6) Eventual nulidade no auto de prisão em flagrante devido à ausência de assistência por advogado somente se verifica caso não seja oportunizado ao conduzido o direito de ser assistido por defensor técnico, sendo suficiente a lembrança, pela autoridade policial, dos direitos do preso previstos no art. 5º, LXIII, da Constituição Federal.
Uma vez ocorrida a prisão em flagrante, momento no qual a autoridade policial toma conhecimento da infração penal, uma das providências a seguir é a oitiva do agente, que nada mais é do que seu interrogatório, realizado no âmbito da investigação policial. Por isso mesmo é que determina a lei que tal oitiva deve observar, no que for aplicável, o disposto nos arts. 185 e seguintes do CPP, que tratam do interrogatório judicial.
Ocorre que esse ato judicial, com o advento da Lei nº 10.792/03, sofreu profundas alterações, com reflexos no interrogatório a ser realizado pela autoridade policial. Ressalte-se, por exemplo, a necessidade de a autoridade policial esclarecer ao indiciado que tem o direito de permanecer em silêncio e que tal silêncio não lhe acarretará qualquer prejuízo. Cumpre à autoridade policial, ainda, atentar aos dispositivos constitucionais dos incs. LXII e LXIII, do art. 5º, da Constituição, que asseguram ao indiciado, nos casos de prisão em flagrante, o direito de se comunicar com familiares ou advogado.
Diante dessa influência das regras do interrogatório judicial, discute-se sobre a necessidade de acompanhamento de defensor. Antonio Milton de BarrosBarros, Antonio Milton. A exigência de curador no interrogatório. Disponível em: . Acesso em: 11 nov. 2005 entende que se é certo que ao interrogatório policial devem ser observadas, “no que for aplicável, as regras previstas para o interrogatório judicial, por conseqüência passa a ser obrigatória, na polícia, a presença do defensor, por conta da nova disciplina do art. 185 do CPP”. Seu principal argumento – repita-se – consiste no fato de que, passando o art. 185 a exigir a presença de defensor no interrogatório e sendo aplicáveis as regras do interrogatório judicial, também para o inquérito, por consequência, se exigiria o acompanhamento de advogado.
Não é a orientação prevalecente. As regras que tratam do interrogatório judicial têm incidência no interrogatório policial naquilo que respeitem a natureza jurídica deste ato, que ocorre em um procedimento administrativo, de ordem inquisitiva e que busca a colheita de provas. A obrigatoriedade da presença do defensor, reclamado para o interrogatório em juízo (art. 185), não se coaduna com a natureza do procedimento policial. Claro que ele poderá estar presente, acompanhando o interrogatório, em atitude, aliás, que sempre foi admitida e que se acha reforçada pela Lei n. 13.245/2016 que, alterando o Estatuto da OAB, assegura ao advogado “assistir a seus clientes investigados durante a apuração de infrações, sob pena de nulidade absoluta do respectivo interrogatório ou depoimento” (art. 7º, inc. XXI, do EOAB). De resto, a assistência do advogado, em caso de prisão em flagrante, encontra previsão constitucional (art. 5º, LXIII, da CF), mas sempre em caráter facultativo, não como verdadeira obrigatoriedade, capaz, por exemplo, de acarretar o relaxamento do flagrante ante a ausência do defensor:
“2. Eventual nulidade no auto de prisão em flagrante por ausência de assistência por advogado somente se verificaria caso não tivesse sido oportunizado ao conduzido o direito de ser assistido por advogado, não sendo a ausência de causídico por ocasião da condução do flagrado à Delegacia de Polícia para oitiva pela Autoridade Policial, por si só, causa de nulidade do auto de prisão em flagrante (RHC n. 61.959⁄ES, Rel. Min. MARIA THEREZA DE ASSIS MOURA, Sexta Turma, Dje 4⁄12⁄2015). Isso porque a documentação do flagrante prescinde da presença do defensor técnico do conduzido, sendo suficiente a lembrança, pela autoridade policial, dos direitos constitucionais do preso de ser assistido.” (HC 442.334/RS, j. 21/06/2018)
7) Uma vez decretada a prisão preventiva, fica superada a tese de excesso de prazo na comunicação do flagrante.
Segundo o art. 306 do CPP, a prisão de qualquer pessoa e o local onde se encontre serão comunicados imediatamente ao juiz competente, ao Ministério Público e à família do preso ou à pessoa por ele indicada.
