Sumário: I. Breves Apontamentos sobre o Direito à Saúde na CF/88; II. Orçamento, reserva do possível e discricionariedade administrativa; III. A judicialização da saúde e os impactos na execução orçamentária; IV. Conclusão.
I. BREVES APONTAMENTOS SOBRE O DIREITO À SAÚDE NA CF/88
A dignidade humana, fundamento da República Federativa do Brasil (art. 1º, III, da CF), é materializada pelos direitos fundamentais, pautados esses no duplo escopo de preservação da liberdade do indivíduo e, ainda, de promoção de sua inserção no contexto social.
Nessa ordem de ideias, a invariante jurídico-axiológica da dignidade humana pauta-se na liberdade, na democracia política, econômica e social, constituindo relevantíssimo vetor no campo hermenêutico – a irradiar efeitos por todo o ordenamento, portanto. A preservação da dignidade humana, portanto, encerra uma “fundamentalização” dos direitos sociais, os quais devem ser oferecidos em certo patamar a todos os seres humanos, advindo desta circunstância a ideia de piso vital ou de mínimo existencial, na medida em que todos os que participam da vida em sociedade devem ter direito a uma parcela dos frutos por ela produzidos.
A Constituição Federal de 1988 erigiu a cidadania como fundamento do Estado (art. 1º, II); previu a erradicação da pobreza e a diminuição das desigualdades sociais como um seu objetivo, portanto, perene (art. 3º, III); além de obtemperar que nossa ordem econômica, pautada na propriedade privada e na livre iniciativa, observe, por outro vértice, os ditames da justiça social, visando, assim, assegurar vida digna a todos.
Resulta clara, pois, a opção constituinte demonstrativa de sensível preocupação com a efetivação dos direitos sociais, ainda que em patamares mínimos. Nesse sentido:
Não obstante representar o termo enorme vagueza e subjetividade, temos a dignidade da pessoa humana como um valor fundamental do ser humano, que exige das demais pessoas e do Estado um tratamento reconhecedor e solidário, que garanta condições mínimas de subsistência econômica, social e política.
Registre-se, neste contexto, a lição de Heinrich Scholler, para quem a dignidade da pessoa humana apenas estará assegurada “quando for possível uma existência que permita a plena fruição dos direitos fundamentais, de modo especial, quando seja possível o pleno desenvolvimento da personalidade. (…)
Recente contribuição do Tribunal Constitucional de Portugal na matéria, ao reconhecer tanto um direito negativo quanto um direito positivo a um mínimo de sobrevivência condigna, como algo que o Estado não apenas não pode subtrair a indivíduo, mas também como algo que o Estado deve positivamente assegurar, mediante prestações de natureza material Cf. a decisão proferida no Acórdão n° 509 de 2002, versando sobre o rendimento social de inserção.
O Estado passa atuar no que concerne aos direitos sociais, tanto em uma perspectiva normativa mediante a previsão de mecanismos que permitam aos próprios indivíduos a proteção dos interesses envolvidos; reguladora das relações jurídicas para sanar desigualdades, como, registre-se, no espectro prestacional, de sorte a viabilizar direitos a prestações públicas vocacionadas, frise-se, a uma progressividade, a um paulatino aumento no potencial protetivo dos direitos sociais substantivos.
Recorrendo-se, uma vez mais, aos ensinamentos de Ingo Wolfgang Sarlet:
[…] os direitos fundamentais são amparados por “deveres de proteção estatais”, que operam como verdadeiros “imperativos de tutela”, em consonância com o dever geral de efetivação atribuído ao Estado. Daí é que […] é possível se extrair consequências para a aplicação e interpretação das normas procedimentais, mas também para uma formatação do direito organizacional e procedimental que auxilie na efetivação da proteção aos direitos fundamentais, de modo a se evitarem os riscos de uma redução do significado do conteúdo material deles”. Ou seja, o reconhecimento de direitos subjetivos fundamentais em favor dos cidadãos implica também o direito à sua “proteção mediante a organização e o procedimento”, a fim de lhes assegurar objetiva consecução por parte do Estado.
O direito fundamental à saúde, de acesso universal e igualitário (arts. 196 a 200 da CF), constitui um direito de todos e um dever do Estado, que não se limita à prestação de serviços públicos, incumbindo-lhe sua regulamentação, fiscalização e controle, ainda nos casos em que tal atividade seja engendrada pela inciativa privada, de maneira complementar, conforme dicção do art. 197 da CF.
O dever de assistência à saúde é competência comum dos entes federativos e, assim, solidária entre os entes públicos – descentralização com direção única em cada esfera de governo (art. 198, I, CF).
O art. 198 da CF estatui que as ações e serviços de saúde integram uma rede regionalizada e hierarquizada, assim entendida como organizada por circunscrições territoriais, com atendimento em distintos níveis de complexidade (primário, secundário e terciário), constituindo-se em um sistema único, vocacionado a disponibilizar atenção integral à saúde.
A própria CF promoveu a integração automática de todos os entes federativos no Sistema Único de Saúde – SUS, definindo seus objetivos no art. 196, caput, bem como no art. 198, II, assim como no art. 5º, incisos I a III, da Lei nº 8.080/1990 (Lei Orgânica da Saúde), segundo os quais tais objetivos não ficam restritos a ações assistenciais e preventivas, avançando no sentido de formulação de políticas de intervenção econômica e social, bem como em pesquisas e desenvolvimento.
Sobressai da própria natureza dos direitos sociais um ideal ético de solidariedade e de repartição dos frutos produzidos pela sociedade, de sorte a não alijar ou marginalizar um seu cidadão do exercício de uma plêiade de direitos básicos inerentes à condição de ser humano.
O sistema apresenta uma diretriz de descentralização, indicando a necessidade de que os serviços de atendimento sejam objeto de um processo de municipalização, no que atina com a gestão dos serviços dirigidos à população, mesmo em relação a equipamentos de outras esferas do Poder Público e aos pertencentes à inciativa privada prestadores do SUS mediante convênio ou contrato administrativo.
A título ilustrativo, calha trazer à colação excerto de informes constantes do relatório sistêmico de fiscalização da saúde – FISCSAÚDE, referentes aos anos de 2015/2016, consubstanciados no acórdão TCU– Plenário nº 1070/2017 – TC 000.810/2017-7, analíticos de aspectos relevantes para a compreensão da descentralização da execução orçamentária, no âmbito da função saúde.
Com efeito, o art. 71, inciso I, da Constituição Federal preceitua competir ao Tribunal de Contas da União apreciar, mediante parecer prévio, as contas prestadas anualmente pelo Presidente da República, em seu mister institucional de fiscalizar as políticas públicas sob os prismas de legalidade, legitimidade e economicidade. Vejamos:
A função Saúde
Gráfico 1: Percentual de execução orçamentária por modalidade de aplicação (liquidado) (2002-2016)
Fonte: Tesouro Gerencial
Colhe-se do gráfico apresentado que o maior percentual de execução orçamentária da função saúde no período analisado (2002 a 2016), se deu a título de transferências das verbas aos municípios – perfazendo aproximadamente metade de todo o importe destinado às ações e serviços públicos de saúde, circunstância decorrente da constatação de estarem, estes entes políticos, mais próximos aos cidadãos para fins de disponibilizar atenção básica à saúde, assim como atendimento hospitalar e ambulatorial, em nosso modelo federativo.
Tem-se, portanto, diante do cenário normativo exposto, tocar a responsabilidade pela efetividade do direito à saúde a todos os entes federados, consoante denota, ilustrativamente, a fundamentação lançada no julgado emanado do Egrégio Supremo Tribunal Federal, a seguir transcrito:
O recebimento de medicamentos pelo Estado é direito fundamental, podendo o requerente pleiteá-los de qualquer um dos entes federativos, desde que demonstrada sua necessidade e a impossibilidade de custeá-los com recursos próprios. Isso porque, uma vez satisfeitos tais requisitos, o ente federativo deve se pautar no espírito de solidariedade para conferir efetividade ao direito garantido pela Constituição, e não criar entraves jurídicos para postergar a devida prestação jurisdicional.
