6) Quando o agente no exercício irregular da medicina prescreve substância caracterizada como droga, resta configurado, em tese, o delito do art. 282 do Código Penal – CP, em concurso formal com o do art. 33, caput, da Lei n. 11. 343/2006.
O art. 282 do Código Penal pune a conduta daquele que exerce (pratica, exercita), ainda que a título gratuito, a profissão de médico, dentista ou farmacêutico, sem autorização legal ou excedendo-lhe os limites.
No exercício sem autorização legal, o agente (qualquer pessoa) atua como médico, dentista ou farmacêutico sem estar diplomado por faculdade oficial. No excesso de limites, o profissional tem habilitação legal, mas a extrapola para exercer atividades outras ligadas à profissão (por exemplo, o clínico que se aventura a realizar cirurgias plásticas).
Se alguém exerce ilegalmente a medicina, a arte dentária ou a farmacêutica, é natural que o faça prescrevendo medicamentos. Se a prescrição se referir a substância classificada como droga, o agente responde em concurso formal com o crime de tráfico:
“Não existe a vinculação necessária, que se pretende estabelecer, da prática do crime previsto no art. 282 do Código Penal com o crime de tráfico de drogas. De fato, não se exige para a configuração do crime de exercício ilegal da medicina que o agente prescreva substância tida pela legislação como droga para os fins da Lei nº 11.343/2006. O vulgar exercício da medicina por parte daquele que não possui autorização legal para tanto é suficiente para a delimitação do tipo em destaque. Se o agente ao exercer irregularmente a medicina ainda prescreve droga, resta configurado, em tese, conforme já reconhecido por esta Corte em outra oportunidade (HC 9.126/GO, 6ª Turma, Rel. Min. Hamilton Carvalhido, DJ de 13/08/2001) o concurso formal entre o art. 282 do Código Penal e o art. 33, caput, da Lei nº 11.343/2006.” (HC 139.667/RJ, j. 17/12/2009)
7) É cabível a aplicação cumulativa das causas de aumento relativas à transnacionalidade e à interestadualidade do delito, previstas nos incisos I e V do art. 40 da Lei de Drogas, quando evidenciado que a droga proveniente do exterior se destina a mais de um estado da federação, sendo o intuito dos agentes distribuir o entorpecente estrangeiro por mais de uma localidade do país.
Dentre as diversas causas de aumento de pena para o crime de tráfico de drogas, duas delas são relativas à origem e à destinação das drogas. O inciso I do art. 40 da Lei 11.343/06 impõe punição mais severa se “a natureza, a procedência da substância ou do produto apreendido e as circunstâncias do fato evidenciarem a transnacionalidade do delito”. E o inciso V eleva a pena se “caracterizado o tráfico entre Estados da Federação ou entre estes e o Distrito Federal”.
O STJ decide reiteradamente sobre a aplicação destas duas majorantes. O teor das decisões mais relevantes, aliás, está registrado nas súmulas 587 e 607, segundo as quais a caracterização do tráfico interestadual e do tráfico transnacional dispensa a transposição de divisas estaduais e de fronteiras internacionais, bastando que se demonstre a destinação da substância proscrita.
O tribunal também firmou a orientação de que, uma vez demonstrada a origem estrangeira da droga que seria distribuída a diversos Estados da Federação, nada impede a imputação simultânea das duas majorantes. Note-se, contudo, que a majorante relativa ao tráfico interestadual pressupõe a prova de que a droga proveniente do exterior seria (ou foi) efetivamente distribuída em mais de um Estado, pois, tratando-se apenas de transporte que passa por várias unidades federativas, com destinação exclusiva a uma delas, não incide a majorante. Assim, sofre o duplo aumento de pena o tráfico de droga proveniente da Bolívia e que seria distribuída em Minas Gerais, em São Paulo e no Rio de Janeiro. Não o sofre, todavia, o tráfico de droga proveniente da Bolívia, que, com destino somente a São Paulo, passa pelos Estados do Mato Grosso, Goiás e Minas Gerais:
“I – É cabível a aplicação cumulativa das causas de aumento relativas à transnacionalidade e à interestadualidade do delito, previstas nos incisos I e V da Lei de Drogas, quando evidenciado que a droga proveniente do exterior se destina a mais de um estado da federação, sendo o intuito dos agentes distribuir o entorpecente estrangeiro por mais de uma localidade do país. Contudo, entendeu o acórdão recorrido não ser esta a hipótese. A droga que se destina a unidade federativa que não seja de fronteira, necessariamente percorrerá mais de um estado. Porém, inexistindo difusão ilícita do entorpecente no caminho e comprovado que toda droga será comercializada em um mesmo estado, de fato, não resta configurado o tráfico interestadual. Precedentes.
