1) Não há crime, quando a preparação do flagrante pela polícia torna impossível a sua consumação.
Flagrante deriva do latim flagrare, que significa queimar. Flagrantis é o ardente, brilhante, resplandecente, ou seja, o que é notório, visível, evidente. É comum, aliás, o emprego da expressão “no calor da discussão”, para se referir a um debate que se trava naquele exato momento. Está em situação de flagrante delito, portanto, aquele que é surpreendido no instante em que comete o crime, no calor de sua prática, em uma circunstância evidente, irrecusável, que traz a certeza visual do crime, e que permite, dada a notoriedade da situação e a eloquência da prova, a detenção imediata do agente.
Flagrante preparado (também denominado flagrante provocado), ocorre quando alguém, de maneira maliciosa, induz (provoca) o agente à prática de um crime e, ao mesmo tempo, impede que o mesmo se consume. Exemplo clássico é o da patroa que, desconfiada da empregada, deixa dinheiro ostensivamente à mostra enquanto vigia por detrás da porta. No momento em que a empregada toma o dinheiro ela a surpreende, tornando impossível a consumação do delito em vista da cilada que montou. Vê-se que o agente é colocado em uma situação para cometer o delito (também chamado crime de ensaio), que, porém, não se concretiza em virtude da precaução que sobre ele é tomada. Segundo a Súmula 145 do STF (corroborada por esta tese), “não há crime quando a preparação do flagrante pela polícia torna impossível a sua consumação”. É uma modalidade de crime impossível, na qual embora existindo o elemento subjetivo (a empregada quis furtar o dinheiro), o elemento objetivo desaparece na medida em que são tomadas cautelas que impedem a consumação do delito.
2) O tipo penal descrito no art. 33 da Lei n. 11.343/2006 é de ação múltipla e de natureza permanente, razão pela qual a prática criminosa se consuma, por exemplo, a depender do caso concreto, nas condutas de “ter em depósito”, “guardar”, “transportar” e “trazer consigo”, antes mesmo da atuação provocadora da polícia, o que afasta a tese defensiva de flagrante preparado.
O art. 33 da Lei 11.343/06 é composto por dezoito condutas típicas: importar (trazer de fora), exportar (enviar para fora), remeter (expedir, mandar), preparar (por em condições adequadas para uso), produzir (dar origem, gerar), fabricar (produzir a partir de matérias primas, manufaturar), adquirir (entrar na posse), vender (negociar em troca de valor), expor à venda (exibir para a venda), oferecer (tornar disponível), ter em depósito (posse protegida), transportar (levar, conduzir), trazer consigo (levar consigo, junto ao corpo), guardar (tomar conta, zelar para terceiro), prescrever (receitar), ministrar (aplicar), entregar (ceder) a consumo ou fornecer (abastecer) drogas, ainda que gratuitamente (amostra grátis).
Os vários núcleos verbais fazem do tráfico crime de ação múltipla (ou de conteúdo variado). Assim, mesmo que o agente pratique, no mesmo contexto fático e sucessivamente mais de uma ação típica (p. ex., depois de importar e preparar certa quantidade de droga, o agente traz consigo porções separadas para venda a terceiros), por força do princípio da alternatividade, responderá por crime único (mas, ao contrário do que induz o texto da tese nº 2, não necessariamente se faz presente a permanência, característica de apenas algumas ações nucleares: expor à venda, ter em depósito, transportar, trazer consigo e guardar).
Pois bem, a multiplicidade de condutas típicas faz com que as circunstâncias do tráfico de drogas sejam as mais variadas, o que provoca certas controvérsias a respeito da prisão em flagrante, especialmente nas situações em que policiais se fazem passar por adquirentes de drogas. Nestes casos, há quem sustente a ilegalidade do flagrante com base na tese nº 1 (súmula 145 do STF), pois, se policial induz o agente a efetuar a venda, dá-se o flagrante preparado.
Ocorre que, normalmente, a conduta de vender é antecedida de outras que já consumaram o crime e que são permanentes. O indivíduo que se encontra no ponto de venda de drogas há de tê-las transportado, trazido consigo, guardado, exposto à venda, etc. Por esta razão, nas situações em que policiais se passam por consumidores, fazem-no apenas para constatar que o traficante já havia praticado outras condutas capazes de consumar o crime em modalidade permanente, o que afasta a possibilidade de flagrante preparado:
“Em se tratando o tráfico de drogas, na condutas de “guardar”, “transportar” e “trazer consigo”, de delito de natureza permanente, a prática criminosa, in casu, se consumou antes mesmo da atuação policial (“compra fictícia”), o que afasta a alegação de flagrante preparado.” (AgRg no AgRg no REsp 1.455.188/SP, j. 19/02/2019)
3) No flagrante esperado, a polícia tem notícias de que uma infração penal será cometida e passa a monitorar a atividade do agente de forma a aguardar o melhor momento para executar a prisão, não havendo que se falar em ilegalidade do flagrante.