A positivação dos direitos sociais sinaliza justamente a preocupação constitucional com sua efetivação e com os valores albergados pela Lei Maior. Definem-se, assim, a conformação de seu conteúdo jurídico e sua reivindicabilidade pelos cidadãos, a teor do princípio da inafastabilidade do controle jurisdicional, inserto no art. 5º, XXXV, da CF. Nessa perspectiva, Maria Paula Dallari Bucci pontifica:
Um dos efeitos da aplicabilidade das normas programáticas é a proibição de omissão dos Poderes Públicos na realização dos direitos sociais. O direito processual que sanciona as omissões, enunciado na Constituição Federal (arts. 102, I, q e 103, par. 2º) seria um dos caminhos para efetivação de normas programáticas, em face da inércia do Poder Público na iniciativa das medidas legislativas ou administrativas necessárias à implementação do direito. Há, entretanto, inúmeras dificuldades a transpor para o completo funcionamento de um modelo de sancionamento das omissões do Poder Público, ainda mais nas hipóteses em que tais omissões decorram de inequívocas limitações de meios, dado o reconhecimento da escassez de recursos para atendimento pleno e simultâneo de todas as demandas sociais decorrentes dos direitos afirmados na Constituição.
Afigura-se-nos imprescindível o engajamento do Estado na consecução de políticas públicas que promovam a justa distribuição dos benefícios oriundos do crescimento econômico, com vistas a franquear a seus cidadãos existência digna, a qual pressupõe, indisputavelmente, acesso efetivo às ações e serviços públicos de saúde.
Neste sentido, calha trazer à colação o entendimento do Ministro Celso de Mello no julgamento do Agravo Regimental no Recurso Extraordinário 393.175-08:
Tal como pude enfatizar em decisão monocrática por mim proferida no exercício da Presidência do Supremo Tribunal Federal, em contexto assemelhado ao da presente causa (Pet 1.246/SC), entre proteger a inviolabilidade do direito à vida e à saúde, que se qualifica como direito subjetivo inalienável assegurado a todos pela própria Constituição da República (art. 5º, “caput” e art. 196), ou fazer prevalecer, contra essa prerrogativa fundamental, um interesse financeiro e secundário do Estado, entendo – uma vez configurado esse dilema – que razões de ordem ético-jurídica impõem ao julgador uma só e possível opção: aquela que privilegia o respeito indeclinável à vida e à saúde humanas.
O Pacto Internacional sobre direitos Econômicos, Sociais e Culturais, contempla expressamente o direito à saúde, verdadeiro corolário do direito à vida e, portanto, indispensável ao exercício da liberdade e dos demais direitos humanos.
O Ministro Celso de Mello, do Supremo Tribunal Federal, quando da relatoria da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 45/DF, asseverou que o arbítrio estatal não pode se opor à efetivação dos direitos sociais, donde foi firmada, paradigmaticamente, a necessidade de o Judiciário intervir em prol da “preservação, em favor dos indivíduos, da integridade e da intangibilidade do núcleo consubstanciador do ‘mínimo existencial’”. Em outra passagem de seu lapidar voto, o Ministro estatui:
Não se mostrará lícito, contudo, ao Poder Público, em tal hipótese, criar obstáculo artificial que revele – a partir de indevida manipulação de sua atividade financeira e/ou político-administrativa – o ilegítimo, arbitrário e censurável propósito de fraudar, de frustrar e de inviabilizar o estabelecimento e a preservação, em favor da pessoa e dos cidadãos, de condições materiais mínimas de existência. Cumpre advertir, desse modo, que a cláusula da “reserva do possível” – ressalvada a ocorrência de justo motivo objetivamente aferível – não pode ser invocada, pelo Estado, com a finalidade de exonerar-se do cumprimento de suas obrigações constitucionais, notadamente quando, dessa conduta governamental negativa, puder resultar nulificação ou, até mesmo, aniquilação de direitos constitucionais impregnados de um sentido de essencial fundamentalidade.
A Carta Política de 1988 exalta os direitos fundamentais e cria mecanismos tendentes a sua efetivação no plano concreto, de sorte a franquear aos cidadãos o mínimo existencial apto a permitir sua plena fruição, destacando como seus traços característicos a essencialidade e, pois, a irrenunciabilidade.
Nesse cenário, portanto, foram concebidos os direitos sociais como cláusulas pétreas – núcleo material intangível e imune ao poder de reforma da Lei Maior, cuja fruição efetiva diz intimamente com a dignidade da pessoa humana imanente a esta condição valor-fonte do sistema jurídico, a espraiar, assim, efeitos hermenêuticos em todas as suas searas.
II. ORÇAMENTO, RESERVA DO POSSÍVEL E DISCRICIONARIEDADE ADMINISTRATIVA
A concretização dos direitos sociais no Brasil enseja questões complexas, já que os recursos existentes na sociedade são escassos e sua prestação envolve custos vultosos. Nessa quadra, o Estado é obrigado a realizar “escolhas trágicas”, tendo que eleger prioridades dentre várias demandas igualmente legítimas, conforme assentado no julgamento da Suspensão de Tutela Antecipada STA 175, de relatoria do Min. Gilmar Mendes, julgada em 17.03.2010.
Assim, os direitos sociais prestacionais são contemplados em políticas públicas, entendidas como um conjunto de ações empreendidas pelo poder público visando certo objetivo de interesse público, para a consecução de seus programas de trabalho, formatados, por sua vez, em programas orçamentários, voltados ao alcance de certos resultados planejados.
Nesse contexto, de se entender o programa orçamentário como o conjunto orgânico de ações que, a partir de certos insumos, se presta à geração e entrega de produtos para seu público alvo – a sociedade, visando a realização do resultado contemplado pelo programa, tendente à promoção de mudanças nas condições de vida de cidadãos, comunidades e população em geral, devendo permitir monitoramento e avaliação por meio de indicadores e metas.
As políticas públicas, portanto, vocacionam-se à alteração da dinâmica socioestrutural, mediante a eleição das prioridades estatais nos diversos segmentos setoriais, com o consequente planejamento das ações e respectiva alocação de recursos financeiros tendentes à sua execução.
Segundo Maria Paula Dallari Bucci, políticas públicas são programas de ação governamental visando a coordenar os meios à disposição do Estado e as atividades privadas, para a realização de objetivos socialmente relevantes e politicamente determinados.
Extrai-se, nessa quadra, que as políticas públicas contribuem sobremodo para o controle prévio da discricionariedade administrativa, já que exigem a explicitação dos pressupostos materiais que orientam a tomada de decisão que, por seu turno, ensejará a atuação concreta no seio social, influenciando, assim, as vidas dos cidadãos, seus destinatários últimos.
A partir de 2013, o Tribunal de Contas da União (TCU) iniciou a elaboração de relatórios sistêmicos e temáticos sobre funções de governo específicas, denominados “Fisc”, com o objetivo de aprimorar o controle externo e subsidiar os trabalhos das Comissões do Congresso Nacional e de suas Casas Legislativas, em seu mister institucional de julgar as contas do Presidente da República.
O regime constitucional de financiamento mínimo da educação e da saúde apresenta conteúdo substantivo e finalidades relevantíssimas a cumprir, em conformidade com seus fundamentos e objetivos.
As prescrições legais de obrigações de fazer em saúde e educação criam vinculações substantivas aos gestores públicos, devendo os artigos 198 e 212 da Constituição da República e o art. 60 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias – ADCT, serem lidos conjuntamente e interpretados sistematicamente, se lhes conferindo, eficácia irradiante.
