Introdução. O sistema de nulidades no direito processual penal brasileiro sempre foi e continua a ser extremamente confuso e sem sistematicidade. A influência do Código Processual Penal Rocco ainda vivo no nosso CPP aliado a sua interpretação constitucional piorou o entendimento desse sistema de nulidades. A influência sobre a nossa legislação pátria do Código de Napoleão também anteriormente cria problemas em nosso CPP. Como identificar a diferença entre ato nulo e anulável na teoria geral processual penal? Enfim, em quase todos os temas, existe divergência da doutrina e da jurisprudência sem que efetivamente possa se lecionar a matéria com algum norte razoável.
Natureza jurídica. Nem na natureza jurídica da nulidade existe um consenso. Parte da doutrina qualifica a nulidade como um vício ou defeito jurídico e outra parte como uma sanção. Alguns entendem que a natureza jurídica seria mista, sendo um vício e uma sanção. Existe também nesse ponto, nítida vinculação com o direito material, particularmente com o Direito Penal. Nesse diapasão, na sanção, haveria um preceito desrespeitado e a previsão de uma sanção (ou pena no direito penal). Para nós, a natureza jurídica seria mais de vício. A vinculação como sanção seria essa tentativa de vinculação preceito-sanção do direito material, que não se adapta ao sistema processual penal. Isso em razão da dificuldade maior em se precisar a tipicidade ou atipicidade processual penal em razão da incidência de diversas regras. No sistema penal, o tipo penal é muito mais conciso. Estamos nesse sentido, com a posição de OTTORINO VANNINI, Nullità degli atti di procedura – dirito processuale penale, n.1. – in Nuovo Digesto italiano, vol. 8º, 1939, página 1.170 apud Espíno Filho, Código de processo penal brasileiro, vol. 5, p. 284), para quem a nulidade seria mais um defeito que gera consequências, sem que se possa falar em sanção própria do direito material.
Sistema de nulidades no processo penal. Existe historicamente dois sistemas de nulidades. O primeiro é o sistema francês, influenciado pelo Código Civil de Napoleão, em que se procura descrever de forma pormenorizada as nulidades. Por outro lado, o sistema espanhol, baseado em descrição de regras genéricas, sem o detalhamento do que seria nulidade. Esta forma se origina da “Ley de Enjuiciamiento Criminal de 1882.” É dominante o entendimento doutrinário, que o sistema do CPP é eclético, mencionando algumas hipóteses de nulidade no artigo 564 do Código de Processo Penal e depois deixa aos juízes e tribunais a tarefa de decidir sobre o caso específico. Mas esse entendimento se distancia do atual entendimento dos tribunais superiores.
Classificação dos atos processuais. Usualmente, classificamos de acordo com a Teoria Unitária, os atos em inexistentes, os atos com nulidade absoluta, os atos com nulidade relativa e os atos meramente irregulares. No caso do ato inexistente, costuma-se mencionar que existe uma atipicidade tão grande que é considerado como um não ato. É exemplo maior, embora com críticas, a decisão que decreta a extinção da punibilidade calcada em assento de óbito falso (STF – RTJ 104/1063 e do STJ – 6ª Turma, HC 143.474/SP, Rel. Min. Celso Limongi, j 06/05/2010). De outra banda, costuma-se falar em nulidade absoluta e nulidade relativa. De forma resumida, pode-se citar como uma das diferenças, a que a nulidade absoluta possuíria um prejuízo presumido. Já na nulidade relativa, o prejuízo deveria ser comprovado, não podendo ser presumido. Finalmente, o ato irregular seria um vício que não afetaria a validade do ato.
O sistema moderno dos tribunais superiores. Anteriormente, os tribunais superiores procuravam separar a nulidade absoluta da relativa, o que demonstrava uma tentativa de sistematização da matéria. Posteriomente, o Supremo Tribunal Federal e o Superior Tribunal de Justiça passaram a consagradar o princípio do pas de nullité sans grief. Assim, o leading case desse entendimento, seria entendimento do Ministro Lewandowski, com base no art. 563: “Nenhum ato será nulo, se da nulidade não resultar prejuízo para a acusação ou para a defesa. até a nulidade absoluta exige prova do prejuízo (STF, RHC nº 117102/SP, Rel. Ricardo Lewandowski). A partir desse entendimento, mesmo a nulidade absoluta exigiria a prova do prejuízo (não haveria mais presunção). Portanto, “a eiva de nulidade por cerceamento de defesa há que ser cabalmente demonstrada, não se constituindo motivo ensejador para que se anule o processo a mera presunção de lesão para uma das partes” (STJ, RSTJ, 18/396). O que não poderia ser admitida é a inexistência de defesa ou sua flagrante deficiência, hipóteses que não se verificam no caso (RHC 129947, Relator(a): TEORI ZAVASCKI, Segunda Turma, DJe de 20/10/2015). Assim, de modo razoável, já entendeu a inexistência de nulidade pelo STF no caso de defesa eficiente praticada por advogado com inscrição cancelada (HC 104.963/PR, Rel. Min. Celso de Mello, Dje 22.04.2014).
