O pensador Isaiah Berlin expõe a sua teoria das verdades contraditórias, explicando que nem todos os valores são compatíveis, sendo impossível estabelecer uma filosofia única em uma suposta sociedade perfeita. Talvez, nada expresse melhor essa contradição do que o lema rítmico da revolução francesa: liberdade, igualdade, fraternidade. Esses ideais se distanciam a partir do momento em que passam da teoria à prática, pois ao invés de se apoiarem uns aos outros, repelem-se. Os próprios revolucionários franceses perceberam que a liberdade é uma fonte de desigualdades e, em um país em que cidadãos gozem de total ou muito ampla capacidade de iniciativa e governo de seus atos surgiriam abissais diferenças materiais. Por isso, para estabelecer a igualdade não haveria outro remédio senão sacrificar a liberdade, o que é igualmente inadmissível. Antes de Robert Alexy e Ronald Dworkin, Berlin já alertava para o fato de que a existência de verdades contraditórias não significa que devamos nos declarar impotentes, porém que devamos valorizar a liberdade de escolha, a responsabilidade individual e viver constantemente alerta, pondo a prova as ideias, as leis os valores que regem o nosso mundo, confrontando-os entre si, ponderando o impacto que eles causam nas nossas vidas, escolhendo uns e rejeitando outros, em transações difíceis, pois não existe uma solução para os nosso problemas, mas sim muitas, e todas elas precárias. Esta é a razão irrefutável para se compreender que a tolerância e o pluralismo são necessidades práticas e não imperativos.
Por isto, quando o art. 1º da Lei n. 13.874/19, proclama que “fica instituída a Declaração de Direitos de Liberdade Econômica, que estabelece normas de proteção à livre iniciativa e ao livre exercício de atividade econômica e disposições sobre a atuação do Estado como agente normativo e regulador, quis o legislador explicitar a sua percepção sobre o significado da expressão “valor social da livre-iniciativa”(Art. 1., IV, CF), o que naturalmente repercute no direito privado, especificamente na teoria geral dos contratos, no que se refere sobremaneira à delimitação das interseções entre os princípios da autonomia privada e a função social do contrato.
Evidentemente, ao balancearmos as “verdades contraditórias” percebemos que o pêndulo oscilou em prol das forças do mercado. Em uma trajetória pontualmente iniciada pela Lei Geral da MPE (LC 123/06) e a criação do MEI (LC nº 128/2008), a Lei n.13.874/19 realiza uma ponderação em abstrato dos substratos da dignidade da pessoa humana na ordem econômica, partindo da premissa de que a redução do Estado é condição de eficiência e que quanto mais o Estado cresce e mais atribuições assume na vida de uma nação, mais diminui a margem de liberdade de que os cidadãos gozam. A descentralização do poder é um princípio liberal, a fim de que se amplifique o controle exercido pelo conjunto da sociedade sobre as diversas instituições. O ideal é que na atividade econômica se impulsione uma maior participação civil em um regime de livre competitividade. O intervencionismo estatal possui uma dinâmica própria que uma vez posta em marcha obriga os poderes constituídos a paulatinamente incrementar a sua intrusão nos livres intercâmbios até que se estatizem assuntos que dizem respeito exclusivamente à vida privada.