A fim de esclarecer as garantias, o constitucionalista Jorge Miranda pontua:
Clássica e bem atual é a contraposição dos direitos fundamentais, pela sua estrutura, pela sua natureza e pela sua função, em direitos propriamente ditos ou direitos e liberdades, por um lado, e garantias, por outro lado. Os direitos representam só por si certos bens, as garantias destinam-se a assegurar a fruição desses bens; os direitos são principais, as garantias são acessórias e, muitas delas, adjetivas ainda que possam ser objeto de um regime constitucional substantivo; os direitos permitem a realização das pessoas e inserem-se direta e imediatamente, por isso, nas respectivas esferas jurídicas, as garantias só nelas se projetam pelo nexo que possuem com os direitos.
O célebre livro “The cost of rights – Why liberty depends on taxes” – dos autores americanos Stephen Holmes e Cass R. Sunstein, em tradução livre, “O Custo dos Direitos – Por que a liberdade depende dos tributos”, problematiza a questão envolvendo o custeio dos direitos e a implementação de políticas públicas nos Estados Unidos no fim do século passado.
O livro centra-se no argumento de que direitos custam dinheiro e não podem ser protegidos sem apoio e fundos públicos, enveredando pela análise de questões orçamentárias e, lado outro, pelo enfoque de interesses que podem ser protegidos por indivíduos ou grupos mediante o uso de instrumentos governamentais.
Abordam os autores, portanto, o tema da reserva do possível, exortando a seguinte reflexão: “Taking rights seriously means taking scarcity seriously” – em tradução livre, “Levar os direitos a sério significa levar a escassez a sério”, em argumento nitidamente voltado a um diálogo com Ronald Dworkin.
Nesse cenário de escassez de recursos para fazer frente a todas as necessidades sociais propugnadas pela Lei Maior, obtempera, com coerência, Luciano Benetti Timm: “A realidade orçamentária não pode ser compreendida como peça de ficção. O desperdício de recursos públicos, em um universo de escassez, gera injustiça com aqueles potenciais destinatários a que deles deveriam atender”.
Esse conflito entre opções trágicas aparece na literatura jurídica constitucional sobre a conhecida teoria da “colisão de princípio ou de direitos fundamentais”. Sem aprofundar demais a discussão, nessa linha de pensamento, a solução do problema jurídico em questão passa por uma ponderação de princípios diante do caso concreto, avaliando-se as circunstâncias e o peso de cada princípio em um processo argumentativo que acontecerá em um tribunal. Entretanto, o método argumentativo proposto por esta escola é fundamentalmente retórico-discursivo e não oferece guias interpretativos, nem critérios desejáveis de previsibilidade e nem mesmo de precisão quanto ao melhor resultado à sociedade daquele debate que acontecerá no tribunal no caso concreto.
Para resolver o mesmo problema de colisão de princípios, qualquer um dos métodos oferecidos pela análise econômica certamente indicaria que existem “escolhas trágicas” a serem feitas. Se os recursos são escassos, certamente nem todas as necessidades sociais de saúde, educação, lazer serão atendidas. O diagnóstico, portanto, de colisão de direitos está correto e descreve bem a normatividade do texto constitucional. Entretanto, sua proposição para a solução do problema é insuficiente.
A solução, ou, em outras palavras, a ponderação concreta deve estar comprometida não só com a disputa argumentativa (melhor argumento apresentado), mas também com o resultado (a solução em jogo que tende a atender de modo mais abrangente um maior número de pessoas necessitadas dos recursos sociais (maior utilidade social e, portanto, de eficiência paretiana).
Élida Graziane Pinto ao analisar nosso arcabouço constitucional assevera, pautada, inclusive, em julgado do Egrégio Supremo Tribunal Federal, com o costumeiro acerto:
Tamanha é a estatura constitucional dos direitos sociais à saúde e à educação, bem como a garantia das suas eficácia imediata e consecução progressiva, nos moldes do artigo 5º, §§ 1º e 2º e do artigo 6º da CR/88, que, contra eles, não se admite a discricionária alegação da cláusula de “reserva do possível”. Para tal norte aponta a jurisprudência do próprio STF: A Administração não pode invocar a cláusula da ‘reserva do possível’ a fim de justificar a frustração de direitos previstos na Constituição da República, voltados à garantia da dignidade da pessoa humana, sob o fundamento de insuficiência orçamentária.
Prossegue a preclara doutrinadora, ao pontificar, lucidamente:
[…] os direitos à saúde e à educação, que reclamam prestações positivas do Estado e, por isso, estão sujeitos à vulnerabilidade fiscal das suas correspondentes políticas públicas e ao risco de descontinuidade do serviço público, devem ser amparados pela organização estrutural e pelo dever de gasto mínimo como um verdadeiro “direito a ter o custeio progressivo e suficiente de direitos” (artigos 198 e 212).
Nesse passo, a vinculação de receitas orçamentárias prevista constitucionalmente para destinação em pisos mínimos à saúde e educação consubstanciam, nos dizeres de Vidal Serrano Nunes Junior, verdadeiras garantias institucionais de tais direitos sociais, constituindo uma exceção ao princípio orçamentário da não-afetação.
Ainda com o escopo de exortar à reflexão sobre a complexidade envolvendo a escassez de recursos em um Estado de conformação jurídico-constitucional de índole social e prestacional, adverte Ana Paula de Barcellos:
A expressão reserva do possível procura identificar o fenômeno econômico da limitação dos recursos disponíveis diante das necessidades quase sempre infinitas a serem por eles supridas (…) significa que, para além das discussões jurídicas sobre o que se pode exigir judicialmente do Estado – e, em última análise da sociedade, já que é esta que o sustenta -, é importante lembrar que há um limite de possibilidades materiais para esses direitos. Em suma: pouco adiantará, do ponto de vista prático, a previsão normativa ou a refinada técnica hermenêutica se absolutamente não houver dinheiro para custear a despesa gerada por determinado direito subjetivo.
Obtempera-se, contudo, que os princípios da vedação ao retrocesso e à proteção insuficiente impõem cumprimento circunstanciado das ações contempladas no plano plurianual, até como prova de boa-fé objetiva em face de demandas judiciais – vedação ao venire contra factum proprium.
Nesse sentido, recorre-se ao abalizado magistério de Celso Antônio Bandeira de Mello:
Convém recordar que o Estado de Direito é a consagração jurídica de um projeto político. Nele se estratifica o objetivo de garantir o cidadão contra as intemperanças do Poder Público, mediante prévia subordinação do poder e de seus exercentes a um quadro normativo geral e abstrato cuja função precípua é conformar efetivamente a conduta estatal a certos parâmetros antecipadamente estabelecidos como forma de defesa dos indivíduos.
Dessume-se, pois, sobrevir do cenário normativo exposto a atribuição de maior ônus argumentativo ao legislador e ao administrador para a justificação adequada de eventual omissão na prestação do direito fundamental à saúde – de índole jurídico-constitucional omissão que, se comprovada infundada, franqueia margem de ação legítima para o Poder Judiciário, reclamando-se, portanto, um diálogo constitucional permanente entre os três poderes.
Nesse sentido, oportuna a lição de Gilberto Bercovici:
Os próprios norte-americanos entenderam que a ‘separação dos poderes’ não exigiria que os Poderes Legislativo, Executivo e Judiciário fossem inteiramente desvinculados uns dos outros. Na realidade, o essencial era, inclusive, a sua vinculação e interpenetração, realizada de maneira que cada um dos poderes obtivesse o controle constitucional sobre os demais. A mera declaração escrita dos vários limites não era suficiente. O mecanismo encontrado na Constituição norte-americana foi, em vez da separação total e absoluta dos poderes, a introdução do sistema de freios e contrapesos (checks and balances).
Nessa linha de raciocínio, inexistindo motivação suficiente para o não cumprimento do que foi concebido normativamente como referência legislativa mínima no plano plurianual, na lei de diretrizes orçamentárias e na lei orçamentária anual – (PPA, LDO e LOA), não haveria falar em indevida interferência pelo Poder Judiciário – o assim chamado ativismo judicial -, quando do controle de omissão, seja legislativa ou executiva, ou mesmo falha de execução, a despeito do estatuído pelo art. 2º da Lei Maior.