II – Nessa linha de raciocínio, quando não há difusão ilícita de drogas em mais de uma unidade federativa, o mero transporte de entorpecente por estados fronteiriços até o destino final, como na presente hipótese, é apto a configurar apenas a transnacionalidade do tráfico.” (AgRg no REsp 1.744.207/TO, j. 26/06/2018)
8) Para a configuração do crime de associação para o tráfico de drogas, previsto no art. 35 da Lei n. 11.343/2006, é irrelevante a apreensão de drogas na posse direta do agente.
O crime de associação para o tráfico consiste na reunião de duas ou mais pessoas para o fim de praticar, reiteradamente ou não, os crimes de tráfico de drogas (nas formas básica ou equiparada – art. 33, caput e § 1º) ou de tráfico de maquinário, aparelho, instrumento ou qualquer objeto destinado à fabricação, preparação, produção ou transformação de drogas (art. 34).
A consumação ocorre independentemente do efetivo cometimento do crime visado (que, caso venha a ocorrer, é imputado em concurso). Basta que se demonstre o ânimo de associação de caráter duradouro e estável. É natural, portanto, que se dispense a apreensão de droga na posse direta do agente para sua punição pela associação para o tráfico:
“A ausência de apreensão de drogas na posse direta do paciente não afasta a prática dos delitos ou sua flagrância, sobretudo em relação à associação ao tráfico.
(…)
Estas circunstâncias, aliadas ao resultado da busca e apreensão, tornaram legítimas as prisões procedidas, uma vez que os crimes então investigados são permanentes e, portanto, a consumação perdura mesmo no momento em que o agente não está na posse direta de drogas. Ademais, a configuração da associação para o tráfico não depende de apreensão de drogas na posse direta do agente.” (HC 441.712/SP, j. 21/02/2019)
9) Em se tratando de condenado pelo delito previsto no art. 14 da Lei n. 6.368/1976, deve-se observar as reprimendas mínima e máxima estabelecidas pelo art. 8º da Lei n. 8.072/1990 (3 a 6 anos de reclusão), por ser norma penal mais benéfica ao réu, impondo-se, inclusive, se for o caso, a exclusão da pena de multa.
O art. 14 da revogada Lei 6.368/76 punia a associação para o tráfico com reclusão de três a dez anos, além de cinquenta a trezentos e sessenta dias-multa. Ocorre que, em 1990, a Lei 8.072 trouxe em seu art. 8º disposição segundo a qual seria de três a seis anos de reclusão a pena prevista no art. 288 do Código Penal quando se tratasse de crimes hediondos, prática da tortura, tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins ou terrorismo.
Diante disso, surgiu a controvérsia: a Lei 8.072/90 revogou o preceito secundário do art. 14 da Lei 6.368/76, já que trazia disposição específica sobre a pena da associação criminosa (à época “quadrilha ou bando”) que envolvesse o crime de tráfico de drogas?
O STJ firmou a orientação de que sim, a partir da edição da Lei 8.072/90 a conduta criminosa do art. 14 da Lei 6.368/76 permanecia vigente, mas a pena cominada no dispositivo deveria ser considerada revogada pelo art. 8º da Lei dos Crimes Hediondos. E, tratando-se de novatio legis in mellius, não só pela diminuição da pena máxima, mas também pela abolição da pena de multa, deveria retroagir para beneficiar o agente:
“Esta Corte Superior já consagrou o entendimento segundo o qual o delito de associação estável para o tráfico ilícito de entorpecentes, prescrito no art. 14 da Lei n.º 6.368/76, conquanto em vigor à época dos fatos e, portanto, aplicável na espécie, tem sua cominação de pena prevista no art. 8.º da Lei n.º 8.072/90, tendo sido, nesse particular, derrogado.” (HC 264.136/RJ, j. 23/04/2013)
10) A expropriação de bens em favor da União, decorrente da prática de crime de tráfico ilícito de entorpecentes, constitui efeito automático da sentença penal condenatória.
Segundo o art. 63, inc. I, da Lei 11.343/06, ao proferir a sentença o juiz deve decidir sobre o perdimento do produto, bem, direito ou valor apreendido ou objeto de medidas assecuratórias.
A imposição legal de que o juiz decida sobre o perdimento conduz à conclusão de que não se trata de um efeito natural da sentença condenatória: “Em outras palavras, o juiz deve se pronunciar, textualmente, sobre os bens leiloados (e sobre os bens apreendidos que não foram objeto de tutela cautelar – vide § 1.º do art. 63) esclarecendo sobre seu destino e situação jurídica. Não basta apenas que exista uma sentença penal condenatória para que os bens sejam considerados definitivamente perdidos. Todos os bens que sofreram qualquer tipo de constrição ao longo do processo devem ser objeto de análise pelo magistrado” (GOMES, Luiz Flávio. Lei de Drogas comentada artigo por artigo, São Paulo: RT, 6ª ed., 2014, p. 127).