Contudo, em oposição ao individualismo extremado, a última crise financeira que abalou os Estados Unidos e Europa a partir de 2008 demonstra não apenas uma queda dos valores morais que corrompem o liberalismo clássico em suas bases, mas principalmente a necessidade de uma calibração entre a legítima busca dos particulares pelo lucro e uma cirúrgica intervenção do ordenamento sobre a atividade econômica de forma a evitar o abuso do poder regulatório. O grande inimigo do mercado livre não é o Estado, porém as alianças mafiosas do poder político com empresários influentes, os privilégios, o monopólio, os subsídios, controles e proibições, que consistem em uma forma degenerada de capitalismo: o mercantilismo. Por isto, extremamente salutar a imposição de uma análise de impacto regulatório (art. 5. LLE) para que se avalie o efeito do ato normativo e o seu impacto na atividade econômica. Por intermédio de uma governança regulatória, evita-se insegurança jurídica, ruma-se ao consequencialismo, impede-se a edição de regulações ineficientes do ponto de vista dos objetivos pretendidos e, concede-se maior efetividade ao artigo 20 da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro, que enuncia: “Nas esferas administrativa, controladora e judicial, não se decidirá com base em valores jurídicos abstratos sem que sejam consideradas as consequências práticas da decisão.” A liberdade e a Estabilidade no tráfego negocial não podem se submeter a valores metafísicos, aleatoriamente pinçados em meio a outros, especialmente para adornar caso concreto, sem cuidado com os efeitos perniciosos das decisões, que comumente recaem difusamente sobre a coletividade. Não obstante o natural receio quanto ao déficit de efetividade da referida norma, cremos que o tempo revelará uma tendência ao prestígio da Lei da Liberdade Econômica, pelo fato de subjacentes às suas regras, apelar à experiência da construção da vida em sociedade (e não a pretensiosa retórica do determinismo), assegurando que os grandes beneficiários destes preceitos serão os consumidores e o conjunto da sociedade.
Aqui surge em potência a função social do contrato. Não para coibir a liberdade de contratar, como erroneamente se extraia da literalidade da redação original do art. 421 do Código Civil de 2002 (“a liberdade de contratar será exercida em razão e nos limites da função social do contrato), mas para legitimar a liberdade contratual. A liberdade de contratar é plena em uma ordem econômica pautada pela livre iniciativa, pois não existem restrições ao ato de se relacionar com o outro. Todavia, cláusulas autorregulatórias nascidas da plena autodeterminação das partes e integradas pela boa-fé objetiva serão em casos extremos sancionadas negativamente pelo ordenamento – em sua validade ou eficácia –, face à violação de interesses dignos de proteção no sistema jurídico.
Há muito criticávamos a redação do art. 421 do Código Civil. Não apenas no que diz respeito ao equivocado uso da expressão “liberdade de contratar” ao invés de “liberdade contratual, mas também pelo fato de que o texto original do Código Reale frisava que a liberdade de contratar se exercia “em razão e nos limites da função social do contrato.” Em tese, a expressão “em razão” se destinaria precipuamente a conformar a autonomia privada à dimensão social. Porém, isso não significa que a liberdade contratual se desprenderá, como em um passe de mágica, de sua origem na vontade privada”, para se curvar à uma pretensa função social que o negócio jurídico atenderá. O direito privado é o reduto de liberdade do indivíduo e as normas de ordem pública limites negativos às suas iniciativas econômicas. Permite-se tudo aquilo que não é expressamente proibido, mas não se constrange o particular a efetivar negócios jurídicos com fins que lhe sejam heterônomos.
Em um Estado Democrático de Direito estabelecido em uma ordem econômica dirigida à livre iniciativa, a função social não pode ser compreendida como uma transferência das liberdades particulares para um abstrato e ideologizado “sistema” ou “ordenamento”. Lembre-se: O contrato não “é” função social. Ele é dotado de função social. Não existe uma hierarquia que submeta a autonomia privada aos desígnios de uma coletividade, como se os contratantes fossem zeladores a serviço da sociedade. Ao inverso, a coletividade pode ser materializada no conjunto de pessoas que integram um mercado de bens e serviços e aspiram pela conciliação entre uma eficiente circulação de créditos e uma justa, previsível e segura regulamentação dos dinâmicos interesses que alicerçam esse mercado.
