Suponhamos que o réu, após ser pronunciado pela prática de determinado crime doloso contra a vida – a exemplo do homicídio –, e de ter o seu recurso em sentido estrito desprovido junto ao Tribunal local, interponha recursos especial e/ou extraordinário, com razões endereçadas aos tribunais superiores – Superior Tribunal de Justiça e Supremo Tribunal Federal –, cujo objetivo principal é a modificação daquela decisão que o submetera a julgamento pelo Júri popular. Considerando, pois, que tais recursos, chamados de excepcionais, não são dotados de efeito suspensivo, e que o artigo 421 do Código de Processo Penal condiciona o encaminhamento dos autos ao presidente do Júri à preclusão da decisão de pronúncia, indaga-se: é possível a submissão do réu a julgamento perante os senhores jurados, que são os juízes naturais da causa, mesmo na pendência de apreciação de recursos excepcionais eventualmente interpostos em face da decisão de pronúncia?
Antes de responder ao questionamento proposto, é importante que se diga, ainda que de forma superficial, o real sentido da excepcionalidade que recai sobre os recursos especial e extraordinário. Isso porque, se a apresentação de um recurso ordinário pela parte, a exemplo do que ocorre com a apelação criminal, visa, como regra, reexaminar o ato decisório, de modo a propiciar no mesmo processo um resultado que lhe seja mais vantajoso, notadamente pela alteração de seu conteúdo após reanálise do acervo fático-probatório que foi utilizado na formação do convencimento do juiz sentenciante, os recursos excepcionais reclamam a observância de determinados requisitos formais, tal como a discussão acerca de questões de direito, em que a indicação do dispositivo violado – seja constitucional ou mesmo infraconstitucional – é fundamental ao seu próprio conhecimento.
A título de classificação dos recursos, é possível, de início, enquadrá-los como ordinários ou extraordinários.
“O recurso ordinário é aquele que autoriza a discussão sobre matéria de fato e de direito. Exemplos são a apelação, o recurso em sentido estrito, embargos infringentes, etc. Já os recursos extraordinários permitem que se discuta, apenas, questões de direito, sendo dirigidos, como regra, aos tribunais superiores, podendo se apontar o recurso especial para o STJ e o recurso extraordinário para o STF.”
Em relação à fonte recursal, extrai-se dos ensinamentos de Norberto AvenaProcesso penal: esquematizado, 6ª ed. – Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: MÉTODO, 2014, p.1125 a seguinte classificação:
“1. Recursos constitucionais: são aqueles que têm as suas hipóteses de cabimento contempladas na Constituição Federal, sem prejuízo de que aspectos relacionados à forma, rito, prazo e tramitação estejam disciplinados em legislação infraconstitucional. É o caso dos recursos extraordinário (art. 102, III, da CF), especial (art. 105, III, da CF) e ordinário (arts. 102, II, e 105, II, ambos da CF).
2. Recursos legais: são os previstos no Código de Processo Penal e na legislação processual especial. Exemplos: a apelação (art. 593 do CPP); o recurso em sentido estrito (art. 581 do CPP; art. 294, parágrafo único, da Lei 9.503/1997; e art. 2.º, III, do Decreto-lei 201/1967); os embargos infringentes (art. 609, parágrafo único, do CPP); a carta testemunhável (art. 639 do CPP) etc.”
Como visto, a origem dos recursos excepcionais está no próprio texto constitucional, em artigos assim redigidos:
“Art. 102. Compete ao Supremo Tribunal Federal, precipuamente, a guarda da Constituição, cabendo-lhe:
[…]
III – julgar, mediante recurso extraordinário, as causas decididas em única ou última instância, quando a decisão recorrida:
a) contrariar dispositivo desta Constituição;
b) declarar a inconstitucionalidade de tratado ou lei federal;
c) julgar válida lei ou ato de governo local contestado em face desta Constituição;
d) julgar válida lei local contestada em face de lei federal. (Incluída pela Emenda Constitucional nº 45, de 2004)”
“Art. 105. Compete ao Superior Tribunal de Justiça:
[…]
III – julgar, em recurso especial, as causas decididas, em única ou última instância, pelos Tribunais Regionais Federais ou pelos tribunais dos Estados, do Distrito Federal e Territórios, quando a decisão recorrida:
a) contrariar tratado ou lei federal, ou negar-lhes vigência;
b) julgar válido ato de governo local contestado em face de lei federal; (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 45, de 2004)
c) der a lei federal interpretação divergente da que lhe haja atribuído outro tribunal.”