Todavia, em outras hipóteses, essa “abertura”, exigindo a prova do “prejuízo” pode trazer enormes dificuldades de se delimitar ou não o “prejuízo. Assim, discute-se sobre a anulação de audiência em o Parquet estaria ausente. Anteriormente, tal ausência era tratada como nulidae relativa, e dificulmente gerava anulação. Todavia, a introdução do “cross-examination”, com as perguntas feitas diretamente pelas partes, alterou em parte esse entendimento. Nesse sentido, o STJ entendeu que a ausência do MP na audiência e as perguntas feitas diretamente nesse caso pelo juiz imporiam a nulidade (STJ, REsp nº 1846407/RS, Rel. Sebastião Reis Júnior, j. 13/12/2.022). Também o próprio STF no HC 202557/SP, Relator Min. EDSON FACHIN, 2ª T., Julgamento: 03/08/2021, Publicação: 12/08/2021, admitiu a nulidade em caso em que o magistrado iniciou e questionou detalhadamente uma testemunha de acusação, demonstrando uma guinada nessa interpretação. Todavia, o STJ já decidiu de forma contrária: “1. Esta Corte já firmou a compreensão no sentido de que “a falta do membro do Ministério no momento da audiência instrução e julgamento não viola o sistema acusatório e nem mesmo o disposto no art. 212 do Código de Processo Penal” (STJ, AgRg no HC 772870/PA, Rel. Min. Ribeiro Dantas, j. 06/03/2.023).
Aliás, esse entendimento simplório de necessidade de prova do prejuízo, longe de resolver o problema, pode agravá-lo. Por exemplo, a necessidade do interrogatório ser o último ato não deveria ser uma hipótese de presunção do prejuízo, baseado na ideia de que o réu sempre seria mais beneficiado se ouvido por último? Ou o indeferimento do pedido do réu comparecer no plenário do Júri em trajes civis não implica também em prejuízo presumido, já que o uniforme já induz a uma ideia de ilicitude da conduta do réu preso? Sobre a matéria, já decidiu o STJ que a não utilização do uniforme padrão do Estado e o direito de usar trajes civis constitui direito apenas quando se tratar de estratégia de defesa. Havendo essa estratégia e existindo decisão não fundamentada, haveria nulidade (STJ, RMS n. 60.575/MG, relator Ministro Ribeiro Dantas, Quinta Turma, DJe de 19/8/2019.
Outrossim, uma questão de extremo destaque é a continuidade da audiência via Teams após a cessação da Pandemia da COVID-19. Na 359ª Sessão Ordinária realizada em 08 de novembro de 2.022, em razão do Procedimento de Controle Administrativo 0002260-11.2022.2.00.000, o CNJ entendeu sobre a necessidade de retorno das audiências presenciais no prazo de 60 (sessenta) dias. Por que não se permitir a continuidade das audiências ou sessões remotas? Porque as audiências sem a presença física do réu em tese violariam o direito à autodefesa, o direito do réu estar presente na audiência. E no caso de Sessões dos Tribunais, haveria afronta ao Princípio do Contraditório e à Ampla Defesa. Nesse ponto, entendemos que não existiria violação a preceitos constitucionais atinentes ao contraditório e à ampla defesa. Atualmente, os sistemas modernos de comunicação permitem o acompanhamento correto de réu e defensor que entendemos afasta a alegação de prejuízo.
Conclusões. A adoção do princípio da necessidade da prova do prejuízo, seja da nulidade absoluta e relativa cria o sistema da “relativização das nulidades processuais”. Esse sistema prestigia a discricionariedade e o subjetivismo principalmente do relator (Nestor Távora e Rosmar Rodrigues Alencar, Curso de processo penal e execução penal, 16ª Ed., p. 1.501). Quando se concluirá que o réu comprovou o prejuízo? Ou essa decisão depende apenas do Relator? É provável que sim, pois até agora não se instituíram regras básicas de quando existe o prejuízo. A decisão se baseia em subjetivismo crescente. Devem pois, minimamente, serem criadas regras claras e básicas de reconhecimento de nulidades processuais penais, para que essas decisões jurisprudenciais não dependam apenas de um subjetivismo do relator, ou seja, uma avaliação extremamente pessoal.