Em seu sistema de coibição à violência doméstica e familiar contra a mulher, a Lei 11.340/06 dispõe sobre a aplicação de diversas medidas protetivas de urgência. O artigo 22 elenca as que obrigam o agressor, ao passo que os artigos 23 e 24 estabelecem as que beneficiam diretamente a ofendida.
Para garantir a execução dessas medidas, é cabível a prisão preventiva quando presentes os requisitos expostos nos arts. 312 e 313 do CPP, dentre eles (principalmente), quando a conduta do agente configurar, além de descumprimento de uma medida protetiva, a prática também de um crime.
Ocorre que, paralelamente à possibilidade de decretação da prisão preventiva, muito se debateu a respeito da caracterização do crime de desobediência tipificado no art. 330 do Código Penal. Com efeito, muitos advogavam a tese de que descumprir medida protetiva imposta por decisão judicial nada mais era do que desobedecer a uma ordem legal de funcionário público. Há, inclusive, decisão do Tribunal de Justiça do Distrito Federal na qual se reconhece o crime:
“Consoante entendimento majoritário desta egrégia Corte de Justiça, o descumprimento de medida protetiva prevista na Lei Maria da Penha configura crime de desobediência, porquanto as medidas legais que podem ser aplicadas no caso da prática de violência doméstica e familiar, sejam as previstas na legislação processual civil (caput e §§ 5º e 6º do artigo 461 do CPC, por força do que dispõe o § 4º do artigo 22 da Lei Maria da Penha) ou na legislação processual penal (prisão preventiva, de acordo com o inciso III do artigo 313 do CPP), não têm caráter sancionatório, mas se tratam, na verdade, de medidas de natureza cautelar, que visam, portanto, assegurar a execução das medidas protetivas de urgência” (TJDF – Embargos Infringentes 2013.06.1.000280-8, j. em 08.07.2013, Rel. p/ acórdão Humberto Adjuto Ulhôa).
Esta orientação, todavia, não encontrou ressonância no STJ, que, considerando a natureza progressiva das medidas protetivas, que poderiam evoluir até mesmo à prisão preventiva caso as mais brandas se mostrassem insuficientes para proteger a vítima, vinha afastando o crime:
“(…) De acordo com a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, o crime de desobediência apenas se configura quando, desrespeitada ordem judicial, não existir previsão de outra sanção em lei específica, ressalvada a previsão expressa de cumulação. Precedentes. 4. A Lei n. 11.340⁄2006 prevê consequências jurídicas próprias e suficientes a coibir o descumprimento das medidas protetivas, não havendo ressalva expressa no sentido da aplicação cumulativa do art. 330 do Código Penal, situação que evidencia, na espécie, a atipicidade da conduta. Precedentes” (HC 338.613/SC, DJe 19/12/2017).
Mas a entrada em vigor da Lei 13.641/18 põe fim à celeuma: insere-se na Lei 11.340/06 um tipo penal específico para punir a desobediência a decisões judiciais que impõem medidas protetivas.
De acordo com o art. 24-A da Lei 11.340/06, pune-se com detenção de três meses a dois anos a conduta de descumprir decisão judicial que defere medidas protetivas de urgência previstas na mesma lei. O crime é próprio, pois só pode ser cometido por quem deve observância às medidas protetivas decretadas.
A pena abstratamente cominada, como se nota, faz com que o delito se adéque à definição de infração penal de menor potencial ofensivo. Mas, tratando-se de crime tipificado na Lei 11.340/06, indaga-se se seriam admissíveis os benefícios de que trata a Lei 9.099/95.