Insta trazer à colação sucinta e precisa definição do venire contra factum proprium, cunhada por Antônio Menezes Cordeiro, cuja transposição mostra-se válida para empreender-se o raciocínio de que os poderes legislativo e executivo devem vincular-se ao patamar protetivo já alcançado, no que diz com a tutela dos direitos sociais de índole prestacional, como, no caso, a saúde. Confira-se:
Trata-se de uma regra de profundo conteúdo ético que, por refletir princípio geral, independe de recepção legislativa, verificando-se nos mais diversos ordenamentos como uma vedação genérica à deslealdade. Na proibição do venire incorre quem exerce posição jurídica em contradição com o comportamento exercido anteriormente, verificando-se a ocorrência de dois comportamentos de uma mesma pessoa, diferidos no tempo, sendo o primeiro (o factum proprium) contrariado pelo segundo.
Gilberto Bercovici apresenta perspicaz enfoque sobre a questão envolvendo a judicialização das políticas públicas e a legitimidade democrática, nos seguintes termos:
O maior problema que a judicialização das políticas públicas pode causar consiste no risco da usurpação do poder constituinte do povo, por meio do engessamento da política pelo que ele chama de “interpretação jurisprudencial da Constituição”, comprometendo, assim a própria legitimidade democrática.
A partir deste protagonismo crescente dos tribunais, os juízes foram convertidos de instrumentos de garantia em legitimadores do sistema constitucional. De guardião do poder constituinte, o tribunal constitucional se pretende seu substituto, usurpando o poder constituinte do povo. A legitimidade da justiça constitucional na democracia implica na descrença dos representantes eleitos, considerando-se o juiz uma alternativa menos pior.
Em reforço argumentativo, importa não olvidar, ainda, o sistema de representatividade democrática inserto em nosso texto constitucional, do qual se extrai, com clareza, a legitimidade atribuída aos representantes eleitos para a formulação e execução das políticas públicas, em suas respectivas searas legislativa e executiva, e de cuja concretude sobressai a definição das reais prioridades alocativas do Estado.
III. A JUDICIALIZAÇÃO DA SAÚDE E OS IMPACTOS NA EXECUÇÃO ORÇAMENTÁRIA
Gustavo Amaral e Daniele Melo, em artigo intitulado “Há direitos acima dos orçamentos?”, correlacionam, de maneira bastante didática, a ideia de escassez à noção de trade-off. Confira-se:
A ideia de escassez traz consigo a noção de trade-off. Sem tradução exata para o português, podemos dizer que a alocação de recursos escassos envolve, simultaneamente, a escolha do que atender e do que não atender. Preferir empregar um dado recurso para um dado fim significa não apenas compromisso com esse fim, mas também decidir não avançar, com o recurso que está sendo consumido, em todas as demais direções possíveis. (…)
Não se trata de algo “mau”, mas sim de uma característica inexorável.
A questão da justiciabilidade das políticas públicas colocaria duas sérias perguntas para o jurista: “Em primeiro lugar, trata-se de saber se os cidadãos em geral têm ou não o direito de exigir, judicialmente, a execução concreta de políticas públicas e a prestação de serviços públicos. Em segundo lugar, trata-se de saber se e como o Judiciário pode provocar a execução de tais políticas.
Nessa quadra, questão importante quanto à temática da efetividade dos direitos sociais diz respeito à justiciabilidade.
Destaca-se – de partida – a dificuldade de obtenção de uma tutela jurisdicional satisfatória no âmbito dos direitos sociais, de caráter marcadamente coletivo, na medida em que, apesar do microssistema processual coletivo existente, estes procedimentos não têm se revelado aptos a darem vazão a pretensões judiciais de natureza metaindividual, preferindo-se, no mais das vezes, a busca pela tutela individual, causadora, em grande medida, da assim chamada litigiosidade repetitiva ou massificada, a contribuir para o assoberbamento do Poder Judiciário que reclama, por assim dizer, maior racionalização na outorga de uma prestação jurisdicional que se pretenda tempestiva, adequada e eficaz.
Não obstante tenha tomado maior relevo e demandado especial atenção dos juristas, economistas e especialistas em contabilidade pública na última década, sobretudo em razão dos impactos orçamentário-financeiros que pode ensejar no bojo da execução orçamentária de políticas públicas nesta área, convém ressaltar que a celeuma em torno da judicialização da saúde não é recente, consoante denota o seguinte julgado de nossa Corte Suprema, datado de 2000, relatado pelo Min. Celso de Mello:
O direito à saúde – além de qualificar-se como direito fundamental que assiste a todas as pessoas – representa consequência constitucional indissociável do direito à vida. O Poder Público, qualquer que seja a esfera institucional de sua atuação no plano da organização federativa brasileira, não pode mostrar-se indiferente ao problema da saúde da população, sob pena de incidir, ainda que por censurável omissão, em grave comportamento inconstitucional (…) O reconhecimento judicial da validade jurídica de programas de distribuição gratuita de medicamentos a pessoas carentes, inclusive àquelas portadoras do vírus HIV/AIDS, dá efetividade a preceitos fundamentais da Constituição da República (arts. 5º, caput, e 196) e representa, na concreção do seu alcance, um gesto reverente e solidário de apreço à vida e à saúde das pessoas, especialmente daquelas que nada têm e nada possuem, a não ser a consciência de sua própria humanidade e de sua essencial dignidade.
Merece menção, como forma de bem ilustrar a tensão dialética que envolve a escassez orçamentária e a efetividade do direito social fundamental à saúde, o posicionamento levado a efeito pelo Superior Tribunal de Justiça, no julgamento do REsp nº 1.389.952-MT, de relatoria do Ministro Herman Benjamin, ao erigir a primazia das despesas asseguradoras do mínimo existencial em face de todas as demais despesas governamentais, uma vez que:
[…] somente depois de atingido esse mínimo existencial é que se poderá discutir, relativamente aos recursos remanescentes, em quais outros projetos se deve investir. Ou seja, não se nega que haja ausência de recursos suficientes para atender a todas as atribuições que a Constituição e a Lei impuseram ao estado. Todavia, se não se pode cumprir tudo, deve-se, ao menos, garantir aos cidadãos um mínimo de direitos que são essenciais a uma vida digna.
Abordando a questão da crescente judicialização dos direitos sociais, dentre eles o direito à saúde, Luís Roberto Barroso pondera:
A judicialização e o ativismo judicial são primos. Vem, portanto, da mesma família, frequentam os mesmos lugares, mas não têm as mesmas origens. Não são gerados, a rigor, pelas mesmas causas imediatas. A judicialização, no contexto brasileiro, é um fato, uma circunstância que decorre do modelo constitucional que se adotou, e não um exercício deliberado da vontade política. Em todos os casos referidos acima, o Judiciário decidiu porque era o que lhe cabia fazer, sem alternativa. Se uma norma constitucional permite que dela se deduza uma pretensão, subjetiva ou objetiva, ao juiz cabe dela conhecer, decidindo a matéria. Já o ativismo judicial é uma atitude, a escolha de um modo específico e proativo de interpretar a Constituição, expandindo o seu sentido e alcance. Normalmente ele se instala em situações de retração do Poder Legislativo, de um certo descolamento entre a classe política e a sociedade civil, impedindo que as demandas sociais sejam atendidas de maneira efetiva.
Apenas a título ilustrativo, no ponto, sobreleva trazer à colação o seguinte gráfico extraído da Tomada de Contas TC 000.810/2017-7, Acórdão nº 1070/2017 – TCU – Plenário, em cujo bojo resta consubstanciado o relatório sistêmico de fiscalização da saúde – FISCSAÚDE 2015-2016, com a consolidação dos principais trabalhos do TCU na área de saúde no biênio:
Gráfico 2: Despesas do Ministério da Saúde para cumprir decisões judiciais (2008-2015)
Fonte: Ministério da Saúde
A judicialização da saúde tem sido objeto constante nos debates afetos às políticas públicas nessa área, mercê de seu potencial e crescente impacto na alteração de alocação de vultosos importes financeiros, por força de decisões judicias, além dos significativos efeitos na capacidade gerencial dos entes federados.
