Informativo: 664 do STJ – Direito Penal
Resumo: O administrador que desconta valores da folha de pagamento dos servidores públicos para quitação de empréstimo consignado e não os repassa a instituição financeira pratica peculato-desvio, sendo desnecessária a demonstração de obtenção de proveito próprio ou alheio, bastando a mera vontade de realizar o núcleo do tipo.
Comentários:
O caput do art. 312 do Código Penal pune o que a doutrina chama de peculato próprio, cuja ação material consiste na apropriação ou desvio de dinheiro, valor ou qualquer outro bem móvel, público ou particular, de que o agente público tem a posse em razão do cargo.
Na apropriação, o agente público se apodera de dinheiro, valor ou qualquer outro bem móvel que tem sob sua posse legítima, passando, arbitrariamente, a comportar-se como se dono fosse (uti dominus). A conduta que vitima a Administração Pública corresponde a um tipo especial de apropriação indébita (crime essencialmente patrimonial), qualificada pelo fato de ser o agente funcionário público no exercício da sua função, prejudicando não só a moral, mas igualmente o patrimônio (público ou particular).
A norma penal pressupõe que o agente inverta a posse alcançada “em razão do cargo”, ou seja, posse inerente às suas atribuições normais, não havendo peculato quando a entrega do bem tenha acontecido meramente “por ocasião do cargo”, sem qualquer vínculo com a competência funcional exercida. Inexistindo relação entre a posse invertida e o ofício desempenhado pelo agente, pode se configurar o delito de apropriação indébita; alcançada a posse da coisa mediante engodo, ardil ou outro meio fraudulento, abre-se espaço para o crime de estelionato; se, entretanto, a posse decorre de violência ou grave ameaça, estaremos diante de um delito de roubo.
No final de 2019, ao julgar a Ação Penal 814, o STJ atribuiu ao tipo do peculato-apropriação a conduta do administrador público que havia ordenado o desconto de parcelas de empréstimos consignados dos salários de servidores públicos e não as repassou à instituição financeira que concedera o crédito.
De acordo com a denúncia oferecida pelo Ministério Público, quando notificados, os réus alegaram que a falta de repasse ocorreu devido à crise econômica mundial (os fatos ocorreram em 2009 e 2010), que abalou as finanças públicas do Estado, com drástica redução de receitas, diante da qual não restou alternativa a não ser a retenção do dinheiro dos empréstimos consignados para fazer frente às despesas governamentais. Os réus alegavam, basicamente, a inexistência de elemento subjetivo especial, isto é, o propósito de obter benefício para si ou para terceiros.
O STJ refutou a tese defensiva diferenciando as situações em que o agente desvia verbas públicas destinadas a determinada finalidade e as aplica em outra área também na esfera pública (investir na pavimentação de vias de trânsito dinheiro que deveria ter sido destinado à saúde, por exemplo) daquela em que se dá destinação diversa a verbas particulares, como no caso da parcela descontada do salário, dinheiro pertencente aos servidores. Neste contexto, o tribunal concluiu que não importa se o agente público tinha a intenção de se locupletar, pois em nenhuma hipótese lhe seria dado conferir ao dinheiro destinação diversa:
“De início, ressalta-se que a diferença entre manipulação de dinheiro público ou particular tem especial importância na análise da questão do dolo na obtenção de proveito próprio ou alheio com desvio de finalidade das verbas e da simples aplicação inadequada dessa mesma verba. Essa discussão, que eventualmente surge na hipótese de o administrador público dar destino diverso ao previsto para a verba, mas ainda no âmbito público, a exemplo de deslocar montante que seria aplicado à saúde para a pavimentação de rodovia. Contudo, sendo o dinheiro particular, esse tipo de controvérsia se desfaz, pois não é dado ao administrador deslocar esse dinheiro para nenhuma outra finalidade que não a ajustada.
Assim, tratando-se de aplicação de dinheiro particular e tendo o administrador público traído, evidentemente, a confiança que lhe fora depositada, ao dar destinação diversa à ajustada, não é requisito para a configuração do crime a demonstração do proveito próprio ou alheio. Mesmo que necessário fosse, sendo o dinheiro de servidores, ou seja, particular, o proveito exsurge do fato em si.
O peculato-desvio é crime formal que se consuma no instante em que o funcionário público dá ao dinheiro ou valor destino diverso do previsto. A obtenção do proveito próprio ou alheio não é requisito para a consumação do crime, sendo suficiente a mera vontade de realizar o núcleo do tipo.
Desse modo, configura peculato-desvio a retenção dos valores descontados da folha de pagamento dos servidores públicos que recebiam seus vencimentos já com os descontos dos valores de retenção a título de empréstimo consignado, mas, por ordem de administrador, os repasses às instituições financeiras credoras não eram realizados”.
Para se aprofundar, recomendamos: