O rito do procedimento do júri é bifásico (ou escalonado), dividindo-se em duas fases: a primeira se inicia com o recebimento da denúncia e se estende até a decisão de pronúncia; a segunda começa na pronúncia e se encerra no julgamento em plenário.
Encerrada a primeira fase do procedimento do Júri, denominada instrução preliminar, caso o juiz deve pronunciar o réu caso se veja convencido da materialidade do crime e da existência de indícios de autoria (art. 413 do CPP).
A materialidade é comprovada por meio do respectivo exame de corpo de delito, desde que, nos termos do art. 158 do CPP, deixe vestígios a infração penal. Ao se satisfazer, de outro lado, com meros indícios de autoria, quis o legislador deixar claro que a sentença de pronúncia encerra um simples juízo de probabilidade no qual se julga admissível a acusação, apta, portanto, a ser conhecida pelo Júri. Por indícios, na lição de Borges da RosaProcesso penal brasileiro, Porto Alegre: Globo, 1942, vol. II, p. 494-5, “se consideram os fatos conhecidos que, por sua força e precisão, são capazes de determinar uma só e única conclusão: a de que não foi outro se não o indiciado o autor ou cúmplice do fato criminoso”.
Com efeito, a saída apressada de um homem, com a camisa totalmente manchada de sangue, da casa onde foi encontrada a vítima esfaqueada é indício forte de que ele tenha sido o autor do homicídio. Seria o bastante para que fosse ele pronunciado, já que a simples suspeita quanto à autoria permite a pronúncia. Nem poderia ser diferente. A certeza absoluta deve estar presente no julgamento em plenário, quando os jurados devem se orientar pela regra de que a condenação só é legítima se há a mais absoluta convicção, oriunda da prova dos autos, de que o acusado cometeu o crime. Eventual dúvida se resolve, então, em favor do acusado, com o conhecido brocardo in dubio pro reo. Para a pronúncia, ao revés, a regra é in dubio pro societate, isto é, não se exige a mesma certeza que se faz necessária para condenar. Na dúvida, deve o juiz pronunciar, cabendo ao Tribunal do Júri, com sua competência constitucional, dar a última palavra ao julgar o mérito da acusação.
A influência do in dubio pro societate na fase de pronúncia é inconteste. O Superior Tribunal de Justiça decide reiteradamente que o juízo a ser feito nessa fase dispensa a prova robusta, reservando-se a resolução de eventuais dúvidas aos jurados:
“1. A decisão de pronúncia encerra simples juízo de admissibilidade da acusação, satisfazendo-se, tão somente, pelo exame da ocorrência do crime e de indícios de sua autoria. A pronúncia não demanda juízo de certeza necessário à sentença condenatória, uma vez que as eventuais dúvidas, nessa fase processual, resolvem-se em favor da sociedade – in dubio pro societate. 2. Além disso, a jurisprudência do STJ é no sentido de que constitui usurpação da competência do Conselho de Sentença a desclassificação do delito operado pelo Juízo togado, na hipótese em que não há provas estreme de dúvidas sobre a ausência de animus necandi. Precedentes.” (AgRg no AREsp 1.276.888/RS, j. 19/03/2019)
“1. É firme o entendimento desta Corte Superior no sentido de que a decisão de pronúncia não exige a existência de prova cabal da autoria do delito, sendo suficiente a mera existência de indícios da autoria, devendo estar comprovada, apenas, a materialidade do crime (AgRg no AREsp 1446019/RJ, Rel. Ministro JORGE MUSSI, QUINTA TURMA, julgado em 18/6/2019, DJe 2/8/2019). 2. Na espécie, o Tribunal a quo concluiu pela comprovação da materialidade delitiva e pela presença de indícios de autoria, reformando a sentença, para pronunciar o acusado, considerando não apenas os elementos colhidos na fase inquisitorial, mas outros produzidos durante a instrução, sobretudo os depoimentos testemunhais. 3. A desconstituição das conclusões da Corte de origem quanto à existência de indícios da autoria delitiva, amparadas na análise do conjunto fático-probatório constante dos autos, para abrigar a pretensão defensiva de impronúncia, demandaria necessariamente aprofundado revolvimento do conjunto probatório, providência inviável em sede de recurso especial. Incidência da Súmula n. 7/STJ. 4. Ademais, na hipótese dos autos, além de o acórdão recorrido mencionar depoimentos prestados na fase judicial – o que afasta a alegação da defesa de que a decisão de pronúncia se baseou exclusivamente em indícios colhidos no inquérito policial –, esta Corte de Justiça possui entendimento firmado no sentido de que é possível admitir a pronúncia do acusado com base em indícios derivados do inquérito policial, sem que isso represente afronta ao art. 155 do CPP (HC 435.977/RS, Rel. Ministro FELIX FISCHER, QUINTA TURMA, julgado em 15/5/2018, DJe 24/5/2018)” (AgRg no AREsp 1.601.070/SE, j. 05/05/2020).