Em face de sua relevância, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) editou a Recomendação nº 31, de 30/03/2010, com o objetivo de instar os Tribunais de Justiça dos Estados e os Tribunais Regionais Federais, a adotarem medidas adequadas para subsidiar os magistrados e demais operadores do direito, no sentido de identificar soluções mais eficientes para as ações que envolvem a assistência à saúde. Posteriormente, por meio da Resolução nº 107/2010, foi criado o Fórum Nacional do Judiciário para monitorar as demandas de assistência à saúde.
Confira-se, a esse propósito, trechos de considerações insertas no FiscSaúde 2013 TC 032.624/2013-1, Acórdão 693/2014 – TCU Plenário, sobre o impacto de decisões judiciais no orçamento da saúde:
O aumento da quantidade de ações judiciais propostas em face do Poder Público com o fito de obter o fornecimento de medicamentos ou a realização de cirurgias e procedimentos tem preocupado os gestores da saúde nas três esferas. Os referidos administradores, muitas vezes, alegam que essa interferência despreza fluxos e protocolos existentes, impõe a realização de tratamentos extremamente onerosos e resulta numa inversão de prioridades nos gastos com medicamentos no âmbito das políticas públicas, o que gera um grave impacto na programação anual de saúde.
Essas alegações estão em consonância com as conclusões de um estudo realizado pela Consultoria Jurídica do Ministério da Saúde. Por meio desse estudo, foi constatado que os gastos daquele Ministério e de outros entes federados, efetuados visando cumprir decisões judiciais, tiveram significativa materialidade entre 2005 e 2011. Assim, por exemplo, o Estado de São Paulo, somente no ano de 2008, gastou R$ 400 milhões no atendimento às demandas judiciais relacionadas à saúde. Esse gasto é 567% maior que o observado em 2006, que foi de R$ 60 milhões. Aduz-se que, em 2010, os gastos do estado em comento com a judicialização da saúde chegaram a quase setecentos milhões. 165. Ainda segundo o estudo em tela, os valores gastos pelo Ministério da Saúde para atender decisões judiciais, por meio de depósito judicial ou repasses a estados e municípios para que esses entes federados cumpram a decisão judicial, saltaram de R$ 1.572.540,00, em 2006, para mais de R$ 22.106.700,00, em 2011, último exercício abrangido pelo trabalho. Isso equivale a um aumento de 1.406% em apenas cinco anos. 166. Uma consequência dessas ações judiciais pode ser o aumento dos custos de aquisição, uma vez que, na maioria das vezes, essas compras são realizadas por meio de dispensa de licitação e em volumes pequenos, tendo em vista a necessidade de atender apenas os pacientes abrangidos pelas decisões judiciais.
No mesmo sentido, a Advocacia-Geral da União (AGU), considerando a instrução deficiente de processos judiciais sobre a saúde, emitiu o Parecer nº 810/2012 –AGU/CONJURMS/HRP, relacionando elementos probatórios mínimos a serem apresentados nas ações em tela: existência de registro do medicamento na Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), possibilidade de alternativa terapêutica no SUS, informações sobre se o paciente possui plano privado de saúde e dados referentes a eventuais conflitos de interesse envolvendo o profissional que fez a prescrição.
Outro ponto digno de registro diz com a distribuição, em termos regionais, da chamada judicialização da saúde, advertindo-se, desde logo, para a constatação empírica de que o fenômeno milita em desfavor do objetivo constitucional inserto no art. 3º, da Lei Maior, qual seja, o de reduzir as desigualdades sociais e regionais. Vejamos.
O relatório sistêmico de fiscalização da saúde – FISCSAÚDE 2014– TC 002.142/20155, Acórdão 426/2016 – TCU – Plenário, que aborda aspectos orçamentários e financeiros, mediante o monitoramento e avaliação do sistema de saúde por meio de indicadores, apresenta, no que se refere às demandas judiciais para aquisição de medicamentos, um aumento do número ao longo dos anos: passou de cerca de seis mil ações, em 2010, para aproximadamente 12 mil, em 2014, com maior concentração nas regiões Sul e Sudeste.
Os dados podem sugerir que essa judicialização não depende tanto de aspectos socioeconômicos, mas do acesso da população ao sistema judicial, e apresentam impacto financeiro expressivo aos cofres públicos.
Gráfico 3: Decisões judiciais para aquisição de medicamentos por região de origem das demandas (2010-2013)
Fonte: CDJU/MS, 3/11/2014
Proporcionalmente à população, as decisões judiciais ainda estão concentradas na Região Sul, que, em 2013, teve aproximadamente 13,26 decisões por 100.000/hab., mais que duas vezes superior ao da segunda colocada, Região Centro-Oeste (6,01). A Região Norte, mais uma vez, é a que apresenta a menor taxa, com apenas 0,86 decisões judiciais por 100.000/hab.
Gráfico 4: Taxa de decisões judiciais para aquisição de medicamentos (por grupo de 100.000/hab. por região de origem das demandas (2010-2013))
Fonte: CDJU/MS, 3/11/2014, IBGE
O gráfico acima colacionado, também extraído do FISCSAÚDE 2014 TC 002.142/2015-5, Acórdão 426/2016 – TCU Plenário, denota que, entre 2010 e 2013, o número de decisões judiciais cresceu 41% na Região Sul, 64% na Centro-Oeste, 93% na Sudeste, 109% na Norte e 115% na Nordeste.
Gráfico 5: Número de decisões judiciais para aquisição de medicamentos por estado (2013)
Fonte: CDJU/MS, 3/11/2014, IBGE
O número de decisões por unidade da federação, em 2013, foi maior em Santa Catarina (1.999), Minas Gerais (1.669), Rio de Janeiro (1.654) e Rio Grande do Sul (1.125). Em termos proporcionais, aferindo-se o número de ações judiciais por grupo de 100 mil habitantes, observa-se que as demandas se concentram especialmente em Santa Catarina (30,1), Mato Grosso do Sul (20,4), Rio Grande do Norte (11,2), Rio de Janeiro (10,1) e Rio Grande do Sul (10,1).
A análise dos dados produzidos pelo Ministério da Saúde denota as distorções regionais aquilatadas pelo TCU, no que concerne à distribuição quantitativa regional do fenômeno da judicialização da saúde.
Nessa quadra, pontua-se, ainda, que mesmo no âmbito da judicialização, as ações coletivas seriam tendencialmente mais eficientes à garantia de direitos sociais, respeitando, por corolário, o princípio da igualdade, de sorte a dispensar igual tratamento àqueles que se encontrem numa idêntica situação fática.
Colhe-se, nesse sentido, uma vez mais, a percuciente abordagem de Luciano Timm: “E a ação coletiva é este mecanismo que permite atingir todas as pessoas que se encontrem na mesma situação fática sem a necessidade de recorrer a um sem-número de processos iguais que abarrotam as cortes com discussões idênticas”.
É também a ação coletiva que enseja a consideração dos efeitos da decisão para a sociedade. Vários interesses em jogo poderiam ser ponderados com a participação de vários entes políticos e sociais como se daria por meio do instituto do amicus curiae (ou seja, terceiros interessados na lide poderiam participar do feito, trazendo dados, cálculos, argumentos). Assim, talvez não ficássemos ainda dependendo de atuações isoladas do Ministério Público na promoção de ações coletivas e de ações civis públicas baseadas na opinião pessoal de promotores que muitas vezes não entram em acordo sequer com seus pares. (…)
Sustentamos que a melhor forma do Estado cumprir este seu papel é via criação de políticas públicas sociais e assistenciais dentro das orientações das melhores práticas administrativas e econômicas a fim de dotar o gasto de maior eficiência (ou seja, evitando o desperdício), atingindo um maior número de pessoas necessitadas.