Ocorre o flagrante esperado quando a polícia, normalmente em decorrência de “denúncia” anônima ou após investigações que indicam que um crime está ocorrendo ou está prestes a ocorrer, arma uma estratégia para culminar na prisão do criminoso. Aqui a autoridade não induz o agente, mas, simplesmente, aguarda o desenrolar dos fatos, deixando-o agir livremente até o momento oportuno em que efetua a prisão. Imagine-se o exemplo no qual policiais vigiam, de longe, o entra e sai constante de pessoas de uma casa, sob suspeita de aquisição de drogas. Em dado instante, parecendo conveniente, os policiais ingressam na residência e, confirmando as suspeitas, prendem o traficante com grande quantidade de entorpecente. Nessa hipótese, o flagrante é plenamente válido, conforme entendimento unânime da doutrina e da jurisprudência:
“1. No flagrante preparado, a polícia provoca o agente a praticar o delito e, ao mesmo tempo, impede a sua consumação, cuidando-se, assim, de crime impossível, ao passo que no flagrante forjado a conduta do agente é criada pela polícia, tratando-se de fato atípico.
2. Na espécie, em momento algum os agentes induziram ou instigaram a recorrente a praticar o crime de tráfico de entorpecentes, sendo certo que, antes mesmo da abordagem policial, o delito em questão já havia se consumado em razão de haver trazido consigo e transportado a droga, o que afasta a mácula suscitada na irresignação. Precedentes.” (RHC 103.456/PR, j. 06/11/2018)
4) No tocante ao flagrante retardado ou à ação controlada, a ausência de autorização judicial não tem o condão de tornar ilegal a prisão em flagrante postergado, vez que o instituto visa a proteger o trabalho investigativo, afastando a eventual responsabilidade criminal ou administrava por parte do agente policial.
Fala-se também em flagrante prorrogado, diferido ou retardado. É legal esta hipótese de flagrante, a se verificar quando há um retardamento da atividade policial. Assim, a Lei 12.850/2013, que trata da criminalidade organizada, prevê a chamada ação controlada, na qual há um retardamento do flagrante, quando policiais, ao invés de agir prontamente, aguardam o momento oportuno para atuar, a fim de obter, com essa prorrogação, um resultado mais eficaz em sua diligência. Nos termos do art. 8° da Lei 12.850/13, “consiste a ação controlada em retardar a intervenção policial ou administrativa relativa à ação praticada por organização criminosa ou a ela vinculada, desde que mantida sob observação e acompanhamento para que a medida legal se concretize no momento mais eficaz à formação de provas e obtenção de informações”. Como ensina Eduardo Araújo da Silva, “a prática tem demonstrado que, muitas vezes, é estrategicamente mais vantajoso evitar a prisão, num primeiro momento, de integrantes menos influentes de uma organização criminosa, para monitorar suas ações e possibilitar a prisão de um número maior de integrantes ou mesmo a obtenção de prova em relação a seus superiores na hierarquia da associação” (Crime organizado: procedimento probatório. São Paulo: Atlas, 2003, p. 93).
Neste caso, como o nome indica, há maior controle da atividade policial, que, segundo o § 1º, do art. 8º, deve ser previamente comunicada ao juiz competente, que comunicará ao Ministério Público e poderá, se necessário, estabelecer limites. Nota-se, pois, que a lei impõe somente a comunicação da ação ao juiz, dispensando autorização judicial. A rapidez que é peculiar à ação controlada não se coaduna mesmo com a exigência de prévia autorização judicial. Imagine-se a situação em que, para aguardar a chegada dos demais membros de uma organização criminosa em determinado local, tivessem os policiais de obter um mandado judicial que autorizasse essa prorrogação da prisão. O insucesso da diligência estaria garantido, salvo se, por absurdo, se admitisse que o juiz acompanhasse tudo pessoalmente, em atitude que, além de muito difícil na prática, ainda infringiria o sistema acusatório que orienta nosso ordenamento jurídico.
Já a Lei 11.343/06, quando dispõe sobre a ação controlada no art. 53, impõe autorização judicial. Mas, justamente em virtude da natureza da diligência, o STJ firmou a tese de que a ação promovida sem autorização não torna ilegal a prisão:
“5. Embora o art. 53, I, da Lei n. 11.343⁄2006 permita o procedimento investigatório relativo à ação controlada, mediante autorização judicial e após ouvido o Ministério Público, certo é que essa previsão visa a proteger o próprio trabalho investigativo, afastando eventual crime de prevaricação ou infração administrativa por parte do agente policial que aguarda, observa e monitora a atuação dos suspeitos e não realiza a prisão em flagrante assim que toma conhecimento acerca da ocorrência do delito.