Em 2019, o STF proferiu decisão em que colocou em xeque o in dubio pro societate na fase de pronúncia.
No caso julgado (ARE 1.067.392/CE, j. 26/03/2019), a decisão de primeira instância havia impronunciado dois dos acusados devido à inexistência de indícios suficientes de autoria. O Ministério Público recorreu e o Tribunal de Justiça local proveu o recurso sob o fundamento de que, naquele momento, havia dúvida a respeito da autoria, o que deveria conduzir os acusados ao julgamento pelo júri. Em recurso extraordinário, alegou a defesa que o reconhecimento da existência de dúvida sobre a autoria do crime deveria levar à impronúncia em respeito ao princípio da presunção de inocência.
Apesar de o STF ter negado seguimento ao recurso, concedeu habeas corpus de ofício para restabelecer a decisão de impronúncia proferida em primeira instância.
Segundo o ministro Gilmar Mendes, embora não haja definição rígida de critérios para valoração da prova, o juízo a ser feito deve ser orientado pela lógica e pela racionalidade. No caso, o juiz de primeira instância havia negado a existência de indícios mínimos de autoria porque as testemunhas presenciais afirmaram não terem visto os acusados agredindo a vítima. As únicas referências à responsabilidade de ambos partiram de familiares da vítima, que, no entanto, nada presenciaram. Para o ministro, tais referências não poderiam ser consideradas provas razoáveis para fundamentar a pronúncia.
Pois bem, até este ponto, não há novidade. É evidente que a indicação de indícios suficientes de autoria passa pela avaliação da prova, que não é guiada por critérios rígidos e pode levar a conclusões diversas a depender da perspectiva e de quem faz a análise. Não por acaso, há medidas para atacar as decisões de pronúncia e de impronúncia, recursos cuja conclusão frequentemente contraria o que foi decidido em primeira instância.
O aspecto interessante desta decisão está na expressa refutação do in dubio pro societate, que, segundo o ministro Gilmar Mendes, desvirtua o sistema de valoração de provas:
“Considerando tal narrativa, percebe-se a lógica confusa e equivocada ocasionada pelo suposto “princípio in dubio pro societate”, que, além de não encontrar qualquer amparo constitucional ou legal, acarreta o completo desvirtuamento das premissas racionais de valoração da prova. Além de desenfocar o debate e não apresentar base normativa, o in dubio pro societate desvirtua por completo o sistema bifásico do procedimento do júri brasileiro, esvaziando a função da decisão de pronúncia.
(…)
Sem dúvidas, para a pronúncia, não se exige uma certeza além da dúvida razoável, necessária para a condenação. Contudo, a submissão de um acusado ao julgamento pelo Tribunal do Júri pressupõe a existência de um lastro probatório consistente no sentido da tese acusatória. Ou seja, requer-se um standard probatório um pouco inferior, mas ainda assim dependente de uma preponderância de provas incriminatórias.
(…)
Como visto, neste caso concreto, conforme reconhecido pelo juízo de primeiro grau e também em conformidade com os argumentos aportados pelo Tribunal, há uma preponderância de provas no sentido da não participação dos imputados José Reginaldo e Cleiton nas agressões que ocasionaram o falecimento da vítima.
Ainda que se considere os elementos indicados para justificar a pronúncia em segundo grau e se reconheça um estado de dúvida diante de um lastro probatório que contenha elementos incriminatórios e absolutórios, igualmente a impronúncia se impõe. Se houver uma dúvida sobre a preponderância de provas, deve então ser aplicado o in dubio pro reo, imposto nos termos constitucionais (art. 5º, LVII, CF), convencionais (art. 8.2, CADH) e legais (arts. 413 e 414, CPP) no ordenamento brasileiro.”
O argumento nos parece equivocado.
Ora, em primeiro lugar, embora não se trate de princípio explícito, o in dubio pro societate decorre da própria formulação dos requisitos mínimos para a pronúncia. O art. 413 do CPP estabelece, afinal, que o juiz pronunciará o acusado, se convencido da materialidade do fato e da existência de indícios suficientes de autoria ou de participação. Se é possível se contentar com a existência de indícios suficientes – e não de prova razoável – da autoria, é óbvio que esta fórmula traz consigo a possiblidade de haver uma parcela razoável de dúvida que, não obstante, não é capaz de impedir o prosseguimento do processo para julgamento no Tribunal do Júri. Se nesta fase preponderasse o in dubio pro reo, a pronúncia jamais poderia se fundamentar em indícios suficientes da autoria; o texto legal deveria fazer referência à existência de prova da autoria.