Isso implica aceitar que nem todas as necessidades sociais serão supridas e que nem todas as injustiças serão resolvidas pelo ordenamento jurídico e pelos tribunais. Defendemos, finalmente, que a melhor forma de subsidiar políticas redistributivas é via tributação da renda, e não por meio do Direito Privado (“constitucionalização”), nem por meio dos tribunais, a não ser corretivamente via ações coletivas que atinjam o mesmo universo ou grupo de pessoas.
Nessa ordem de ideias, o sistema constitucional brasileiro atribuiria ao Poder Judiciário a responsabilidade pela verificação da adequada implementação das políticas públicas a cargo dos demais poderes da República – estas sim, vocacionadas, em essência, à consecução dos direitos econômicos e sociais de sorte a beneficiarem, com primazia, os menos favorecidos, ou seja, aqueles para quem as ações estatais diretas ostentariam maior potencial de atuar como um redutor da desigualdade social – desiderato constitucional – art. 3º, da CF.
Fernando Facury Scaff, em recente artigo intitulado “Orçamento republicano, justiça distributiva e a liberdade igual” parece convergir ao entendimento sufragado acima por Luciano Benetti Timm, ao estatuir, com eloquência:
O orçamento público é o local, por excelência, no qual o governo realiza a justiça distributiva, isto é, aquela na qual se redistribui as riquezas de uma sociedade. Trata-se do ambiente no qual o governo faz as escolhas trágicas de distribuição dos recursos arrecadados. Nele não se realiza a justiça comutativa, que é feita primordialmente perante o Poder Judiciário — através da lógica da comutatividade, isto é, dando a cada qual o que é seu. Se um inquilino deixar de pagar o aluguel devido, o proprietário do imóvel poderá ingressar em juízo pedindo seu pagamento, além de despejar o mau pagador — isso faz parte da justiça comutativa.
É possível ao Poder Judiciário realizar justiça distributiva, mas isso é raro. Busca-se justiça distributiva na ADI 5.595, de relatoria do ministro Lewandowski, através da qual se tenta recompor o valor inicial das verbas que foram congelas por 20 anos pela Emenda Constitucional 95. Isso já foi comentado em diversas colunas. Porém, como padrão, o Poder Judiciário realiza justiça comutativa.
Afirma-se, portanto, que o orçamento é o lócus por excelência da justiça distributiva, pois teoricamente arrecada-se de todos em prol de todos. Já imaginaram se fosse comutativo? Quem pagasse mais tributos receberia mais serviços públicos, e quem menos pagasse receberia menos — não lhes parece esdrúxulo?
A primazia das políticas públicas no que concerne a figurarem o mecanismo mais apropriado para a consecução dos objetivos de nossa República vem explicitada, com a costumeira precisão, por Celso Antônio Bandeira de Mello:
Nelas está plasmada a concepção de que não basta assegurar os chamados direitos individuais para alcançar-se a proteção do indivíduo. Impende considerá-lo para além de sua dimensão unitária, defendendo-o também em sua dimensão comunitária, social, sem o que lhe faltará o necessário resguardo. Isto é, cumpre ampará-lo contra as distorções geradas pelo desequilíbrio econômico da própria sociedade, pois estas igualmente geram sujeições, opressões e esmagamento do indivíduo. Não são apenas os eventuais descomedimentos do Estado que abatem, aniquilam ou oprimem os homens. Tais ofensas resultam, outrossim, da ação dos próprios membros do corpo social, pois podem prevalecer-se e prevalecem de suas condições socioeconômicas poderosas em detrimento dos economicamente frágeis.
Ainda sobre o instigante tema, nos dizeres de Luciano Benetti Timm, colhemos a seguinte importante problematização:
E mais, as decisões judiciais geram ‘efeitos de segunda ordem’. Vale dizer, juízes não apenas solucionam a lide, isto é, pacificam o conflito posto no processo pelo contraditório como dizem os processualistas, mas também geram precedentes e afetam as expectativas dos agentes privados. Os efeitos sentenciais podem ser denominados de ‘externalidades’ no jargão dos economistas. Estas consequências podem ser positivas para a sociedade ou negativas. Por isso devem ser levadas em consideração pelos órgãos decisórios.
Reclama-se, portanto, bastante prudência, parcimônia e autocontenção do Poder Judiciário, ao apreciar e decidir casos litigiosos versando o tema saúde, mormente considerado um cenário processual que se pauta pela criação de precedentes a serem formados nos Tribunais de superposição, a partir de casos reputados como representativos de uma dada controvérsia jurídica e dotados de relevância transcendente relativamente às partes em contenda, cuja ratio decidendi, deva ser replicada aos demais casos tidos como similares, propiciando um verdadeiro “efeito cascata”, em termos práticos, do entendimento firmado nas instâncias superiores, no que diz com sua aplicação pelas instâncias ordinárias a que vinculam-se em grau hierárquico.
Afigura-se-nos oportuna, a esta altura, a problematização apresentada, uma vez mais, por Gustavo Amaral e Daniele Melo, em artigo intitulado “Há direitos acima dos orçamentos?”, ao trazerem à tona perquirições acerca da argumentação consequencialista para a tomada de decisão, seja pelos legisladores, gestores ou juízes, inserta como exigência legal, frise-se, em razão das recentes alterações promovidas na Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro pela Lei 13.655/2018.
Dentre as novas modificações na LINDB, destaca-se a dicção do art. 20 ao prever:
[n]as esferas administrativa, controladora e judicial, não se decidirá com base em valores jurídicos abstratos sem que sejam consideradas as consequências práticas da decisão. Parágrafo único. A motivação demonstrará a necessidade e a adequação da medida imposta ou da invalidação de ato, contrato, ajuste, processo ou norma administrativa, inclusive em face das possíveis alternativas.
Discorrem os autores:
Sobre argumentação consequencialista, vale a definição de MacCormick (2006, p. 329): A argumentação consequencialista envolve a elaboração da deliberação universalizada necessária para a decisão em pauta, examinando seu significado prático pela ponderação dos tipos de decisão que ela exigirá na faixa dos casos possíveis que cobrir e avaliando esses tipos de decisão como consequências da deliberação. Essa avaliação não usa uma escala única de valores mensuráveis (…) Ela envolve critérios múltiplos, que deve incluir no mínimo “justiça”, “senso comum”, “política de interesse público” e “conveniência jurídica”
Como bem destaca Sen (2005, p. 91), o argumento em favor do raciocínio consequencialista surge do fato de que as atividades têm consequências. Mesmo atividades que são intrinsicamente valiosas podem ter outras consequências, pelo que o valor intrínseco de qualquer atividade não é uma razão adequada para menosprezar seu papel instrumental, e a existência de uma importância instrumental não é uma negação de um valor intrínseco de uma atividade. É preciso, pois, examinar não apenas o valor intrínseco da norma e o estado de coisas por ela direcionado, mas também as diversas consequências intrinsicamente valiosas ou desvaliosas que possam decorrer das atividades afetadas pela norma.
O exame das consequências não ocorre apenas ex post facto, mas também quanto aos resultados que razoavelmente se podem esperar.
A consideração consequencialista não corresponde necessariamente a um utilitarismo quanto à decisão do ato em concreto, mas sim quanto ao prestígio do conjunto de regras cuja observação pela grande maioria dos envolvidos deva produzir os melhores resultados (HOOKER, 2002)
A apontada tensão dialética entre a efetividade do direito social prestacional à saúde, de um lado, e a necessária observância ou, ao menos, proeminência das políticas públicas eleitas por órgãos técnicos com expertise e atribuição constitucional para sua feitura, atendendo aos objetivos da República insertos no art. 3º, da CF, não restou ignorada pelo STF, no julgamento da Suspensão de Tutela Antecipada STA 175, de relatoria do Min. Gilmar Mendes, em 17.03.2010:
O fato é que o denominado problema da “judicialização do direito à saúde” ganhou tamanha importância teórica e prática, que envolve não apenas os operadores do direito, mas também os gestores públicos, os profissionais da área de saúde e a sociedade civil como um todo. Se, por um lado, a atuação do Poder Judiciário é fundamental para o exercício efetivo da cidadania, por outro, as decisões judiciais têm significado um forte ponto de tensão entre os elaboradores e os executores das políticas públicas, que se veem compelidos a garantir prestações de direitos sociais das mais diversas, muitas vezes contrastantes com a política estabelecida pelos governos para a área de saúde e além das possibilidades orçamentárias.