O dispositivo praticamente repete norma contida na Constituição, pela qual “a prisão de qualquer pessoa e o local onde se encontre serão comunicados imediatamente ao juiz competente e à família do preso ou à pessoa por ele indicada” (art. 5º, inc. LXII, da CF). Decorre, ainda, de outro princípio constitucional que veda a incomunicabilidade do preso, previsto no art. 163, inc. IV da Carta. Apenas incluiu a obrigatoriedade também de comunicação ao Ministério Público, já prevista, a propósito, no art. 10 da Lei Complementar no. 75/1993 (Lei Orgânica do Ministério Público da União). A Constituição não delimitou no que consistiria o vocábulo “imediatamente”. Não se trata, em nosso sentir, do prazo de 24 horas previsto no § 1º do art. 306. Este, com efeito, se refere ao envio do auto de prisão ao juiz. O “imediatamente” mencionado na Carta e no caput do art. 306 deve ser entendido, sob nossa ótica, como a comunicação efetivada durante a lavratura do flagrante ou, acrescentaríamos, assim que o conduzido é entregue à autoridade. Só assim se poderá conferir efetividade, por exemplo, à providência da família em acionar um advogado. Esperar-se 24 horas, quando o flagrante já se acha concluído, torna inútil essa iniciativa.
Embora o descumprimento da regra possa provocar o relaxamento da prisão em flagrante, o STJ tem decidido que a demora na comunicação, por si, não invalida a prisão. Se é assim, com mais razão há de ser afastada a invalidação se a prisão em flagrante é convertida em preventiva:
“1. Conforme entendimento amplamente consolidado, o prazo alegadamente desrespeitado não é peremptório, de modo que o desrespeito ao seu comando deve ser analisado sob o prisma da razoabilidade e da proporcionalidade, a partir do que não se identifica a alegada mácula.
2. Uma vez comunicado o flagrante, nos termos do art. 306 do Código de Processo Penal, o Magistrado deve decretar a prisão preventiva, caso verifique a existência dos requisitos preconizados nos arts. 312 e 313 do mesmo diploma legal. Precedentes. Na espécie, a inobservância do prazo de comunicação do flagrante configura mera irregularidade, já superada, diante da superveniente decretação da prisão preventiva do recorrente. Precedentes.” (RHC 102.209/SP, j. 18/09/2018)
8) Realizada a conversão da prisão em flagrante em preventiva, fica superada a alegação de nulidade porventura existente em relação à ausência de audiência de custódia.
A audiência de custódia é uma cautela que atende, basicamente, à Convenção Americana de Direitos Humanos (art. 7. 5), a impor a apresentação do preso a um juiz ou a autoridade que exerça função assemelhada, legalmente constituída. No mesmo sentido, o art. 9, 3 do Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos de Nova York. A matéria ainda não recebeu tratamento legal, conquanto esteja em trâmite, no Congresso, projeto de lei que a regulamenta. Por ora, vem prevista na Resolução n. 213/2015, do Conselho Nacional de Justiça e em normas internas de tribunais. Assegura-se prévia entrevista entre o preso com seu advogado ou, à falta deste, com um defensor público. Após o juiz formular perguntas relativas às circunstâncias da prisão, é concedida a palavra ao Ministério Público e à defesa técnica – nesta ordem –, que poderão fazer reperguntas compatíveis com a natureza do ato e requerer: I – o relaxamento da prisão em flagrante; II – a concessão da liberdade provisória sem ou com aplicação de medida cautelar diversa da prisão; III – a decretação de prisão preventiva; IV – a adoção de outras medidas necessárias à preservação de direitos da pessoa presa.
Caso a audiência não se realize, mas a prisão em flagrante seja convertida em preventiva, afasta-se a possibilidade de decretação de nulidade da prisão:
“Esta Corte tem entendimento reiterado segundo o qual, realizada a conversão da prisão em flagrante em preventiva, como no presente caso, fica superada a alegação de nulidade porventura existente em relação à ausência de audiência de custódia.” (RHC 104.319/RJ, j. 05/02/2019)
9) Não há nulidade da audiência de custódia por suposta violação da Súmula Vinculante n. 11 do STF, quando devidamente justificada a necessidade do uso de algemas pelo segregado.
De acordo com o art. 8º, inc. II, da Resolução 213/15 do CNJ, deve o juiz assegurar que a pessoa presa não esteja algemada, salvo em casos de resistência e de fundado receio de fuga ou de perigo à integridade física própria ou alheia, justificando-se por escrito qualquer excepcionalidade que enseje a manutenção do preso algemado. Desta forma, embora a regra seja de que o preso deve ser apresentado sem algemas na audiência, é possível que as circunstâncias justifiquem a imobilização, razão pela qual a justificativa afasta a nulidade:
“Nos termos do que dispõe o Enunciado 11 da Súmula Vinculante do Supremo Tribunal Federal – STF, o uso de algemas constitui medida que somente deve ser empregada em casos excepcionais, que devem ser justificados. No caso dos autos, não há falar em nulidade na prisão em flagrante, uma vez que, conforme se verifica dos autos, na audiência de custódia, a Magistrada justificou satisfatoriamente a necessidade do uso de algemas no momento da prisão em flagrante do recorrente, ressaltando que os policiais militares depararam-se com “situação extrema, com vítima fatal”. Ademais, é certo que, com a decretação da preventiva, fica superada a alegação da existência de irregularidades no flagrante, tendo em vista a superveniência de novo título apto a justificar a segregação.” (RHC 91.748/SP, j. 07/06/2018)
10) Não há nulidade na hipótese em que o magistrado, de ofício, sem prévia provocação da autoridade policial ou do órgão ministerial, converte a prisão em flagrante em preventiva, quando presentes os requisitos previstos no art. 312 do Código de Processo Penal – CPP.