É, ademais, perigoso opor um óbice dessa magnitude já no juízo de instrução preliminar, estruturado apenas para garantir que o crime de fato ocorreu e que há elementos mínimos sobre a autoria. Não se pode exigir, neste momento, que a prova existente esteja além da dúvida razoável, pois isso traria à fase de instrução preliminar um peso que jamais lhe foi conferido historicamente. É bom lembrar que prova da materialidade e indícios de autoria são os mesmos requisitos para o próprio oferecimento da denúncia, momento em que também não vigora o in dubio pro reo, servindo a primeira fase do procedimento do júri para confirmar, agora sob o manto da ampla defesa e do contraditório – com maior segurança, portanto –, os elementos mínimos angariados na investigação.
Não fosse bastante, o in dubio pro societate privilegia (assegurando) um princípio fundamental do júri: a soberania dos vereditos. Por ele, somente os jurados podem decidir pela procedência ou não da imputação. Na precisa lição de José Frederico MarquesElementos de direito processual penal, III/262, a soberania deve ser entendida como a “impossibilidade de os juízes togados se substituírem aos jurados na decisão da causa”.
Normalmente, invoca-se a soberania dos vereditos diante de questões relativas ao mérito, como no caso do julgamento de recursos. É graças à soberania que a apelação contra o julgamento pelos jurados tem fundamentação vinculada, só pode ser interposta nas situações permitidas no art. 593, inc. III, alíneas a, b, c e d, do CPP. Ao contrário do que ocorre em outros casos, na apelação do júri o tribunal jamais poderá reapreciar o mérito e modificar a conclusão a que chegou o Conselho de Sentença porque, por exemplo, não havia provas suficientes para a condenação. Mas a soberania dos vereditos não se limita a garantir a integridade do julgamento já realizado, senão que se aplica também em perspectiva, ou seja, deve ser observada para garantir o julgamento pelo juiz natural dos crimes contra a vida. Quando profere a sentença concluindo o juízo preliminar do procedimento, o juiz deve ter em perspectiva a soberania dos vereditos para não usurpar a competência dos jurados. Daí porque o in dubio pro societate funciona como uma garantia daquele princípio, porque obriga que se remeta ao órgão com competência constitucional a apreciação da autoria do fato, ainda que sobre isso pairem certas dúvidas.
Pode ser que no caso concreto julgado pelo Supremo Tribunal Federal não houvesse mesmo indícios mínimos de autoria que pudessem autorizar o julgamento pelo júri. Isso é uma questão de apreciação de provas que, como já dissemos, pode dar azo a conclusões diversas. Mas não se pode concordar com a exclusão a priori da solução que, frente à dúvida, prefere o julgamento pelo órgão competente segundo a Constituição Federal.
A relevância do assunto é tamanha que, no próprio STF, decisões mais recentes têm garantido a plena vigência do princípio que sem dúvida assegura a própria estrutura do procedimento nos crimes dolosos contra a vida:
“[…] Feitos esses registros, transcrevo agora, por oportuno, o inteiro teor do voto proferido pelo Ministro, Relator do AgRg no REsp 1.767.808/RO na Sexta Turma do STJ, verbis: “O recurso não apresenta argumento capaz de desconstituir os fundamentos que embasaram a decisão ora impugnada. No caso, acerca da insurgência, a Corte estadual consignou o seguinte (e-STJ fls. 326/327): ‘Narra a denúncia que, no dia 08 de fevereiro de 2017, por volta das 22h40, na Linha 10, Km 60, Galo Velho, Zona Rural, Comarca de Machadinho D’Oeste/RO, o pronunciado YAN FERREIRA DE SOUZA, com manifesto animus necandi, por motivo fútil e mediante recurso que dificultou a defesa do ofendido, MATOU Catislaine da Silva Gonçalves, mediante disparo de arma de fogo, causando-lhe as lesões descritas no Laudo Tanatoscópio, que foram a causa eficiente de sua morte. Segundo ficou apurado, o denunciado, no dia acima especificado, na posse de um revólver, subitamente, efetuou um disparo contra a vítima, atingindo-a na região infraclavicular esquerda, matando-a. Constatou-se que o homicídio foi cometido por motivo fútil, uma vez que o imputado desferiu um disparo fatal na vítima, após esta indagar-lhe se teria coragem de atirar contra ela. O crime foi praticado mediante recurso que dificultou a defesa da ofendida, visto que Catislaine foi surpreendida pelo imputado que, inesperadamente, desferiu-lhe um tiro, não tendo, assim, chance de defesa. O pronunciado confessou autoria delitiva na Delegacia de Polícia e em Juízo. Pois bem. A materialidade delitiva encontra-se comprovada pela Ocorrência Policial n.