Lembro, neste ponto, a sagaz assertiva do professor Canotilho segundo a qual “paira sobre a dogmática e teoria jurídica dos direitos econômicos, sociais e culturais a carga metodológica da vaguidez, indeterminação e impressionismo que a teoria da ciência vem apelidando, em termos caricaturais, sob a designação de ‘fuzzismo’ ou ‘metodologia fuzzy’”. “Em toda a sua radicalidade – enfatiza Canotilho – a censura de fuzzysmo lançada aos juristas significa basicamente que eles não sabem do que estão a falar quando abordam os complexos problemas dos direitos econômicos, sociais e culturais”.
Nesse aspecto, não surpreende o fato de que a problemática dos direitos sociais tenha sido deslocada, em grande parte, para as teorias da justiça, as teorias da argumentação e as teorias econômicas do direito. Enfim, como enfatiza Canotilho, “havemos de convir que a problemática jurídica dos direitos sociais se encontra hoje numa posição desconfortável”.
O controle exercido pelo TCU, portanto, abrange a análise da economicidade e da eficiência dos gastos públicos, se revelando de extrema importância no que diz com o ciclo orçamentário de financiamento do direito social fundamental à saúde, de viés progressivo – em face da vedação ao retrocesso social, mormente em época de crise fiscal e iminentes e presentes ameaças a sua sustentabilidade, como se dá, exempli gratia, mercê da famigerada emenda constitucional impositiva de teto dos gastos públicos – EC 95/2016.
A interface do Direito e da Economia no trato e abordagem da matéria envolvendo o custeio de direitos sociais fundamentais, portanto, revela-se-nos salutar, na medida em que a ciência econômica muito tem a contribuir na alocação eficiente de recursos públicos, imposição de assento constitucional, consoante a inteligência do art. 37, caput, da CF.
Impende destacar o deletério efeito na administração dos recursos públicos e na própria programação dos gestores públicos advindo da constante necessidade de deslocamento de rubricas orçamentárias previstas, originalmente, para a implementação de ações e serviços públicos de saúde, pautadas em estudos técnicos e multidisciplinares, criada por força de decisões judiciais que, muitas vezes, prendem-se apenas às contingências do caso concreto e ao evidente e natural apelo emocional imanente em ações envolvendo o tema saúde, sem que se proceda a uma análise global acerca dos efeitos e consequências práticas da decisão proferida e seus correlatos impactos na execução e implementação da política pública, como um todo.
Nessa esteira, a fundada advertência lançada acima sobre os riscos da individualização das políticas públicas vai ao encontro das vozes de parcela da doutrina que considera a nítida aptidão de as políticas governamentais serem, tendencialmente, mais eficientes do que a intervenção casuística do Poder Judiciário – o que vem reforçado pela análise econômica do direito, consoante demonstrado empírica e graficamente, por intermédio dos dados obtidos a partir dos relatórios sistêmicos de fiscalização do TCU nesta seara.
Com efeito, da análise dos dados coletados pelo TCU expostos alhures, faz-se possível aquilatar que o fenômeno da judicialização da saúde concentra-se na região sul do país, encontrando menor recorrência na região norte.
Maria Tereza Sadek, em percuciente estudo sobre a incidência regional da judicialização da saúde no Brasil, aquilatou o seguinte:
No Brasil, apenas 30% dos indivíduos envolvidos em disputas procuram a Justiça estatal, existindo uma clara relação entre índice de desenvolvimento humano e litigância, ou seja, é acentuadamente maior a utilização do Judiciário nas regiões que apresentam índices mais altos de desenvolvimento humano.
Este cenário demonstra a distorção no que atina com a pretendida distribuição equitativa de ações e serviços públicos de saúde a ser efetivada mediante a implementação de políticas públicas, erigidas legitima e tecnicamente pelos órgãos competentes para tanto, com vistas, frise-se, à redução das desigualdades sociais e regionais.
IV. CONCLUSÃO
Revela-se-nos indisputável a circunstância de a efetividade dos direitos sociais pressupor a disponibilidade de recursos materiais pelo Estado, já que demanda, no mais das vezes, gastos vultosos, relevando, pois, problematizar-se a reserva do possível sob a inexistência total de recursos vis-à-vis a inexistência desses recursos em razão de sua destinação a outras finalidades.
Nesse contexto, exsurge nítida a ideia de custo de oportunidade, a reclamar eficiência e qualidade no gasto público pois, como intuitivo, os recursos orçamentários destinados a determinada finalidade, inexoravelmente, deixam de ser alocados para a consecução de outras que ostentam, de igual sorte, interesse público.
Nesse desiderato, a Constituição trouxe expressamente em seu bojo a destinação certa de parcela dos recursos auferidos pelo Estado, visando, precipuamente, seu direcionamento à implementação de determinadas políticas públicas capazes de assegurar a efetivação de alguns direitos sociais, como se dá, exemplificativamente, com a vinculação de receitas orçamentárias a finalidades previamente definidas, em percentuais específicos, à saúde e à educação – em exceção ao princípio da não afetação orçamentária.
Com efeito, considerando não se relacionarem os impostos, diretamente, a uma prestação estatal específica, a receita por seu intermédio auferida pelo Estado não deveria ser vinculada a nenhuma atividade predeterminada, exceção feita aos assim chamados princípios constitucionais sensíveis, causa, inclusive, de decretação de intervenção federal nos Estados ou no DF, consoante previsto no art. 34, VII, “e”, da Lei Maior, em hipótese de sua inobservância, consoante pontifica o eminente constitucionalista Vidal Serrano Nunes Junior.
Esta constitui uma expressão clara da positivação de direitos sociais por meio de normas consagradoras de garantias institucionais, voltadas a assegurar a existência e a preservação das cogitadas instituições sociais, indispensáveis para a concreção da dignidade humana, invariante jurídico-axiológica, fundamento de nossa República – art. 1º, III, da CF.
Desta feita, ao verificar, no caso concreto, que um direito será restringido em face da reserva do possível, revela-se imperioso sejam observados os parâmetros de razoabilidade e proporcionalidade (justa medida). Nesse diapasão, em uma avaliação sistemática e teleológica, a melhor forma de conceber o mandamento constitucional é considerá-lo em sua acepção principiológica, impositiva aos poderes estatais da obrigação de atribuir máxima eficácia aos direitos fundamentais.
Nessa seara, ganha cada vez mais relevo a atuação do Poder Judiciário em todas as suas arenas, com o escopo de tutelar os direitos e assegurar aos cidadãos uma efetiva democracia.
Os direitos sociais apresentam uma dimensão subjetiva, decorrente da sua consagração como verdadeiros direitos fundamentais, justificando-se sua sindicabilidade judicial – tema sobre cuja extensão se afigura deveras polêmico e comporta relevante disceptação – restando obstaculizada qualquer tentativa de retrocesso social.
Reformas constitucionais tais quais aquela que promove a implementação do teto de gastos públicos pelos próximos 20 (vinte) anos, corrigível pela inflação – revela-se cenário a demonstrar, a toda evidência, a vulneração e a preterição de políticas públicas que dizem, intimamente, com direitos sociais fundamentais dos cidadãos, em afronta nítida aos objetivos da República Federativa do Brasil, insertos no art. 3º, da Lei Maior e, bem assim, ao princípio da vedação ao retrocesso em conquistas sociais alcançadas a duras penas em nosso patamar civilizatório.