Mas o STJ firmou tese em sentido contrário, isto é, de que o perdimento de bens é efeito automático da sentença penal condenatória, pois se trata de decorrência lógica do art. 243, parágrafo único, da Constituição Federal, segundo o qual “Todo e qualquer bem de valor econômico apreendido em decorrência do tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins e da exploração de trabalho escravo será confiscado e reverterá a fundo especial com destinação específica, na forma da lei”:
“A expropriação de bens em favor da União pela prática do crime de tráfico ilícito de entorpecentes tem previsão em foro constitucional, nos termos do art. 243, parágrafo único, da Constituição da República e decorre da sentença penal condenatória, conforme regulamentado, primeiramente e de forma geral, no art. 91, II, do Código Penal, e posteriormente, de forma específica no art. 63 da Lei n. 11.343/2006.” (AgRg no AREsp 1.333.058/MS, j. 11/12/2018)
A respeito, aliás, da interpretação a ser conferida ao art. 243 no tocante aos bens utilizados para a prática criminosa do tráfico de drogas, decidiu o STF que, para o confisco, basta a simples constatação de que determinado bem foi utilizado para o cometimento do crime, independentemente de qualquer prova de habitualidade ou de exclusividade (RE 638.491/PR, j. 17/05/2017).
11) Não viola o princípio da dignidade da pessoa humana a revista íntima realizada conforme as normas administrativas que disciplinam a atividade fiscalizatória, quando houver fundada suspeita de que o visitante esteja transportando drogas ou outros itens proibidos para o interior do estabelecimento prisional.
A revista íntima é uma espécie de inspeção reservada em pessoas (notadamente familiares) que visitam os presos. A esta inspeção são submetidos todos os que pretendem visitar alguém recolhido a um estabelecimento prisional, mulheres e homens, sejam crianças, adolescentes, jovens, adultos ou idosos.
De acordo com a praxe, os visitantes inspecionados são obrigados a se despir por completo e agachar sobre um espelho, abrir com as mãos o ânus e a vagina, contraindo os músculos para que servidores do estabelecimento penal possam verificar se estão carregando instrumentos ilegais (drogas, materiais bélicos, acessórios para celulares, etc.) ou qualquer outro objeto proibido para dentro do presídio.
A prática da revista íntima tem sido muito criticada por doutrinadores que apontam ofensa não apenas à Constituição Federal mas também a Convenções Internacionais (em especial a Convenção Americana sobre Direitos Humanos). Alguns Estados já adotam a “revista íntima humanizada”, em que, na chegada à unidade prisional, o visitante faz um cadastro, no qual os agentes identificam se a pessoa está apta ou não a fazer a visita. A aptidão é avaliada levando-se em consideração características do apenado (comportamento, incidentes por atos de indisciplina, desacatos, ameaças, brigas internas, etc.). Realizado esse procedimento preliminar, inicia-se a revista manual, denominada “triagem”. Os agentes revistam manualmente os objetos que os visitantes querem levar para dentro do presídio e determinam o que pode ou não entrar. Em seguida, passam os objetos pelo raio x, onde é possível verificar o seu interior. O visitante é convidado a se sentar num detector de metal em forma de banco, que apontará qualquer objeto de metal que possa ter sido inserido da cintura para baixo. Como etapa seguinte, passa por um “portal”, que detecta possíveis metais ocultos em outras partes do corpo. Desse modo, seguindo essas fases, finaliza-se a revista sem humilhação.
Nessa linha, diversos estados já proíbem a revista íntima, dentre eles o de São Paulo, que editou a Lei 15.552/14. A norma estadual anunciou um prazo de 180 dias (iniciado dia 12 de agosto de 2014) para o governo do Estado adquirir scanners, detectores de metais e equipamentos de raio x para todas as suas unidades prisionais. Após a instalação dos equipamentos, os servidores ficariam proibidos de exigir que as visitas se despissem e fossem tocadas.
Mas as medidas contrárias que vêm sendo adotadas não significam que a revista íntima seja absolutamente vedada. Tomados os cuidados necessários para evitar a disseminação de procedimentos vexatórios, é possível, segundo o STJ, que a revista minuciosa seja implementada se houver fundada suspeita de que o visitante esteja transportando drogas ou outros itens proibidos para o interior do estabelecimento prisional:
“A jurisprudência desta Corte Superior de Justiça consolidou-se no sentido de que, havendo fundada suspeita de que o visitante do presídio esteja portando drogas, armas, telefones ou outros objetos proibidos, é possível a revista íntima que, por si só, não ofende a dignidade da pessoa humana, notadamente quando realizada dentro dos ditames legais, sem qualquer procedimento invasivo, exatamente como ocorreu na espécie.” (HC 460.234/SC, j. 11/09/2018)
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