Se observarmos com atenção o final do século XX e início do século XXI, constataremos uma nítida tendência – em tempos de vigor e busca por um “rigor penal” – a tese crescente do Direito Penal do Inimigo, (essencialmente desenvolvida por Günther Jakobs). Ora, esta tese descreve uma forma de punição claramente demarcada pela pena de prisão desprovida das garantias processuais e penais.
Ainda, segundo esta ótica, o inimigo é visto como um verdadeiro abjeto, uma anomalia social que dela é forçoso extirpar. Assim, o “inimigo” não é tratado ou considerado por Jakobs como pessoa (sujeita de direitos), mas, sobretudo, como um perigo, uma verdadeira ameaça a ser combatida – não com instrumento oriundos do Estado Democrático de Direito – mas por meio de um regime de exceção coadunado com os procedimentos de guerra.
Diante deste lamentável cenário, não há como esconder à discussão os embasamentos de Michel Foucault (amplamente desenvolvidos em sua célebre obra Vigiar e Punir ).
A obra em comento tem como um de seus aspectos essenciais o objetivo de Foucault em descrever a história do poder de punir diretamente relacionado à história da prisão – cuja instituição muda o estilo penal, do suplício do corpo da época medieval para a utilização do tempo no arquipélago carcerário do capitalismo moderno. Eis o epicentro da obra.
Importante reter que o pensador trouxe a inquietante verdade que a “invenção das prisões” é considerada como uma criação que fatalmente fracassou – fundamentalmente em seu objetivo de correção e reinserção daquele que nela se encontra ou que esteve um dia nela cativo. Em apertada síntese, buscou demonstrar a natureza política do poder de punir, o suplício do corpo no medievo (toda sorte de tortura: roda, fogueira etc.) é um ritual público de dominação pelo terror (notaObserve-se a influência marxista no seu pensamento;). Assim, o objeto da pena criminal é o corpo do condenado, mas o objetivo da pena criminal é a massa do povo, convocado para testemunhar a vitória do soberano sobre o criminoso, o rebelde/subversivo que ousou desafiar o poder. A execução penal é pública, porque o sofrimento do condenado, mensurado para reproduzir a atrocidade do crime, é um ritual político (visando, como é evidente, o controle social pelo medo).
Ora, sua reflexão sobre a prisão é bem original, pois consiste em abandonar o critério tradicional dos efeitos negativos de repressão da criminalidade, (definido pelas formas jurídicas e delimitado pelas conseqüências da aplicação da lei penal), para pesquisar os efeitos positivos da prisão, como tática política de dominação orientada pelo saber científico, que define a moderna tecnologia do poder de punir, caracterizada pelo investimento do corpo por relações de poder, a matriz comum das ciências sociais contemporâneas.
O que se depreende ainda na obra de Foucault é a constante busca pelas secretas estruturas de Poder. Assim, seu objetivo consiste, fundamentalmente, em desconstruir esse mesmo Poder – seja institucionalmente ou na esfera da linguagem (tanto que o próprio Foucault descreve seu método como “arqueologia do saber” – sendo que o objeto de estudo está na verdade – considerada como o produto do discurso).
Vigiar e Punir foi publicado, em 1975, com o título original (em francês) de Surveiller et Punir: Naissance de la prison. Logo na página 23 podemos ler o propósito da obra segundo seu autor: “Objetivo deste livro: uma história correlativa da alma moderna e de um novo poder de julgar; uma genealogia do atual complexo científico-judiciário onde o poder de punir se apóia, recebe suas justificações e suas regras, estende seus efeitos e mascara sua exorbitante singularidade”(notaFOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir: o Nascimento da Prisão. 20ª ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 1999, página 23.).
Sendo assim, Vigiar e Punir firmou-se como um verdadeiro tratado histórico sobre a pena (enquanto meio de coerção e suplício, meio de disciplina e aprisionamento do ser humano). Foucault se atentou para a face social e política de controle social aplicado ao Direito e às diferentes sociedades.
A obra em comento é dividida em quatro partesPrimeira Parte: Suplício, dividida em dois capítulos – O corpo dos condenados e A ostentação dos suplícios; Segunda Parte: Punição, dividida em dois capítulos – A punição generalizada e A mitigação das penas; Terceira Parte: Disciplina, dividida em três capítulos – Os corpos dóceis, Os recursos para um bom adestramento e o panoptismo; Quarta Parte: Prisão, dividida em três capítulos – Instituições completas e austeras, Ilegalidade e delinqüência e O carcerário.: longe de ser um romance, descreve, inicialmente, a punição de um parricida e todo o tipo de suplício aplicado a um criminoso da época. O procedimento adotado em cada etapa do ritual é descrito com riqueza de detalhes, vislumbrando ao leitor a percepção de todo o castigo imposto ao condenado.