As palavras importam sempre! Introduzem ambiguidade em um discurso que aspira ser unívoco. A redação original do art. 421 subvertia a natureza das coisas e criava uma fenda entre a legalidade imposta e a ordem legal espontânea, pois somente em uma ordem de autoritária planificação seria possível admitir que a liberdade contratual se dá “em razão” da função social do contrato. Prestigia-se aqui o que o pensador Friedrich Von Hayek concebe como “ordens espontâneas”, que surgem de maneira imprevista e não planejada – como a linguagem e o mercado -, legitimadas e depuradas pela experiência vivida. Este processo civilizacional não tolera o construtivismo, cuja pretensão é a elaboração intelectual de modelos econômicos implantados coativamente sobre a sociedade. Em uma obra de engenharia é possível premeditar um plano de ação, todavia no direito é impossível fundar uma sociedade perfeita ou “trazer o paraíso a terra” por meio de estruturas artificiais que apenas distorcem o mercado. O fato é que o Código Civil é incapaz de remodelar a sociedade sem ter em conta as instituições criadas espontaneamente – e aperfeiçoadas pela tradição e costumes – pelas necessidades e aspirações humana, como a propriedade privada e os contratos.
Com a redação conferida pela LLE ao art. 421, “A liberdade contratual será exercida nos limites da função social do contrato”, cremos que a função social pode exercitar importante papel de fortalecimento da ordem do mercado, tutelando instituições, princípios e regras que promovam um saudável ambiente econômico concorrencial. Caberá à doutrina, ao legislador e aos tribunais o mister de aclarar a função social dos diversos modelos jurídicos negociais, elencando-se aí as situações patrimoniais do contrato, a propriedade, o direito de família e as sucessões, bem como os negócios jurídicos não patrimoniais ligados aos direitos da personalidade.
Talvez neste instante já seja possível compreender o teor da primeira parte do parágrafo único do art. 421: “Nas relações contratuais privadas, prevalecerão o princípio da intervenção mínima e a excepcionalidade da revisão contratual.” O princípio da intervenção mínima lido a contrario sensu é uma reação democrática ao intervencionismo estatal desmensurado que – mesmo se iniciando com as melhores intenções – possui uma dinâmica própria que culmina por refrear os livres intercâmbios, cerceando as demais liberdades, caminho fatídico para o autoritarismo. A livre iniciativa é um dos fundamentos do Estado brasileiro, ao lado do valor social do trabalho e o modelo previsto na Constituição é o da economia de mercado. Não é possível que uma lei, arbitrariamente, retire ou crie empecilhos ao exercício de uma determinada atividade econômica do mercado, a não ser que haja algum fundamento constitucional. Conforme recentemente decidiu o Supremo Tribunal Federal (ADPF 449/DF, Rel. Min. Luiz Fux, julgamento em 9.5.2019). em julgamento sobre leis municipais que restringem desproporcionalmente ou proíbem a atividade de transporte individual de passageiros por meio de aplicativos, a proibição ou a restrição desproporcional da atividade é inconstitucional, pois representa violação aos princípios constitucionais da livre iniciativa e concorrência: “o constitucionalismo moderno se fundamenta na necessidade de restrição do poder estatal sobre o funcionamento da economia de mercado. Sobrepõe o rule of law a iniciativas autoritárias destinadas a concentrar privilégios, a impor o monopólio dos meios de produção ou a estabelecer salários, preços e padrões arbitrários de qualidade, todos a gerar ambiente hostil à competição, à inovação, ao progresso e à distribuição de riquezas”.
Tendemos a reconhecer que a LLE é uma declaração de direitos com viés ideológico e que eventualmente se serve de conceitos excessivamente fluidos, que serão densificados pelo Judiciário, o que paradoxalmente culmina por comprometer a segurança jurídica. Todavia, não há nada de novo, esta é uma constante dos diplomas legislativos brasileiros. A Lei de Liberdade Econômica não é desnecessária – como pensam aqueles que enfatizam que desde 1988 vivemos em uma ordem econômica pautada pela livre-iniciativa – ou excessiva – como vaticinam os que à associam a uma excepcional intervenção sobre o princípio da função social do contrato. Muito pelo contrário! A Lei n. 13.874/19 é um marco institucional para nós que (sobre)vivemos em uma ordem jurídica disfuncional, na qual as interferências econômicas estatais sobre a ordem privada frequentemente se mostram burocráticas, custosas e desnecessárias.