O art. 310 do CPP dispõe que, ao receber o auto de prisão em flagrante, o juiz deverá fundamentadamente: I – relaxar a prisão ilegal; II – converter a prisão em flagrante em preventiva, quando presentes os requisitos constantes do art. 312 deste Código, e se revelarem inadequadas ou insuficientes as medidas cautelares diversas da prisão; III – conceder liberdade provisória, com ou sem fiança.
Com base no espírito que norteou a nova redação do art. 311 do CPP – que impede o juiz, na fase do inquérito policial, de decretar a prisão preventiva de ofício –, há doutrina no sentido de que, por consequência, o magistrado também não poderia converter a prisão em flagrante em prisão preventiva sem o prévio requerimento do Ministério Público ou sem a representação da autoridade policial nesse sentido. Tal conversão, com efeito, equivaleria a uma indireta decretação de ofício da preventiva. Não é a orientação que vem prevalecendo:
“Não há ilegalidade na conversão do flagrante em prisão preventiva de ofício, durante a investigação criminal, uma vez que a orientação desta Corte Superior é no sentido de que o Juízo de 1º Grau, ao receber o auto de prisão em flagrante, verificando sua legalidade e inviabilidade de substituição por medida diversa, pode convertê-la em preventiva, ao reconhecer a existência dos requisitos preconizados nos arts. 312 e 313 do Código de Processo Penal, ex vi do art. 310, inciso II do CPP, independente de representação ou requerimento, ante o risco de liberdade até o início da instrução processual” (RHC 107.503/MG, j. 21/02/2019).
11) Com a superveniência de decretação da prisão preventiva ficam prejudicadas as alegações de ilegalidade da segregação em flagrante, tendo em vista a formação de novo título ensejador da custódia cautelar.
Como vimos nos comentários à tese anterior, uma das providências que o juiz pode adotar quando recebe o auto de prisão em flagrante é o relaxamento da prisão ilegal. Trata-se de decorrência natural de mandamento constitucional, previsto no art. 5º., inc. LXV da Carta, pelo qual “a prisão ilegal será imediatamente relaxada pela autoridade judiciária”. As razões que justificam o relaxamento do flagrante podem ser as mais diversas e dependerão sempre da análise do caso concreto. Suponha-se a prisão de alguém dias após a ocorrência do crime, sem que tenha sido perseguido ou sem que, em sua posse, tenham sido encontrados objetos que façam presumir ser ele autor da infração. A inadequação a qualquer uma das hipóteses do art. 302 ensejará, fatalmente, o relaxamento do flagrante. A mesma solução será adotada caso lavrado o flagrante por autoridade que não detenha essa atribuição (por um guarda municipal, por exemplo, que embora autorizado a prender em flagrante não pode lavrar o respectivo auto); ou se lavrado o auto sem que se proceda à oitiva de nenhuma testemunha, da vítima e, tampouco, do condutor.
Frente ao caso concreto, é possível conceber a possibilidade de, uma vez relaxado o flagrante, de imediato ser decretada a prisão preventiva. Isso dependerá, por óbvio, da análise das razões pelas quais o flagrante foi relaxado. Assim, tomando por base os exemplos citados no acima, detectando o juiz que a hipótese não se tratava de flagrante, por não atender às hipóteses do art. 302 do CPP, deve relaxá-lo, podendo, contudo, de imediato decretar a preventiva, desde que, é claro, preenchidos os requisitos e pressupostos que justifiquem a medida. E desde que não seja cabível, em alternativa à prisão, a adoção de alguma medida cautelar.
Mas é possível que, à primeira vista, o juiz ignore a ilegalidade da prisão em flagrante e, em vez de relaxá-la, converta-a diretamente em preventiva. Segundo a orientação do STJ, a ilegalidade da prisão anterior não contamina a preventiva:
“Esta Corte Superior sedimentou o entendimento segundo o qual a alegação de nulidade da prisão em flagrante, fica superada com a conversão do flagrante em prisão preventiva, tendo em vista que constitui novo título a justificar a privação da liberdade.” (RHC 98.538/CE, j. 13/12/2018)
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