Revela a forma de punição típica que perdurou até o fim do século XVII e princípio do século XVIII – predominantemente na Europa (onde o sistema de governo monárquico predominou). Destaca que o castigo da pena aplicado aos condenados travestia-se como um sofrimento físico incessante e brutal (aplicado, essencialmente, ao corpo humano). Narra, ainda, contextos históricos (principalmente os desenvolvidos na França com numerosas maneiras de aplicação de flagelo humano), onde o poder soberano do Estado mitigava qualquer forma de expressão dos direitos fundamentais inerentes a própria existência da pessoa enquanto sujeito de direitos.
Para Foucault, esta “disciplina”, do mesmo modo, também se manifesta nas escolas, indústrias e Forças Armadas modernas, justamente como uma maneira de exercer o poder para produzir sujeitos capazes de funcionar como engrenagens da nova sociedade pós-absolutismo. Diante disso, o Estado tenta transmitir a imagem de que esse poder exercido sobre os indivíduos é benevolente – algo que supostamente pretende apenas “corrigir” e “reformar” a pessoa, nunca apenas puni-la.
Este aspecto revela uma verdadeira intolerância contra qualquer desvio das “normas de comportamento” (principalmente aqueles que são dominantes na sociedade). Sendo assim, certos delitos ligados ao funcionamento financeiro de grande escala desse tipo de sociedade (“crimes do colarinho branco”) tendem a ser punidos de forma menos direta (com multas e outros dispositivos) do que outros crimes, como o roubo ou furto por exemplo.
A conclusão de Foucault é emblemática: há um verdadeiro paradoxo entre a realidade e o modelo de correção (designadamente o aprisionamento): de um lado, o modelo apresenta a intenção de reprimir (ou reduzir) a criminalidade e selecionar comportamentos delitivos, de outro, passa a promover a existência e progressão da mesma.
Questões sobre o tema proposto:
(UFPR – Defensor Público – PR/2014) “Deveríamos então supor que a prisão e de uma maneira geral, sem dúvida, os castigos, não se destinam a suprimir as infrações; mas antes a distingui-las, a distribuí-las, a utilizá-las; que visam, não tanto tornar dóceis os que estão prontos a transgredir as leis, mas que tendem a organizar a transgressão das leis numa tática geral de sujeições […] Em resumo, a penalidade não reprimiria pura e simplesmente as ilegalidades; ela as diferenciaria, faria sua economia geral”. (FOUCAULT, Michel, Vigiar e punir).
Pode-se afirmar que, de modo coerente com o pensamento foucaultiano, o tema central em Vigiar e punir é
a) a descrição de uma alteração nas práticas históricas que culminaria na construção histórica das ciências humanas e de um novo sujeito, sob a égide de uma tecnologia de exame constante e estudo de “casos”.
b) a afirmação da liberdade fundamental do ser humano, inerente à própria natureza humana.
c) a celebração da progressiva humanização das penas, indo das penas corporais às privativas de liberdade, menos invasivas quanto ao âmbito de autonomia individual.
d) a apresentação da essência do conceito de poder, que consiste na dominação exercida por um grupo de pessoas sobre determinada pessoa, sob a forma de uma vigilância constante, atualizando o conceito marxista de luta de classes.
e) a evolução da ideia de justiça penal, antes marcada pela justiça divina e cada vez mais centrada no ser humano, e, portanto, mais justa.
Alternativa correta: letra “a”: Foucault na sua obra Vigiar e Punir, teve como intuito descrever a história do poder de punir como história da prisão, cuja instituição muda o estilo penal, do suplício do corpo da época medieval para a utilização do tempo no arquipélago carcerário do capitalismo moderno. Este é epicentro da obra. De fato, basta observarmos a obra que perceberemos que existe uma preocupação com o estudo de “casos”: neste sentido, o livro Vigiar e Punir começa de plano, com uma narrativa de um caso. O ano é 1757, e as ruas do centro de Paris se enchem com os gritos de Robert-François Damiens, condenado por parricídio.
(FCC – Defensor Público – SP/2013) Para Michel Foucault, em Vigiar e punir, as razões de ser essenciais da reforma penal no século XVIII, também denominada Reforma Humanista do Direito penal, são constituir uma nova economia e uma nova tecnologia do poder de
(A) recuperar.
(B) ressocializar.
(C) humanizar.
(D) punir.
(E) descriminalizar.
Alternativa correta: letra “d”: para Foucault, no século XVIII, o projeto reformador (Reforma Humanista) estabeleceu a punição como um processo para requalificar os indivíduos como sujeitos de direito, integrantes do pacto social;