O Estado liberal não é um Estado anárquico, porém exige que qualquer interferência deve não apenas ser razoável, porém prudente e consistente, menos grandiosa e mais realista, sempre com prestígio às evidências, vigiada e contrabalançada para aferição da sua adequação e das consequências econômicas da intervenção. Em sua obra “a sociedade aberta e seus inimigos”, o pensador Karl Popper defende o método reformista – democrático e liberal – de transformação gradual e consensual da sociedade, aperfeiçoando as suas instituições e modificando as condições concretas de modo que haja um progresso gradual e constante (“the piecemeal engineering”) ao invés da planificação, como uma orientação controlada e científica da vida social. Uma das maiores lições da fundamental obra, “A sociedade aberta e seus inimigos” é a da “free competition of thought”, ou seja, somente a engenharia fragmentária é capaz de fornecer uma base de sustentação mais sólida da ordem democrática contra a tirania das ideologias messiânicas e utópicas que identificam o estado com a sociedade e julgam deter um “common purpose” (um fim comum) da história. O pecado original do historicismo consiste em acreditar que existam leis que regulam a vida social tal como na ordem natural e científica, quando na verdade, explica Popper: ”O reformista não pretende trazer felicidade aos homens, pois sabe que este assunto não é da incumbência dos Estados, mas sim dos indivíduos e que neste campo não há forma de englobar numa norma essa multiplicidade heterogênea que é a comunidade humana. O seu desígnio é menos grandioso e mais realista: fazer retroceder objetivamente a injustiça e as causas sociais e econômicas do sofrimento individual”
Talvez, a nova redação do art. 421 do Código Civil seja uma fonte de inspiração para a doutrina nacional finalmente refinar critérios objetivos para que se alcance uma solução de compromisso entre as duas formas de liberdade tão bem equacionadas por Isaiah Berlin: as liberdades negativa e positiva. Liberdade negativa é ausência de coerção intencional exercida por terceiros. É o âmbito dentro do qual não somos coagidos a agir contra a nossa própria vontade ou desejo. O conceito negativo de liberdade pressupõe que a soberania do indivíduo deva ser respeitada, porque em última instância é ela a origem da criatividade humana e do progresso. Para tanto, o raio de ação da autoridade deve ser mínimo, só o indispensável para evitar o caos e a desintegração social, impedindo-se assim que o indivíduo seja sufocado, mecanizado e condicionado. Enquanto a liberdade negativa tem em conta o fato de os indivíduos serem diferentes, a liberdade positiva considera sobretudo o que eles possuem de semelhante. Esta é uma noção mais social do que individual, fundamentando-se na ideia de que a possibilidade de cada pessoa decidir o seu destino está em grande medida subordinada a causas sociais, alheias a sua vontade. Portanto, a liberdade contratual não significa a mesma coisa para um dono de uma empresa e um desempregado. O conceito positivo de liberdade é um apelo as noções de solidariedade humana, responsabilidade social e justiça. Enfim, as sociedades que foram capazes de conseguir um compromisso entre as duas formas de liberdade são as que conseguiram níveis de vida menos indignos e menos injustos. Todavia, trata-se de um equilíbrio precário, pois como enfatiza Berlin, “as liberdades negativa e positiva não são duas interpretações de um conceito, mas sim algo mais: duas atitudes profundamente divergentes e irreconciliáveis sobre os fins da vida humana”.
A convivência entre a autonomia privada e a função social remete igualmente a uma correta amplitude do tão maltratado conceito da “dignidade da pessoa humana”. Se em princípio haveria uma tautologia na referência à “pessoa humana” (por logicamente toda pessoa ser humana), é possível afastar a crítica ao pleonasmo, compreendendo-se que a “pessoa” é o indivíduo em suas circunstâncias, que muitas vezes pratica comportamentos (ou se abstém de condutas) que se distanciam daquilo que se exige da “condição humana”, como um padrão civilizacional mínimo que certa sociedade ostenta como compromisso e a qual nenhum indivíduo isolado possa renunciar. Portanto, a dignidade da pessoa humana se encontra simultaneamente na liberdade negativa (pessoa) e positiva (humana).