6. Ainda que, no caso, não tenha havido prévia autorização judicial para a ação controlada, não há como reputar ilegal a prisão em flagrante dos recorrentes, tampouco como considerar nulas as provas obtidas por meio da intervenção policial. Isso porque a prisão em flagrante dos acusados não decorreu de um conjunto de circunstâncias preparadas de forma insidiosa, porquanto ausente, por parte dos policiais que efetuaram a prisão em flagrante, prática tendente a preparar o ambiente de modo a induzir os réus à prática delitiva. Pelo contrário, por ocasião da custódia, o crime a eles imputado já havia se consumado e, pelo caráter permanente do delito, protraiu-se no tempo até o flagrante.” (REsp 1.655.072/MT, j. 12/12/2017)
5) Para a lavratura do auto de prisão em flagrante é despicienda a elaboração do laudo toxicológico definitivo, o que se depreende da leitura do art. 50, §1º, da Lei n. 11.343/2006, segundo o qual é suficiente para tanto a confecção do laudo de constatação da natureza e da quantidade da droga.
Dispõem o caput e o § 1º do art. 50 da Lei 11.343/06:
“Art. 50. Ocorrendo prisão em flagrante, a autoridade de polícia judiciária fará, imediatamente, comunicação ao juiz competente, remetendo-lhe cópia do auto lavrado, do qual será dada vista ao órgão do Ministério Público, em 24 (vinte e quatro) horas.
§ 1o Para efeito da lavratura do auto de prisão em flagrante e estabelecimento da materialidade do delito, é suficiente o laudo de constatação da natureza e quantidade da droga, firmado por perito oficial ou, na falta deste, por pessoa idônea.
O chamado laudo de constatação deve indicar se o material apreendido pode ser identificado como droga, incluída em lista da Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária, do Ministério da Saúde), apontando, ainda, sua quantidade. Trata-se de um exame provisório, apto, ainda que sem maior aprofundamento, a comprovar a materialidade do delito e, como tal, a autorizar a prisão do agente (ou a instauração do respectivo inquérito policial, caso não verificado o estado de flagrância). É firmado por um perito oficial ou, em sua falta, por pessoa idônea.
A par deste, há o laudo definitivo, presumivelmente mais complexo, que, como o nome indica, trará a certeza quanto à materialidade do delito, definindo, de vez, se o material pesquisado efetivamente se cuida de uma droga. Esse laudo, a teor do art. 159 do Código de Processo Penal, deve ser elaborado por perito oficial ou, na sua falta, “por 2 (duas) pessoas idôneas, portadoras de diploma de curso superior preferencialmente na área específica, dentre as que tiverem habilitação técnica relacionada com a natureza do exame”, nos termos do § 1º do mesmo dispositivo. Nada impede, outrossim, que o mesmo perito elabore o laudo de constatação e, mais adiante, o laudo definitivo (é isso o que ocorre na prática).
Por expressa disposição do § 1º acima citado, o laudo de constatação é suficiente para fundamentar a prisão em flagrante. Nada mais natural, evidentemente, pois se fosse imprescindível o laudo definitivo já num primeiro momento, não haveria razão para a existência do laudo de constatação, de caráter provisório e concebido justamente em virtude da imediatidade da situação de flagrância. Aliás, o STJ tem mitigado a necessidade do laudo definitivo até mesmo para a condenação. São situações excepcionais em que “a comprovação da materialidade do crime de drogas possa ser efetuada pelo próprio laudo de constatação provisório, quando ele permita grau de certeza idêntico ao do laudo definitivo, pois elaborado por perito oficial, em procedimento e com conclusões equivalentes. Isso porque, a depender do grau de complexidade e de novidade da droga apreendida, sua identificação precisa como entorpecente pode exigir, ou não, a realização de exame mais complexo que somente é efetuado no laudo definitivo. Os testes toxicológicos preliminares, além de efetuarem constatações com base em observações sensoriais (visuais, olfativas e táteis) que comparam o material apreendido com drogas mais conhecidas, também fazem uso de testes químicos pré-fabricados também chamados “narcotestes” e são capazes de identificar princípios ativos existentes em uma gama de narcóticos já conhecidos e mais comercializados. Nesse sentido, o laudo preliminar de constatação, assinado por perito criminal, identificando o material apreendido como cocaína em pó, entorpecente identificável com facilidade mesmo por narcotestes pré-fabricados, constitui uma das exceções em que a materialidade do delito pode ser provada apenas com base no laudo preliminar de constatação” (REsp nº 1544057-RJ – Rel. Reynaldo Soares da Fonseca, j. 26.10.2016, DJe 09.11.2016).
Para se aprofundar, recomendamos:
Curso: Carreira Jurídica (mód. I e II)
Curso: Intensivo para o Ministério Público e Magistratura Estaduais + Legislação Penal Especial
Livro: Código de Processo Penal e Lei de Execução Penal Comentados por Artigos