Tais mecanismos, manejados em face de decisões proferidas em única ou última instância, objetivam aferir a correta aplicação das normas constitucionais, como na hipótese de interposição do extraordinário, e federais, quando da apresentação do especial, bem como a adequada interpretação da jurisprudência das Cortes de Superposição (STF e STJ), ao passo que os recursos convencionais, doutrinariamente classificados como ordinários, buscam, no âmbito de tribunais locais – Tribunais Regionais Federais e Tribunais de Justiça –, o reexame dos fatos e das provas constantes nos autos.
Dito isto, resta-nos solucionar, sobretudo no campo da jurisprudência dos tribunais superiores, o questionamento inicial, qual seja, se é possível ou não a realização da fase plenária no Júri, quando pendente o julgamento de recursos excepcionais – especial e/ou extraordinário – pelas Cortes Superiores. Para tanto, faz-se necessário verificar, não apenas o alcance da força preclusiva estabelecida pelo art. 421 do Código de Processo Penal, mas também o efeito atribuído ao recurso excepcional apresentado em face da decisão de pronúncia, por ocasião do juízo de admissibilidade (prelibação).
Aliás, por juízo de prelibação entende-se a necessária observância aos pressupostos recursais, objetivos (cabimento, tempestividade, formalidades legais e preparo) e subjetivos (legitimidade e interesse), o que, se atendidos, possibilitará o recebimento e, posterior conhecimento, do recurso interposto, que ficará apto ao exercício do juízo de delibação (exame do mérito recursal).
Denota-se, com isso, que a atribuição de efeito ao recurso ocorrerá no exato momento de seu recebimento. Contudo, aos recursos excepcionais, em regra, não se confere eficácia suspensiva, sendo eles recepcionados apenas no efeito devolutivo (submissão das questões ao juízo ad quem), o que permite, até mesmo, a execução antecipada de eventual condenação, seja ela aplicada no âmbito de competência originária pelo tribunal local, ou então confirmada em grau recursal.
É o que nos orienta a redação do artigo 637 do Código de Processo Penal, cujo teor evidencia que “o recurso extraordinário não tem efeito suspensivo, e uma vez arrazoados pelo recorrido os autos do traslado, os originais baixarão à primeira instância, para a execução da sentença”, aplicável, por extensão, ao expediente do especial. Essa temática também era tratada na Lei nº 8.038/90, que, na forma do parágrafo segundo do artigo 27, estabelecia tão somente a atribuição de efeito devolutivo aos recursos extraordinário e especial.
Com o advento do Novo Código de Processo Civil (Lei nº 13.105/2015), o qual revogou expressamente o artigo 27, § 2º, da Lei nº 8.038/90, a questão atinente à atribuição de efeito suspensivo a recursos excepcionais, cabível também na abrangência do processo penal, por aplicação analógica (artigo 3º do CPP), passou a ser disciplinada pelos artigos 995 c/c 1.029, que em seu § 5º prevê a possibilidade de requerimento obstativo ao cumprimento da decisão, à luz do caso concreto, a ser direcionado nos seguintes termos:
“I – ao tribunal superior respectivo, no período compreendido entre a publicação da decisão de admissão do recurso e sua distribuição, ficando o relator designado para seu exame prevento para julgá-lo; (Redação dada pela Lei nº 13.256, de 2016);
II – ao relator, se já distribuído o recurso;
III – ao presidente ou ao vice-presidente do tribunal recorrido, no período compreendido entre a interposição do recurso e a publicação da decisão de admissão do recurso, assim como no caso de o recurso ter sido sobrestado, nos termos do art. 1.037. (Redação dada pela Lei nº 13.256, de 2016).”