Antevemos a formação de duas correntes. A primeira, argumentando que a Lei 11.340/06 impede expressamente a aplicação de medidas despenalizadoras em fatos envolvendo violência doméstica e familiar contra a mulher, em interpretação sistemática defenderá que no crime de desobediência de medidas protetivas esta forma de violência não deixa de existir, ainda que de forma subjacente. Embora o sujeito passivo imediato seja o Estado, à conduta de quem ignora determinação judicial desta natureza é ínsito não só o desprezo à própria decisão, mas também o mesmo sentimento de menosprezo à dignidade da ofendida, que continua sendo constrangida. A segunda corrente, por outro lado, permitirá as medidas despenalizadoras sob o argumento de que não se trata – na estrita definição do art. 41 da Lei 11.340/06 – de crime praticado com violência doméstica e familiar contra a mulher, mas sim de crime contra a Administração Pública. Não é possível estender a interpretação do art. 41 para abranger infrações penais que em nada se relacionam com a definição de violência doméstica de que trata o art. 5º da mesma lei. Tratando-se de benefícios de natureza penal, somente o óbice indubitável poderia se impor.
A nosso ver, dada a disposição — que veremos logo a seguir — que veda a concessão de fiança pela autoridade policial, a intenção do legislador foi realmente retirar o crime do art. 24-A da esfera das infrações de menor potencial ofensivo, tal como ocorre com as demais infrações penais envolvendo violência doméstica e familiar contra a mulher. Conferir apenas ao juiz a análise do cabimento da fiança deixa clara a gravidade que o legislador quis atribuir ao delito.
Há na Lei 11.340/06 determinadas medidas protetivas de índole civil e que podem ser decretadas por juiz com competência civil – como a prestação de alimentos provisórios. Nos termos do § 1º do art. 24-A, não importa, para a caracterização do crime de desobediência, a natureza da competência do juiz que decretou as medidas protetivas, ou seja, comete o crime o agente que descumpre uma medida protetiva decretada no bojo de um procedimento civil tanto quanto se descumpre uma medida resultante de um procedimento criminal, o que, evidentemente, faz todo o sentido, pois não haveria razão para desprestigiar uma medida protetiva apenas por não ter sido decretada por um juiz criminal. Seria, aliás, desnecessária disposição legal a equiparar as medidas para os efeitos da desobediência. Trata-se apenas de uma precaução adotada pelo legislador, que agiu com o propósito de evitar o surgimento de controvérsias a esse respeito.
De acordo com o disposto no § 2º do art. 24-A, no caso de prisão em flagrante apenas a autoridade judicial poderá conceder fiança. Trata-se, portanto, de uma limitação em relação ao que dispõe o Código de Processo Penal, que permite à autoridade policial arbitrar a fiança nos casos de infração penal cuja pena máxima não seja superior a quatro anos.
A relevância prática deste dispositivo depende diretamente da já discutida natureza atribuída ao crime do art. 24-A, ou seja, se se trata ou não de crime de menor potencial ofensivo. Admitindo-se que assim seja, torna-se muito difícil o arbitramento de fiança, pois em infrações desta natureza não se lavra auto de prisão em flagrante nem se instaura inquérito policial. Uma vez que tome conhecimento da prática do crime, a autoridade policial lavra um termo circunstanciado, e, nos termos do art. 69, parágrafo único, da Lei 9.099/95, “Ao autor do fato que, após a lavratura do termo, for imediatamente encaminhado ao juizado ou assumir o compromisso de a ele comparecer, não se imporá prisão em flagrante, nem se exigirá fiança” – grifamos.
Por fim, o § 3º do art. 24-A dispõe que a caracterização do crime de desobediência não prejudica a aplicação de outras sanções cabíveis em decorrência do descumprimento das medidas protetivas. Com efeito, as medidas protetivas têm caráter progressivo, que pode fazê-las evoluir até a decretação da prisão preventiva. Esta progressividade não é influenciada pelas consequências que o agente possa vir a sofrer em razão da prática do crime.
Trata-se, como se vê, de uma resposta do legislador à lacuna normativa que impedia a punição específica de atos de desobediência relativos a medidas protetivas. São inúmeros os casos em que vítimas de violência doméstica e familiar têm decretada em seu favor uma medida que, na prática, acaba esvaziada porque o agressor simplesmente ignora a ordem judicial. Agora, além das consequências processuais que podem advir do descumprimento, tem-se uma figura criminal específica para garantir a punição do agressor renitente.
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