento é possível. O dever de bem informar – viga mestra das relações de consumo, mas relevante também nas relações civis – incide com particular vigor nas relações entre médicos e pacientes.
O STJ, em julgado recente, destacou: “A boa-fé objetiva tem por escopo resguardar as expectativas legítimas de ambas as partes na relação contratual, por intermédio do cumprimento de um dever genérico de lealdade e crença, aplicando-se aos contratantes. O ordenamento jurídico prevê deveres de conduta a serem observados por ambas as partes da relação obrigacional, os quais se traduzem na ordem genérica de cooperação, proteção e informação mútuos, tutelando-se a dignidade do devedor e o crédito do titular ativo, sem prejuízo da solidariedade que deve existir entre eles” (STJ, REsp 1.592.422). Hoje se vê o vínculo obrigacional como uma relação dinâmica. Essa relação dinâmica é composta não apenas por aquilo que as partes contratualmente manifestaram, mas também por deveres anexos que independem de manifestação de vontade das partes para nascer.
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