Sobre o alcance do artigo 421 do Código de Processo Penal, o qual prevê a necessidade de preclusão da decisão de pronúncia para prosseguimento na segunda fase do júri (juízo natural da causa), o Supremo Tribunal Federal se posicionou no sentido de que tal condicionante deve ser interpretada apenas no âmbito do exaurimento da instância local, isto é, até a apreciação de recursos ordinários interpostos contra a decisão de pronúncia. A esse respeito, confira-se:
“AGRAVO REGIMENTAL NO HABEAS CORPUS. HOMICÍDIO QUALIFICADO. TRIBUNAL DO JÚRI. PRONÚNCIA. PRECLUSÃO. RECURSO ESPECIAL. EFEITO SUSPENSIVO. INEXISTÊNCIA. DESNECESSIDADE DE SOBRESTAMENTO DA AÇÃO PENAL DE ORIGEM. 1. A preclusão da pronúncia, dada a ausência de efeito suspensivo aos recursos de natureza extraordinária (recursos especial e extraordinário – art. 637 do CPP), coincide com o exaurimento da matéria em recursos inerentes ao procedimento do júri apreciados pelas instâncias ordinárias. A interposição de recursos especial ou extraordinário contra acórdão confirmatório da decisão de pronúncia não obstaculiza a realização do julgamento pelo Tribunal do Júri. Precedente: HC 130.314/DF, Rel. Min. Teori Zavascki, 2ª Turma, DJe 05.12.2016. 2. Nesse espectro, o acórdão atacado converge para jurisprudência desta Corte no sentido de que “o § 2º do artigo 584 do Código de Processo Penal, a revelar a eficácia suspensiva do recurso da pronúncia, diz respeito à impugnação direta, não alcançando a que se faça mediante recurso de natureza extraordinária – sabidamente desprovido, por força de lei, da citada eficácia” (RHC 86.468/PB, Rel. Min. Marco Aurélio, 1ª Turma, j. 19.8.2008, DJe 20.02.2009). 3. A nulidade suscitada em sede de recurso especial pelo suposto vício de linguagem da decisão de pronúncia não restou evidenciada, mesmo após recursos interpostos perante a Corte Superior. 4. Agravo regimental conhecido e não provido.” (HC 118357 AgR, Relator(a): Min. ROSA WEBER, Primeira Turma, julgado em 16/10/2017, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-247 DIVULG 26-10-2017 PUBLIC 27-10-2017).
No mesmo sentido, eis o posicionamento do Superior Tribunal de Justiça:
“PROCESSO PENAL. EMBARGOS DE DECLARAÇÃO NO AGRAVO REGIMENTAL NO AGRAVO REGIMENTAL NO AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL. HOMICÍDIO QUALIFICADO. OCULTAÇÃO DE CADÁVER. DECISÃO DE PRONÚNCIA. PLEITO DE IMPRONÚNCIA. SÚMULA N. 7/STJ. NULIDADES. INOCORRÊNCIA. ALEGAÇÃO DE OFENSA AO PRINCÍPIO DA CORRELAÇÃO ENTRA A DENÚNCIA E A DECISÃO DE PRONÚNCIA. INOCORRÊNCIA. REEXAME DA CAUSA. INVIABILIDADE. OMISSÃO E CONTRADIÇÃO. INEXISTÊNCIA DE VÍCIOS NA DECISÃO EMBARGADA. EMBARGOS REJEITADOS. I – São cabíveis embargos de declaração quando, no acórdão embargado, houver ambiguidade, obscuridade, contradição ou omissão, a teor do disposto no art. 620, caput, do Código de Processo Penal. Podem também ser admitidos para a correção de eventual erro material, consoante entendimento preconizado pela doutrina e jurisprudência. II – Não há, na hipótese, qualquer vício a ser sanado. O aresto embargado foi muito claro ao negar provimento ao agravo regimental, resolvendo as teses apresentadas nos recursos precedentes, quais sejam: a) não demonstração do alegado dissídio jurisprudencial; b) ausência de omissão por violação ao art. 619, caput, do CPP (em relação a comprovação da materialidade e dos indícios suficientes de autoria delitivas); c) alegação de ocorrência de nulidades na decisão de pronúncia (por ausência de prejuízo – pas de nullité sans grief); d) impossibilidade de se revolver o acervo fático-probatório delineado nos autos (Súmula n. 7/STJ); e, e) bem como sobre a observância do princípio da correlação entre a denúncia e a decisão de pronúncia. III – Na linha do que decidido pela Primeira Turma do Supremo Tribunal Federal: ‘A preclusão da decisão de pronúncia, dada a ausência de efeito suspensivo aos recursos de natureza extraordinária (recursos especial e extraordinário – art. 637 do CPP), coincide com o exaurimento da matéria em recursos inerentes ao procedimento do Júri apreciados pelas instâncias ordinárias. A interposição de recursos especial ou extraordinário contra acórdão confirmatório da decisão de pronúncia não obstaculiza a realização do julgamento pelo Tribunal do Júri’ (AgR no HC n. 118.357/PE, Primeira Turma, Relª. Minª. Rosa Weber, DJe 27/10/2017). Embargos de declaração rejeitados, com determinação às instâncias ordinárias para que procedam à realização da sessão de julgamento pelo Tribunal do Júri.” (EDcl no AgRg no AgRg no AREsp 1027534/BA, Rel. Ministro FELIX FISCHER, QUINTA TURMA, julgado em 14/11/2017, DJe 22/11/2017).
Logo, em razão da preclusão da decisão de pronúncia no âmbito da instância ordinária, revela-se possível a preparação do processo para julgamento em plenário do júri – julgamento da causa –, consoante disposto no artigo 422, e seguintes do Código de Processo Penal, o que, invariavelmente, representa o respeito ao trâmite processual célere, sem perder de vista as garantias constitucionais do contraditório e da ampla defesa.
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