° 20971/2017 (fls. 20/21), pelo auto de apresentação e apreensão (fl. 24), pelo Relatório n.° 36/2017 (fls. 37/38), pelo laudo de exame tanatoscópico (fls. 55/58 e 98/99) e Laudo Pericial n.° 0170/2017 (fls. 100/105). Examinando superficialmente as provas produzidas, tem-se que são elas suficientes para ensejar a pronúncia do recorrente, tanto no que diz respeito à materialidade quanto à autoria do delito de homicídio praticado contra a vítima, tendo em vista que ouvido na fase policial, e, após, na fase judicial, o recorrente admitiu a prática do delito a ele imputado. Ao contrário do alegado pela defesa, é cediço que para o agente ser pronunciado, basta que o juízo se convença da existência do crime e de indícios de que ele seja o autor, conforme disposto no art. 413 do CPP, haja vista que nesta fase impera o principio in dubio pro societate. Portanto, convencendo-se o juiz da existência material do delito e de indícios suficientes de autoria, não há que se falar em falta de prova firme, segura, robusta e abundante, pois, sendo juízo de probabilidade, dispensa confronto meticuloso e profunda valoração. Quanto à alegação de ausência de animus necandi, é cediço que, na fase de pronúncia, exige-se prova incontestável de que o réu tenha agido sem intenção de matar ou ferir a vítima. Não pode haver, assim, sequer indícios de que este tenha agido com dolo homicida ou, ainda, que tenha ao menos assumido o risco de produzi-lo contra a vítima. A aferição acerca da intenção do agente é questão diretamente ligada ao mérito da causa, e, sendo assim, o juízo preciso a ser formulado a esse respeito também é de inteira competência do Tribunal do Júri (art. 5°, XXXVIII, CF/88), sendo certo que, na atual fase processual, o principio in dubio pro societate adquire supremacia em relação ao não menos relevante, principio in dubio pro reo. Na pronúncia, não é necessário, como reiteradamente afirmado, que a intenção do agente no sentido de assassinar ou tentar contra a vida da vítima ressaia induvidosa dos autos bastando que existam meros indícios, ainda que frágeis neste sentido. Caso contrário, estar-se-ia, de forma indevida, subtraindo a competência do juízo natural, previsto constitucionalmente, para julgamento dos crimes dolosos contra a vida, qual seja, o Tribunal do Júri. Assim, a certeza quanto à intenção de matar deve ser dirimida pelo Tribunal do Júri, órgão competente para julgar crimes dolosos contra a vida, não havendo que se falar em desclassificação para o delito de lesão corporal’. Verifica-se, portanto que, conforme consignado na decisão agravada, o entendimento adotado no acórdão recorrido está em consonância com a orientação firmada neste Tribunal Superior segundo a qual deve ser aplicado o princípio do in dubio pro societate na primeira fase do procedimento do júri, desde que haja indícios mínimos de autoria e de prova da materialidade do delito. Nesse sentido: […]. Ante o exposto, nego provimento ao agravo regimental” (págs. 11-12 e 14 do documento eletrônico 7, grifei). Conforme se verifica, o decisum combatido não destoa da referida jurisprudência desta Suprema Corte que trata da matéria em questão. Isso posto, denego a ordem (art. 192, caput, do RISTF)” (HC 179.309/RO, j. 16/04/2020).
“[…] Noutro giro, conforme ressaltei no decisum ora impugnado, impende consignar, que o acórdão proferido pelo Tribunal de Justiça de Minas Gerais está em consonância com a jurisprudência atual, majoritária e consolidada deste Tribunal, no sentido de que, havendo indícios de autoria e materialidade, deve prevalecer, na sentença de pronúncia, o princípio do in dubio pro societate. […] Cito, no mesmo sentido, as recentes decisões monocráticas proferidas por Ministros de ambas as Turmas desta Corte: HC 173.696, Rel. Min. Alexandre de Moraes, DJe de 15/8/2019, HC 170.960, Rel. Min. Roberto Barroso, DJe de 10/5/2019, HC 172.599, Rel. Min. Edson Fachin, DJe de 12/8/2019 (transitada em julgado), e HC 170.257, Rel. Min. Cármen Lúcia, DJe de 15/5/2019 (transitada em julgado) […]” (ARE 1.244.706 AgR/MG, j. 20/12/2019).
Para se aprofundar, recomendamos:
Livro: Código de Processo Penal e Lei de Execução Penal Comentados por Artigos