Em remate, tem-se que a medida cautelar concedida na ADI 5.595 demonstra que o orçamento público não pode eximir-se da sua finalidade primordial de custear os direitos fundamentais, constituindo importante e louvável indicativo hermenêutico, mormente porque proferido em reconhecido momento de crise fiscal pela qual passa o país. Digna de aplausos, portanto, a decisão, pois guarda íntima relação com a efetividade dos direitos fundamentais, de caráter prestacional, sob a dimensão de seu financiamento.
Com efeito, na conformação jurídico-constitucional de nossa República, o Estado assume papel garantidor, a seus cidadãos, do direito à saúde, por intermédio da formulação e execução de políticas públicas, de índole econômica e social, tendentes à redução de riscos de doenças e de outros agravos e, bem assim, à viabilização de acesso universal e igualitário às ações e aos serviços destinados a sua promoção, proteção e recuperação, relevando frisar, nesse contexto, o papel da família, das empresas e da sociedade, consoante preconiza o art. 2º, §§ 1º e 2º da Lei 8.080/1990 – Lei Orgânica da Saúde.
Cumpre verificar, pois, que enquanto as liberdades públicas exigem, em geral, uma abstenção estatal, os direitos sociais reclamam prestações positivas, a demandarem o respectivo custeio, concretizando-se de forma progressiva, por intermédio da ação direta do Estado.
Imperioso, portanto, o adequado delineamento das políticas públicas, a fim de que contemplem metas e ações racionais e sejam bem executadas, de sorte a promover a integração das ações voltadas à gestão dos recursos a serem empregados, observada a distribuição de competências prevista constitucionalmente entre os entes federativos.
A alocação eficiente dos recursos financeiros, tecnológicos, materiais e humanos, além de consistir em imperativo de assento constitucional, revela-se premente, mormente considerado o manifesto cenário de crise fiscal que assola o país.
Os direitos sociais – dada sua fundamentalidade, hão de ser franqueados aos cidadãos em todos os níveis e esferas de governo, incumbindo ao Poder Público, nesse desiderato, instituir e observar instrumentos assecuratórios de sua plena fruição, dentre os quais destacam-se os percentuais mínimos de vinculação de receitas tributárias ao seu custeio, no que atina com saúde e educação.
Nessa linha de raciocínio, em prol da realização prática dos direitos fundamentais sociais tem o legislador o dever-poder de atuar incessantemente e com precedência, de sorte a franquear o arcabouço legislativo para a atuação subsequente do administrador, a partir de prioridades e escolhas albergadas e justificáveis pela finalidade de inclusão e justiça sociais, estampada na Constituição Federal.
Sobreleva obtemperar a necessidade de concordância prática harmônica entre os princípios vetores da ordem econômica com a segurança jurídica e a proteção da confiança, o valor social do trabalho e a redução das desigualdades sociais e regionais, com vistas, ao fim e ao cabo, a assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, por intermédio de cláusulas limitativas do poder econômico, que guardem nexo lógico de pertinência com os objetivos da República, insertos no artigo 3º da Lei Maior.
Uma política de direitos fundamentais sociais há de expressar-se, no mais das vezes, como um dever positivo, a reclamar, nessa linha, uma prestação respectiva.
A ideia de reserva do possível decerto apresentar-se-á como um limite fenomênico, a irradiar efeitos no campo de interpretação de preceitos constitucionais em face de contingências de ordem fática, sem que se possa, sob o pretexto de sua invocação genérica, suprimir completamente o conteúdo mínimo de proteção dos direitos sociais fundamentais.
Evidencia-se-nos perceptível pelos elementos de convicção extraíveis dos relatórios sistêmicos de fiscalização da saúde confeccionados pelo TCU, parcialmente reproduzidos no bojo do presente artigo, que a judicialização da saúde acaba por ensejar a realocação de recursos contemplados para as ações e serviços a serem prestados pelos programas idealizados pela pasta, traduzindo, assim, elevados custos de oportunidade.
A intervenção judicial em múltiplas ações de cunho individual parece não propiciar o tratamento adequado em termos de macrojustiça, concorrendo, como sensível, muitas vezes, ao agravamento de desigualdades sociais e regionais, mediante a apropriação individual de benefícios, cujo acesso deveria dar-se por força da execução de políticas públicas, elaboradas de maneira técnica e impessoal – tudo a revelar a distorção que a lógica da justiça comutativa e a frustração da tutela coletiva e do controle concentrado de constitucionalidade – de viés subjetivo transcendental, no nosso ordenamento –; pode ensejar em termos de realocação de vultosos importes financeiros, no curso da execução orçamentária das ações e serviços públicos de saúde, de maneira pouco racional e desprovida de um enfoque sistêmico e global.
Veja-se, em reforço argumentativo, como sensível, que a apropriação de recursos públicos por cidadãos que judicializam suas pretensões envolvendo o tema saúde dá-se, justamente, em maior proporção, em Estados da federação com melhores índices de desenvolvimento econômico e social, em detrimento daqueloutros que ostentam situações sobremodo mais precárias nesta seara, como sucede com as regiões norte e nordeste.
Reconheça-se que a falta de previsibilidade a que ficam sujeitos os gestores públicos, leva à contingência de, não raras vezes, verem-se compelidos à aquisição de medicamentos em situação emergencial para fins de cumprimento a determinações judiciais, mediante dispensa do regular procedimento licitatório, alcançando efeitos reflexos adversos, por assim dizer, como, exemplificativamente, a solução de continuidade de tratamentos regulares antes dispensados indistintamente.
Acresça-se, ademais, ser frequente a compra de medicamentos sem registro nos órgãos competentes ou mesmo comprovação científica de sua eficácia, por força de ações judiciais, assim como, na mesma esteira, desconsiderando a rede do SUS existente – o que mostra-se irracional no que concerne à qualidade dos gastos públicos em tema tão sensível para a fruição adequada de todos os demais direitos, qual seja, o da saúde.
Urge, portanto, sejam sopesadas pelo Poder Judiciário as externalidades de suas decisões sobre a temática da saúde, assim entendidas como as consequências práticas para a sociedade em um contexto deveras mais abrangente do que aquele no qual dá-se a solução de uma lide de caráter individual, exatamente nos termos propostos pela recém editada lei nº 13.655/2018, que promove alterações na Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro – LINDB, apontando para a imprescindibilidade de um enfoque pragmático e consequencialista, na tomada de decisões com potenciais efeitos econômicos e sociais, nas esferas administrativa, controladora e judicial.
Convém pontuar que malgrado o relevantíssimo papel assegurado constitucionalmente ao TCU, não lhe cabe, sob qualquer pretexto, ainda que alegadamente bem-intencionado, substituir-se ao administrador legitimamente eleito, em indevida ingerência no exercício das funções executiva e legislativa, sob pena de usurpação de poder – inteligência do art. 2º da CF.
Exsurgem como desafios que se nos apresentam na busca pela efetividade dos direitos sociais prestacionais, grosso modo e, em particular, do direito fundamental à saúde, a análise criteriosa sobre se as despesas empreendidas nos percentuais de receitas tributárias vinculados constitucionalmente foram capazes de assegurar o cumprimento das obrigações legais de fazer, empreendendo-se um controle eficiente sobre a progressividade ou regressividade dos resultados obtidos ao longo do tempo, a fim de que essa plêiade vastíssima de informações possa sinalizar aos gestores, parlamentares e à própria sociedade civil, em todas as suas esferas que, a prevalecer a recalcitrância em obedecer os comandos constitucionais e legais vigentes, caminha-se a passos largos para o desmantelamento daquele que consubstancia um dos mais bem sucedidos programas de acesso universal e gratuito à saúde, subvalorizado em sua importância por parcela significativa da população e, por via reflexa, pelos governantes e detentores do poder político, o SUS.
Para aprofundar-se, recomendamos: Constitucionalismo transformador, inclusão e direitos sociais (2019)